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A Falácia Narrativa e as Histórias que Contamos a Nós Mesmos

Já reparou em como a gente está sempre criando histórias? Sobre coisas, sobre pessoas, sobre o mundo…sobre nós mesmos? De verdade, quando nos damos conta disso, nos damos conta de um fato surpreendente: essas histórias que criamos dão, de uma certa forma, estrutura e significado às nossas vidas. Legal, não acha? Somos contadores de histórias por natureza! E isso se reflete também no nosso cotidiano, a gente está sempre atrás de padrões e conexões para dar sentido a tudo ao nosso redor, por mais que às vezes nem percebamos isso. Mas tudo tem seu preço: junto a essa capacidade (podemos chamar de capacidade?) vem uma pequena armadilha a qual consistentemente a gente sempre cai, a falácia narrativa. Eu explico o que é.

A falácia narrativa é um termo criado por Nassim Nicholas Taleb, e descreve bem essa armadilha que falei acima. Na verdade, é um mal que atormenta todo mundo. Ela se refere a essa nossa tendência de construir narrativas coesas mesmo na ausência de evidências concretas ou de coerência lógica. Nossa mente cria tramas, às vezes até bem complexas, para explicar alguns eventos aleatórios ou não explicados que ocorrem nas nossas vidas. Vemos padrões onde não existem, traçamos conexões onde não existem e criamos uma gostosa ilusão de ordem num mundo que muitas vezes desafia nossa cognição. É quando dizemos, por exemplo, que a esposa de um amigo está grávida porque ela engordou alguns quilos, ou quando associamos a queda ou alta das ações a um fato aleatório sem conhecimento de causa. Hoje em dia, devido à enxurrada de Fake News que precisamos enfrentar diariamente, certas falácias são produzidas por interesses próprios de terceiros, mas elas de fato ocorrem também naturalmente no nosso dia a dia. O que não deixa de ser um perigo, mas, no fim, o que queremos é que as coisas façam sentido.

Em South Park, o Capitão Retrospectiva salva o dia simplesmente dizendo o que “deveria ter sido feito” baseado em somente sua própria opinião. (South Park, SE14E11)

Mas por que a gente se deixa levar por isso? O que nos leva a criar estas histórias elaboradas, mesmo diante de evidências contraditórias? A resposta talvez esteja em nossa herança evolutiva. Como criaturas sociais, estamos programados para buscar significado e propósito em nossas experiências. As histórias servem como um meio de comunicação e coesão social, nos permitindo compartilhar as nossas crenças, valores e experiências com outras pessoas. Elas nos oferecem consolo diante da incerteza e do caos. E é aí que mora o perigo.

Essas narrativas também podem nos cegar para os fatos e complexidades da realidade. A falácia narrativa faz a gente simplificar demais certos fenômenos, reduzindo-os a histórias organizadas que se adaptam às nossas noções e pré-conceitos. Nos faz ignorar interpretações alternativas e prejudica a nossa capacidade de avaliar objetivamente as evidências. Portanto, a falácia narrativa é sobre a nossa capacidade limitada de observar sequências de fatos e criar links de causa e efeito onde não há nenhum.

Imagem por: Best Mental Models (https://bestmentalmodels.com/2018/09/18/narrative-fallacy/)

Bom, se a gente expandir isso um pouquinho mais, vamos ver que a falácia narrativa exerce uma influência particularmente enorme nos filmes e no cinema em geral. Isso, pois, nesse campo, a arte de contar histórias é elevada à sua forma mais alta, nos ganhando com histórias de heroísmo, romance, aventura e por aí vai. Mas o que os filmes realmente fazem através desse conceito é manipular nossas percepções e emoções com uma precisão, olha, surpreendente.

E isso tem um nome: chamamos de Efeito Kuleshov, em homenagem ao cineasta soviético Lev Kuleshov. Esse outro termo demonstra como o contexto em que uma cena é apresentada pode alterar a percepção e a interpretação do espectador. Assim como as nossas mentes constroem narrativas para dar sentido ao mundo, os cineastas criam narrativas através de uma cuidadosa disposição dos planos, manipulando as nossas emoções e expectativas a cada tomada. Não me entenda mal, eu acho isso fantástico! Mas é interessante ver como somos “enganados” através do que assistimos. Talvez um dos exemplos mais legais e didáticos sobre isso, seja o que Alfred Hitchcock deu em uma entrevista para Fletcher Markle, em “A Talk with Hitchcock” (1964).

“É cinemática pura a montagem de um filme e como ela pode ser alterada para criar uma ideia diferente. Temos um close. Vamos supor que ele veja uma mulher segurando um bebê nos braços. Agora reduzimos para uma reação em que ele sorri. O que ele é? Ele é um homem gentil, um personagem simpático.”

“Em seguida, você retira o pedaço do meio do filme – a mulher com a criança. Mas deixe seus outros dois pedaços de filme como estavam. Agora vamos colocar um pedaço de filme mostrando uma garota de biquíni. O homem olha para a garota de biquíni e sorri. O que ele é agora? Um velho sujo! Não é mais o cavalheiro benigno que adora bebês. É isso que o cinema pode fazer pelo seu público.”

Não atôa, Alfred Hitchcock foi um mestre do cinema. Da para considerar também o experimento clássico conduzido pelo próprio Kuleshov, no qual ele justapôs a mesma foto de um rosto inexpressivo com três imagens diferentes: uma tigela de sopa, uma criança brincando e um caixão. Apesar da expressão imutável do rosto, os espectadores interpretaram-no de forma diferente dependendo do contexto em que foi apresentado. Quando combinado com a tigela de sopa, o rosto parecia faminto; quando emparelhado com a criança brincando, é um rosto afetuoso; e quando emparelhado com o caixão, parecia triste. Assim, o significado do plano não era inerente à imagem em si, mas sim à relação entre os planos.

Da mesma forma, a falácia narrativa influencia a forma como percebemos e interpretamos as histórias que a gente vê na tela. Os filmes exploram a nossa propensão para criar histórias, manipulando as nossas emoções e expectativas através da cuidadosa organização de planos e sequências. É a arte usando os altos e baixos da experiência humana com toda a habilidade de um mestre contador de histórias. Mas e quando nossas narrativas colidem com a realidade? E quando as histórias que contamos a nós mesmos desabam, expondo a fragilidade das nossas ilusões? É aqui que reside o verdadeiro teste à nossa resiliência e é talvez aqui onde encontramos mais um valor muito bonito no cinema e nas histórias que gostamos de assistir. Muitas vezes o que aprendemos ao sair de um filme é que a verdade pode ser muito mais estranha do que a ficção. E isso é um ensinamento que vale para a vida toda.

“O Show de Truman” (1998)

No final, a falácia narrativa serve para nos lembrar de como as histórias que criamos e compartilhamos moldam nossas percepções e compreensão do mundo. É uma faca de dois gumes, capaz tanto de iluminar como de obscurecer a verdade. E talvez essas histórias sejam o retrato de uma realidade muito mais rica e complexa do que alguma vez poderemos esperar compreender.

Qual história você quer contar hoje?

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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

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Material de Referência

1 – Best Mental Models: Narrative Fallacy (https://bestmentalmodels.com/2018/09/18/narrative-fallacy/)

2 – Wikipedia: Kuleshov Effect (https://en.wikipedia.org/wiki/Kuleshov_effect)

3 – South Park, SE14E11: “Coon 2: Hindsight” (https://www.southparkstudios.com/episodes/5xx4ao/south-park-coon-2-hindsight-season-14-ep-11)

4 – Hitchcock Explains the Kuleshov Effect to Fletcher Markle. 1964 (https://www.youtube.com/watch?v=96xx383lpiI)

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