Cinema

A Filmografia de Yorgos Lanthimos

Não é a primeira vez que venho aqui panfletar sobre Yorgos Lanthimos. E provavelmente não vai ser a última. Esse diretor vem chamando minha atenção à algum tempo e agora, com seu recente lançamento, “Pobres Criaturas“, os olhos estão novamente voltados à ele. Acho que vale a pena jogar dois centavos em cima disso.

O cinema grego em geral é bastante ousado em comparação com outras “escolas” que temos mundo a fora, mas ele foi se transformando ao longo do tempo. Em vários filmes gregos do final do século 20, os roteiros eram baseados em romances ou traziam a assinatura de escritores gregos – repletos de extensas peças de prosa ou trechos de obras monumentais da literatura grega com misturas de estilo lírico e alegorias. O surgimento da “Estranha Onda Grega” surge bastante consciente desse aspecto performativo que a linguagem tem e de sua funcionalidade também. O aparecimento de uma nova “linguagem” vem acompanhado de foco no diálogo, geralmente composto por jogos de palavras, metáforas, frases elípticas e até mesmo palavras inventadas. Além disso, o conceito de role-playing é central para o desenvolvimento da narrativa e dos personagens. É nesse meio que aparece o nosso querido diretor.

Lanthimos faz parte do movimento da Estranha Onda Grega ao lado de outros diretores que ajudaram a redefinir o cinema na Grécia. Sendo assim, Yorgos Lanthimos é um diretor que faz parte de uma era e uma cultura, se destacando como um cineasta muito habilidoso, com estilo único, ainda que esse estilo seja indicativo do movimento ao qual faz parte. Ele estudou a arte de dirigir cinema em Atenas, e trabalhou gradualmente em sua carreira, desde co-direção até se tornar o aclamado diretor que ele é hoje em dia. Seu foco narrativo está no absurdismo e no estranhismo, mas eu já falei disso em um post voltado para esse tema, então não quero repetir nada aqui.

Fato é que o resultado de tudo isso está em sua filmografia. Não importa o quão sombrios ou estranhos eles sejam, os filmes de Lanthimos nos fazem rir, chorar, sentir náusea e até mesmo questionar o que estamos vendo. Cínico, político e geralmente hilário, suas obras são dignas de serem vistas. Ele aborda temas importantes como doença mental, disparidade social, os desconfortos do constrangimento e da doença, e todas as coisas que não deveriam nos fazer rir (mas fazem) com grande facilidade. É tranquilamente um dos caras mais promissores e importantes do cinema moderno.

Abaixo, vou listar seus filmes até o momento. Quem sabe você, que por acaso está lendo esse texto, não se interesse um pouquinho em suas obras? Eu garanto que vale a pena! 🙂

Kinetta

Kinetta, 2005

A grosso modo, podemos considerar Kinetta o primeiro trabalho de Lanthimos como diretor. Apesar de ser um filme controvérso em termos de críticas (muita gente não curtiu muito), esse filme apresenta, ou ao menos já começa a amadurecer, aquela que se tornaria uma característica especial de Yorgos Lanthimos.

Kinetta foi lançado em 2005, mas ficou mais conhecido por volta de 2019. Não é que seja um filme “fraco”, mas ele tem certos núcleos de ideias que o Lanthimos desenvolveria e exploraria melhor mais pra frente, em trabalhos como “Dogtooth”, por exemplo. Kinetta segue três cineastas amadores (Aris Servatelis, Evangelia Randou e Costas Xikominos) fazendo um filme em um resort à beira-mar, girando em torno da personagem de Randou sendo humilhada e brutalizada. É uma premissa legal mas que nunca decola: a dinâmica entre o trio nunca se junta totalmente e os temas da dinâmica de gênero e da crueldade humana parecem um pouco rudimentares. Esse filme foi um sinal de que grandes coisas estariam por vir, mas não é necessariamente uma obra memorável por si só.

Dogtooth

Dogtooth, 2009

Yorgos Lanthimos chamou a atenção internacional em 2009 com seu segundo filme, Dogtooth, vencedor do Prêmio Un Certain Regard no 62º Festival de Cannes e indicado ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Bom, esse filme é diferente.

A maioria dos filmes de Lanthimos são comédias negras de alguma forma – mesmo aqueles que não costumam ter um lado engraçado. Mas poucos filmes tem isso tão latente quanto Dogtooth. Num grande complexo cercado, marido e mulher vivem com os seus três filhos adultos, que nunca saíram de casa e não têm conhecimento do mundo exterior. O casal, cujos motivos para sua criação incomum são completamente inexplicáveis ​​além de um puro e egoísta desejo de controle, alimenta os filhos com mentiras e paranóias, dizendo que eles finalmente irão embora quando perderem os dentes caninos. É uma premissa desconfortável que explora a natureza da família através de um ângulo distorcido, mas Lanthimos carrega o filme com um humor negro e inexpressivo que deixa você desconfortável, mas que também pode te fazer rir.

O estilo de direção de Lanthimos está claro nesse filme, onde os personagens tem performances monótonas, o que nos impede de se deixar dominar pelas emoções, ao mesmo tempo que aumenta a estranheza e ocasionalmente o sentimento sobrenatural de tudo aquilo. Isso nos lembra que esta história não é real, mas o ambiente familiar, suburbano e aconchegante da casa, de classe média, nos mostra como isso não está realmente longe da nossa realidade fora das telas, e que casos como este podem de fato ocorrer em nosso mundo – se é que já não ocorrem. É uma obra legal sobre relações familiares que mostra como, às vezes, por “amor”, tomamos decisões que causam mais mal do que bem.

Alps

Alps, 2011

Alps” compartilha um DNA parecido com Dogtooth, especialmente a maneira fria como agem os personagens. É um filme ambíguo, tanto em autenticidade, quanto em significado.

Em resumo, os “Alpes” são uma sociedade secreta de quatro pessoas esquisitíssimas que prestam um serviço estranho às pessoas. Se alguém perdeu um ente querido, um membro da sociedade aprenderá tudo o que puder sobre o falecido e o recriará mediante o pagamento de uma taxa, representando momentos de sua vida. Um membro, a Enfermeira, passa um tempo desempenhando o papel de esposa do dono de uma loja de iluminação e acaba cruzando os limites da intimidade enquanto ainda desempenhava seu papel. Em seu trabalho diário, ela conhece uma jovem que ficou ferida em um acidente de carro. Eventualmente, a jovem morre e a Enfermeira se oferece para interpretá-la para seus pais, sem informar o resto dos Alpes sobre o que ela está fazendo. A Enfermeira fica absorvida nesta vida, vivenciando um tipo de família que não tinha e até tornando-se íntima do namorado da falecida.

É um filme imerso no absurdismo e no estranhismo. Enquanto os pais da menina morta choram no hospital, a Enfermeira senta-se com eles e começa a fazer um discurso sobre como isso pode ser o início de um grande novo começo, ainda melhor do que o que veio antes. Bizarro. Alps segue as características de seu diretor, e mantém o distanciamento emocional entre público e obra, gerando reflexão e auto crítica social.

O Lagosta (The Lobster)

O Lagosta, 2015

Olha, aqui o Lanthimos ganhou todo mundo. O Lagosta é, ao mesmo tempo, uma bela história de amor e uma estranha sátira à obsessão da humanidade em formar pares. É talvez o filme que mais combina com o olhar imparcial de Lanthimos sobre as normas humanas com emoção e desejo reais. Colin Farrell, em uma das melhores atuações de sua carreira, interpreta o triste David, que vive em um mundo onde todos os solteiros têm 45 dias para encontrar um parceiro romântico ou serão transformados em animais. Com sua esposa o deixando por um novo homem, David é forçado a passar um tempo em um hotel bizarramente totalitário em busca de um novo companheiro ou será transformado em uma lagosta de mesmo nome.

Suas tentativas de sair desse mundo rígido e bizarro também não dão muito certo para ele, quando ele se apaixona de verdade por uma das agentes (Rachel Weisz). É uma premissa gloriosamente estranha que resulta em uma ótima comédia e sátira, explorando o estranho mundo da amizade heterossexual de uma maneira inusitada, enquanto mantém seu lado mais humano graças à atuação perfeita de Farrell.

Assim como Dogtooth e Alps, O Lagosta vai lidar com os extremos da emoção humana, mas meio que retirando a parte da “emoção” de jogo. Todos esses três filmes progridem como se Lanthimos quisesse isolar o comportamento humano dos sentimentos que o impulsionam, para analisar melhor as escolhas das pessoas. Ele cria situações não naturais para questionar o que é natural – sobre famílias em Dogtooth, luto em Alps e romance e relacionamentos em O Lagosta. As performances aqui são bem mais monótonas e a máxima continua: a única maneira de ver o absurdo de uma situação é à distância.

O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer)

O Sacrifício do Cervo Sagrado, 2017

Cara, como eu adoro esse filme! O “O Sacrifício do Cervo Sagrado” não necessariamente abandona o humor negro presente nos outros filmes, mas ele traz algumas emoções mais perturbadoras. Barry Keoghan interpreta o jovem adolescente Martin que faz amizade com o cirurgião cardíaco Steven (Colin Farrell novamente), que certa vez tratou de seu falecido pai. O que parece ser uma relação inocente acaba saindo do controle quando Martin se insere na vida familiar de Steven e começa a executar a sua vingança em forma de maldição. O que torna esse filme ainda mais incrível é o quanto a podridão interna dos personagens é escondida por um véu educado, que disfarça na superfície, mas não esconde o vazio em seus corações.

O Sacrifício do Cervo Sagrado aceita a influência de Martin sem questionar ou explicar muita coisa. O filme nunca aborda o escopo e a natureza da doença que afeta a família Murphy. Martin lista três sintomas que afetarão cada membro, mas eles não são diagnosticados. Eles servem tanto como prova das habilidades de Martin quanto como um relógio contra o qual Steven deve correr. Steven não pode contar com a ciência ou a medicina para salvar seus filhos. Em vez disso, ele deve assumir a responsabilidade por suas ações.

Essa é uma obra impressionante, um dos melhores trabalhos de Lanthimos, que demonstra sua habilidade e é executada de forma incrível pelos personagens.

A Favorita (The Favourite)

A Favotita, 2018

A Favorita é um filme interessante já na premissa. Ele demonstra o quão habilidoso Lanthimos é na direção, já que aqui ele sai da modernidade monótona e vai para um campo de ficção histórica. E ele faz isso sem perder suas emoções psicológicas que o caracterizam tanto.

Situado no mundo da corte inglesa do século 18, o filme mantém um humor irregular e envolve o estudo dos personagens dos trabalhos anteriores de Lanthimos, pingando em uma visão da realeza que é mais revoltante do que romântica. Apoiado por um fantástico trio formado por Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz, o filme se concentra numa espécie de triângulo amoroso distorcido entre a doente e imatura Rainha Anne (Colman), sua amante e favorita, Sarah (Rachel Weisz), e a prima Abigail (Emma Stone). Qualquer uma das 3 atrizes levaria um óscar pela atuação nesse filme. Estão absolutamente fantásticas!

Bom, Abigail passou por tempos difíceis – seu pai a jogou fora em um jogo de cartas – então ela faz uma desconfortável viagem até o palácio e implora por um emprego para Sarah. Sarah permite que ela trabalhe na cozinha, mas logo Abigail, prestativa e aparentemente honesta, se mostra pronta para subir na hierarquia dos servos e conselheiros da Rainha – e quem sabe até substituir Sarah como a Favorita.

Não é um filme popular pelo seu estilo, mas é, ao menos na minha opinião, bem divertido de assistir se você se propôr a aceitar a trama. O filme usa aquelas lentes olho de peixe e decorações exageradas, meio que sugerindo uma farsa de época rica e obscena. É um entretenimento legal.

Pobres Criaturas (Poor Things)

Pobres Criaturas, 2024

“Pobres Criaturas” (Poor Things) é uma adaptação do romance de 1992 de Alasdair Gray, de mesmo nome. É um dos filmes mais ousados de Lanthimos. Apresentando Emma Stone em uma atuação incrível como Bella Baxter, a trama acontece em uma era vitoriana um tanto distorcida. Bella, inicialmente uma criação infantil e ingênua, embarca em uma jornada de autodescoberta e crescimento intelectual, evoluindo para uma mulher extremamente independente.

A história, que lembra “Frankenstein” de Mary Shelley, se inicia na criação de Bella pelo excêntrico Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). À medida que a compreensão da linguagem e do conhecimento de Bella se expande, sua curiosidade a empurra para além dos limites da mansão de Godwin, levando Bella de Londres a Lisboa, Alexandria e um bordel parisiense, numa jornada de autodescoberta e libertação sexual, com cada local retratado em uma paleta vibrantemente hiper-real que realça a estética surreal do filme.

“Poor Things” destaca-se não só pela sua narrativa e performances, mas também pela sua estética bem peculiar, se tornando uma experiência interessante visualmente mas também emocionalmente envolvente.

O filme ganhou bastante destaque, especialmente devido à atuação de Emma Stone. Ela venceu o Critics Choice Movie Awards como melhor atriz. Além disso, o filme levou o Leão de Ouro, tudo isso nos festivais de pré estréia. É um filme que, antes de atingir a massa, já foi um sucesso.

E aqui fechamos a filmografia de Yorgos Lanthimos. É um cara que vale muito a pena acompanhar, especialmente pelas suas características únicas, que tornam suas obras especiais e contribuem com mais originalidade para o cinema.

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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

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Material de Referência

1 – O Cinema Brechtiano de Yorgos Lanthimos, Olhe Novamente.

2 – Yorgos Lanthimos (website), Yorgos Lanthimos

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