Cinema

A comida como um símbolo de poder no cinema de Tarantino

Tempinho atrás eu fiz um “mini curso” de cinema com o pessoal do Cinema com Teoria, com foco em Quentin Tarantino. É um curso bem legal, com destaque para a didática do Alisson que é incrível, e aborda as principais carcterísticas de Tarantino como diretor e cinéfilo, bem como suas principais marcas. Esse não foi meu primeiro curso lá, então me considero validado para autentificar o que estou falando (rsrs). Mas enfim, nesse curso a gente se aprofunda em bastante coisa legal do diretor e isso traz uma visão nova e diferenciada sobre seus filmes, uma vez que você, agora com essa visão diferente e mais atenta a certos detalhes, começa a apreciar melhor os detalhes de cada narrativa ou cena. Te confesso que reassistir aos filmes do Tarantino depois dessa experiência no Cinema com Teoria me fez gostar ainda mais de cada história.

O Alisson se aprofunda em alguns recursos narrativos que o Tarantino usa e também elementos como intertextualidade, violência, etc. As principais características que tornam seu cinema tão original. Mas como eu nunca deixei de explorar coisas relacionadas a esse diretor, acabo de vez em quando vendo algo interessante ou que me chama a atenção. E como esse blog meio que existe para isso, bora botar para fora algo bem peculiar no cinema de Tarantino que venho lendo sobre recentemente: A relação de seus filmes com a comida. E acho que isso acrescenta ainda mais valor para entendermos como a mente desse diretor funciona.

Um símbolo de poder e controle

Alguns estudos e artigos já foram escritos por aí explicando essa relação da comida com a narrativa durante os filmes do Tarantino, então meu propósito aqui não é apresentar nenhuma ideia original, mas acrescentar mais dois centavos em cima desse tema, que eu achei bem interessante.

Em seus filmes, essa relação entre comida e narrativa gira muito em torno da representação de poder e controle. A comida é usada estrategicamente para transmitir domínio, manipulação e autoridade dentro do contexto da história. Serve como símbolo de poder, com personagens utilizando consumo controlado e comunicação não-verbal para afirmar sua superioridade. Lembra daquela cena do Hans comendo strudel com a Shoshanna em Bastardos Inglórios? Vou falar dela mais para frente, mas é aquele tipo de comunicação e tensão que define essa expressão de poder. E, claro, o significado cultural e histórico também ajuda nessa dinâmica. Então, essas cenas “alimentares” contribuem não só para o contexto em si, mas também para o ritmo, a tensão e o desenvolvimento dos personagens, nos deixando ainda mais envolvidos com a cena e mostrando a habilidade monstruosa do Tarantino no domínio de recursos.

Essa ligação entre comida e domínio ocorre de maneira recorrente em sua filmografia através da dinâmica dos personagens, especialmente nos diálogos que é um recurso marcante do Tarantino, pois tem bastante subtexto e contexto cultural.

Usar alimentos como um meio para exercer poder sobre os outros têm, portanto, implicações psicológicas, já que esse recurso abrange controle, intimidação, confiança, autoridade e por aí vai. E isso reflete os próprios instintos humanos e comportamentos sociais também. A manipulação do alimento pelos personagens de Tarantino representa esses instintos e comportamentos, demonstra submissão ou lutas sutis por poder. Compartilhar ou não o alimento, comer lentamente ou de forma mais rápida, tudo isso cria uma guerra psicológica que nos deixa apreensivo e nos tira do conforto que aquela cena poderia causar.

E assim, o uso da comida em suas cenas vai de encontro com a mais famosa marca do diretor: A violência. Muito além de brigas e sangue na tela, a manipulação da comida e suas implicações mostra como Tarantino explora a violência de maneira muito mais ampla em seus filmes. Reforça as complexidades dos personagens e de seus contextos, sejam históricos ou não, aumenta a tensão e contribui para a riqueza de temas que definem seu estilo de direção. Tanto a violência como o controle sobre os alimentos são ferramentas que o Tarantino usa para examinar os aspectos mais sombrios da natureza humana e da dinâmica social. E isso é simplesmente incrível.

Beleza, mas como ele faz tudo isso na prática? Bora ver alguns exemplos.

Pulp Fiction – “Sabe como chamam o Quarteirão com Queijo na França?”

Pulp Fiction é cheio de cenas legais de comida, mas uma em especial mostra muito bem como a dinâmica de poder se estabelece através dessas cenas.

Nessa cena em específico, Jules, interpretado por Samuel L. Jackson, e seu parceiro Vincent Vega interrogam o pobre Brett, que deve dinheiro ao seu chefe, Marcellus Wallace. O cenário – um pequeno apartamento – já dá aquela aumentada na tensão, mas é o comportamento de Jules, calmo e controlado, enquanto Brett e seus colegas estão visivelmente se cagando, que dá o tom da cena. E aqui, o ato de comer torna-se uma ferramenta para exercer controle.

O contraste entre tensão e cena é muito legal também. Jules é muito tranquilo na cena e algumas frases dele, em um tom desconfortavelmente calmo, como “esse hambúrguer é muito gostoso” ou “se importa se eu tomar um pouco dessa bebida gostosa para ajudar a empurrar isso?” demonstram esse contraste.

E é aqui que mora o simbolismo: o simples ato de comer em circunstâncias extraordinárias. Quando ele toma conta da comida de Brett, Jules envia uma mensagem clara: ele está no controle e é ele quem dita as regras. O hambúrguer pode ser visto como um símbolo de conforto e de rotina para Brett, mas agora ele está dominado pela ameaça que o Jules representa. E essa combinação da casualidade de comer um hambúrguer e a sensação de violência iminente cria toda a sensação de desconforto tanto para Brett quando para nós, como público.

Essa cena é brilhante e mostra a confiança e autoridade que o Tarantino coloca em um personagem, ao simplesmente consumir um hambúrguer e discutir coisas triviais, inspirando medo ao redor. A violência já está ali, no subtexto e o que ocorre na sequência só reforça isso.

Esse hamburguer custou caro para o pobre Brett.

Bastardos Inglórios: “Wait for the cream”

“Bastardos Inglórios” é mais um filme espetacular e acredito que seja o favorito de muita gente. E esse filme apresenta uma cena crucial em que Hans Landa, interpretado por Christoph Waltz, compartilha strudel e leite com Shosanna, interpretada por Mélanie Laurent. O simples ato de comer se transforma em uma puta tensão psicológica e uma exibição sutil de controle sobre a identidade.

Hans Landa, o “Caçador de Judeus”, é um personagem muito, mas muito frio e manipulador. Nessa cena, Landa convida Shosanna para comer strudel com ele, por “mera formalidade”. Mas ao longo da cena, percebemos que a sua escolha pelo strudel, uma sobremesa com significado cultural na Alemanha, já faz parte da sua manipulação.

Para começar, esse é um doce tradicional austríaco, e a Áustria foi anexada pela Alemanha nazista em 1938. A escolha desse alimento em um contexto de ocupação nazista tem um duplo significado: por um lado, simboliza a herança cultural alemã, reforçando a posição de Landa como oficial leal de Hitler e, por outro lado, serve como um forte lembrete do opressivo regime nazista. O terror expresso por Shoshanna, que é judia, durante essa cena é visível.

Como se não bastasse, Landa ainda pede acréscimo de creme. Na época da Segunda Guerra, onde o filme se passa, o creme que acompanha o famoso strudel de maçã, era feito com banha de porco. A partir disso, podemos entender que tudo não passava de um teste de Hans Landa para descobrir se Shosanna era realmente judia. Observe inclusive que, nessa cena, ele faz Shoshanna esperar até que o creme chegue para ela começar a comer, mesmo ela tendo insistido que não era necessário. Esse é um dos momentos mais tensos de todo o filme.

“Wait for the Cream”

Essa é uma amostra do poder do contexto histórico aliado à comida da cena. O ato de compartilhar strudel com leite e creme pode parecer inocente à primeira vista, mas Tarantino transforma isso em uma ferramenta de tensão psicológica. Enquanto Landa questiona a história de Shosanna, o simples ato de comer coloca uma camada mais profunda de desconforto. O ritmo da cena amplifica essa tensão, permitindo que cada mordida prolongue o suspense. Como espectadores, estamos perfeitamente conscientes das consequências das respostas de Shoshanna, pelo contexto do filme e pelo conhecimento que temos da segunda guerra. Isso torna cada segundo daquela refeição aterrorizante.

E por falar em contextos históricos…

Django Livre: “White Cake?”

Django Livre” tem bastante coisa em comum com Bastardos Inglórios. Ambos os filmes são histórias “recontadas” por Tarantino nas quais seus protagonistas corrigem erros históricos no melhor estilo “Tarantinesco”. Ou seja, com bastante violência. Então não é surpresa nenhuma que uma das melhores cenas gastronômicas de Django seja, de certa forma, semelhante à de Bastardos Inglórios. Inclusive um dos personagens aqui, o Dr. Schultz, é o Christoph Waltz, mesmo ator que interpreta o Hans Landa.

Assim como acontece com o strudel, o jantar de luxo oferecido por Calvin Candie (o incrível Leonardo DiCaprio) em “Django Livre” também serve como um símbolo do seu alto status e do poder que ele visivelmente exerce sobre Django (Jamie Foxx) e Dr. Schultz. Ao se sentar para jantar, Calvin come de forma casual, sem demonstrar nenhuma preocupação. A elegância e perfeição estética do bolo branco criam uma sensação de dissonância cognitiva, uma vez que a beleza contrasta com o contexto feio e opressivo do filme.

O bolo, nesse contexto, alimenta um tema central de “Django Livre”. O estilo de vida luxuoso dos proprietários de plantações e senhores de terra é mantido e financiado através de alguns dos piores males da história, que são apenas superficialmente disfarçados por aparências. O bolo, tão bonito e perfeitamente preparado, serve como uma representação simbólica dessa dualidade. Ele representa a fachada de elegância e civilidade que mascara as terríveis injustiças e opressões que sustentam o poder de personagens como Calvin Candie.

Portanto, o bolo não é apenas um elemento visual no filme, mas sim um veículo para transmitir um tema mais amplo sobre a hipocrisia, as contradições e a exploração que permeiam a sociedade retratada naquele período e que, de certa forma, permeia até hoje através do racismo. Ele enfatiza a ironia presente nas vidas de luxo dos opressores e mostra a complexidade das relações de poder e controle que são exploradas ao longo da narrativa. Eu considero Django Livre um filme perfeito.

Diga-se de passagem, QUE ATUAÇÃO do DiCaprio nessa cena!

Desenvolvendo narrativas e personagens

Acho que essas cenas ilustram bem como essa relação entre poder e comida desempenha um papel importante no avanço das histórias. Esses momentos não são apenas para comer, eles possuem significados mais profundos que contribuem para a narrativa geral e para o crescimento dos personagens.

Estas cenas influenciam a progressão narrativa, especialmente com o controle do ritmo. Elas proporcionam pausas em sequências mais intensas, permitindo ao público processar as emoções, coletar mais informações e se preparar para o que está por vir. Este ritmo é crucial para manter o envolvimento de quem assiste e garantir que a narrativa não se torne frenética demais.

Além disso, as interações relacionadas à comida revelam lados da personalidade dos personagens que, de outra forma, poderiam permanecer ocultas. A forma como um personagem come ou reage ao ato de comer pode revelar seus problemas de controle e vulnerabilidades. Isso adiciona profundidade e dimensão às suas personalidades, tornando esses personagens multidimensionais.

Reação de Shoshana após seu encontro com Hans.

E ao testemunharmos as suas vulnerabilidades, contradições e medos ocultos por trás das suas ações relacionadas com a comida, ganhamos, como público, uma compreensão mais profunda das suas motivações e conflitos internos. Isso gera a empatia e nos faz querer se envolver mais nas jornadas desses personagens.

Enfim, o emprego da comida nos filmes de Tarantino nos incentiva a refletir mais sobre as formas mais amplas do controle, da manipulação e das complexidades do comportamento humano.

Revelando simbolismo, tensão e temas mais profundos através da comida

E assim, acho que temos uma análise legal sobre o uso da comida nos filmes do Tarantino. O significado dessa conexão vai além de meros artifícios de enredo. Serve demonstração do estilo de direção de Tarantino e mostra seu fascínio em explorar esses lados mais escuros da natureza humana e da sociedade. Quando ele usa a comida como metáfora de poder, Tarantino acrescenta camadas de subtexto que dão ênfase a esses temas de controle, complexidade moral e os limites entre as aparências e a realidade.

Esse tipo de análise incentiva mais pesquisas e discussões em torno deste tema. É um prato cheio para críticos e fãs de cinema se aprofundarem nas camadas de simbolismo, psicologia de personagem e significado narrativo que essas cenas proporcionam. Faz com que a gente aprecie ainda mais as escolhas criativas de Quentin Tarantino e com que fiquemos sempre com aquela expectativa gostosa sobre seu próximo filme.

Que sempre tenhamos bons filmes e mais diretores como Tarantino!

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Olá! Obrigado por ter chegado até aqui 🙂 Espero que tenha gostado a leitura e, caso queira, te convido a ler os outros textos do blog enquanto aguardamos o último filme desse incrível diretor: The Movie Critic será o décimo e, até onde sabemos, último filme de Quentin Tarantino. Será que teremos alguma cena legal com comida também? Só o futuro dirá.

Um forte abraço!

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