Ensaios

De Mona Lisa à Gollum: As conexões que criamos através da face

Já faz um tempo que estou morando fora do Brasil, na Suécia. E uma das coisas que aprendi aqui, ou que pelo menos acabei adquirindo, foi o gosto de misturar as coisas. Comida, cores, pessoas, por aí vai. Tudo, no nível individual, tem a sua característica única, mas quando misturamos, temos resultados incríveis, seja no sabor, no ambiente ou até na nossa vida pessoal mesmo. A sua comida favorita é um mix de muitas outras coisas.

Da mesma forma, nossa forma de entender o mundo vem também da junção de um monte de coisinhas pequenas, que constroem nossa compreensão da realidade, moldam nossa forma de se relacionar com ela e de nos conhecermos também. E acho que isso é uma característica 100% humana, só a gente mesmo, humanos, para poder ter tanta criatividade em relacionar e descobrir tanta coisa legal. Mas o que nos faz de fato especiais? Bom, dentre vários fatores, o nosso corpo e nossa capacidade de se expressar através dele. E essa capacidade não é exclusivamente humana.

Acho que comecei a observar mais isso com os filmes do King Kong, especialmente aquele do Peter Jackson. Como todos sabemos, temos um parentesco muito forte com macacos e primatas. Apesar de termos tomado direções diferentes no caminho evolutivo, existem muitas semelhanças entre a nossa espécie e a deles, principalmente no olhar. Experimentem um dia olhar nos olhos de um Gorila. Eu acho sensacional! É através do olhar e de algumas outras expressões que transmitimos algumas das mais importantes emoções na nossa comunicação. Foi assim, ou melhor, foi assim também, que o Kong ganhou o coração da Ann. Mas não quero falar sobre esse filme, senão eu choro.

As conexões que fazemos através da face
Kong transmite muito bem suas emoções através do olhar.

Bora então pegar um outro exemplo para ilustrar essa nossa composição maluca.

Tudo dentro da nossa cabeça

Existe esse filme bem legal da Disney chamado Divertida-Mente. A gente acompanha a Riley e como suas emoções, representadas em 5 personagens dentro da sua cabeça, funcionam e impactam seu dia a dia. O filme explora bastante essa ciência de emoções e mostra como todas trabalham juntas criando um range de experiências emotivas. Cada emoção vai alterar o rosto da Riley de uma certa forma, como um mecanismo de proteção e reação ao meio ou a situação em que a personagem está envolvida. Aumentar os olhos por medo, por exemplo, pode representar um esforço do nosso corpo de ter mais informações visuais do ambiente em que estamos envolvidos. E fechar o nariz, por nojo, nos limita a respiração, possivelmente nos protegendo de toxinas ou cheiros desagradáveis.

Inside Out (Divertida-Mente) – 2015

O filme explora também essa ideia de como nossas emoções mudam de forma rápida e, às vezes, até inesperada e o resultado disso fica evidente no nosso rosto. Portanto, estamos em constante transmissão de sentimentos.

As conexões que fazemos através da face
Riley, de Divertida-mente, arregala os olhos ao se lembrar de um pesadelo

Enfim, nosso corpo também se comunica por si só, e talvez a forma mais eficaz de transmitir nossas sensações seja através de nossas expressões faciais. Tipo o Kong com a Ann, saca? Seu olhar transmite esse ar de proteção dele com ela e, ao mesmo tempo, deixa evidente seu receio com as ameaças que seu mundo está enfrentando. Pois então, essas expressões são um aspecto fundamental da comunicação, transmitindo um range de emoções e intenções sem precisarmos sequer dizer uma só palavra. Imagine um mundo sem a habilidade de sorrir, cerrar os olhos, segurar uma lágrima. Seria o completo vazio da existência. Nossas expressões faciais, portanto, nos conectam com outras pessoas e são uma parte vital da nossa caixinha de ferramentas, sem as quais, seria muito difícil nos expressar totalmente e sermos compreendidos.

Elas estão ligadas a anatomia humana e, bem, acho que vai ser legal ilustrar isso com Leonardo Da Vinci.

Arte e anatomia, pelas mãos de Da Vinci

Leonardo Da Vinci viveu entre os anos 1452 e 1519 e é uma das personalidades que eu mais admiro na vida. Ele era um gênio! O cara tinha uma mente absurda, tendo domínio em arte, ciência, música, escrita e engenharia. Ele desenhava desde máquinas de guerra até estruturas voadoras complexas, em um período onde esse conhecimento era muito, mas muito escasso. Sua curiosidade científica e artística, criatividade e pensamento inovadores inspiraram e influenciaram artistas e pensadores ao longo de séculos, pois Da Vinci estava muito à frente de seu tempo.

De todo o seu grande portfólio de conhecimentos, com certeza o mais famoso e lembrado seja seu lado artístico.
Da Vinci era um artista de altíssimo nível e seus trabalhos eram muito valorizados pela técnica absurdamente boa, beleza e inovação. Seu estilo de arte era caracterizado pelo uso de técnicas específicas como contraste de luz e efeito atmosférico.
Além do fato de que cada uma de suas obras tinha algo de muito intrigante. Até hoje tem.

Salvator Mundi, obra atribuída a Da Vinci, possui alguns aspectos bem interessantes.

Mas, além de tudo isso, Da Vinci possuía um profundo conhecimento de anatomia humana, tendo contribuído bastante para esse campo com estudos significativos sobre o corpo humano. Ele usava dissecações para seus estudos e produzia desenhos anatômicos altamente detalhados que são considerados até hoje. Da Vinci era tão bom nisso que seus estudos foram usados por profissionais médicos durante um bom tempo. Alguns anos de trabalho intenso de dissecações em cerca de 30 corpos humanos, combinado com um excelente conhecimento de estruturas físicas, criaram um refinado estudo anatômico, registrado em seus cadernos pessoais.

Estudos anatomicos dos cadernos de Leonardo Da vinci

Todo esse estudo era refletido em suas obras, onde Da Vinci pintava quadros extremamente realísticos.
Muitos artistas do passado buscavam reproduzir corpos humanos de uma forma mais realística, brincando com sombras e variações de cores em suas pinturas e dando a elas mais profundidade também.

Fra Angelico – St. Lawrence giving alms

Leonardo, no entanto, sabia da importância do estudo da anatomia humana para representar suas obras. No livro “A treatise on Painting“, temos uma coletania dos manuscritos de Da Vinci em seus cadernos, e podemos ver algumas de suas observações onde ele reforça a necessidade do estudo anatômico para os pintores, destacando inclusive a disposição dos ossos.

Do livro “A treatise on painting“, de Leonardo Da Vinci e traduzido por John Francis Rigaud.

Para Da Vinci, esse estudo era vital. Sem esse conhecimento do corpo humano e suas nuanças, não seria possível expressar realidade nas pinturas. Esse conhecimento foi utilizado em muitas obras posteriores, por outros pintores, inclusive, ajudando uma era de um rápido avanço na arte.

Ok, mas e as emoções? Essa provavelmente é a coisa mais difícil de se reproduzir em uma arte, por conta da complexidade das texturas e dos movimentos do rosto humano. Em seus arquivos, Leonardo escreveu sobre a relação das emoções e o que ele chama de “agitações da mente”, com os movimentos da face humana. Como o sorriso, por exemplo, muda o formato da boca e o contorno dos olhos. Conhecimento, como ele próprio diz, absolutamente necessário para o pintor.

Do livro “A treatise on painting“, de Leonardo Da Vinci e traduzido por John Francis Rigaud.

Entender como nossas emoções afetam nossas expressões faciais é imprescindível para dar vida e criar conexão com a obra. Além disso, Da Vinci também reforça a importância do contexto histórico da pintura, sobre as atitudes, quais ações denotam admiração, respeito, dor ou medo, conforme o que cada ocasião vai requirir, afim de evitar interpretações erradas. Esses conceitos a gente consegue ver em uma de suas mais famosas obras, “A última Ceia”, que combina expressões faciais, gestos, luzes, cores e também contexto histórico.

A Última Ceia, obra de Da Vinci, ilustra o momento em que Jesus anuncia aos seus apóstolos que um deles o trairia.
Leonardo acreditava que os gestos e as expressões deveriam refletir o que as pessoas estavam pensando e as faces de Tiago e Tomás refletem essa ideia.

Da Vinci utilizava técnicas que combinavam o claro com o escuro, e sfumato, que é uma técnica para criar um efeito nebuloso e atmosférico nas obras, isso dá uma sensação de humor e textura na pintura. Ele também era habilidoso com as cores, e usava essa habilidade para criar profundidade e dimensão, além de criar representações mais realistas de luz e sombra. Todo esse estudo e técnica culminou em sua obra que eu mais gosto: a Mona Lisa.

As conexões que fazemos através da face
Mona Lisa (La Gioconda)

Sou completamente suspeito para falar sobre esse quadro, até por que sou apaixonado por ele. Da Vinci revolucionou o uso do sfumato aqui, combinando cores, sombra, luzes e contorno ao redor dos olhos e da boca para imitar as expressões humanas. O sorriso da Mona Lisa é até hoje símbolo de mistério e ambiguidade, e o quadro em si segue sendo material e fonte de vários estudos e pesquisas. É a realidade criando a arte e a arte moldando a nossa forma de enxergar a realidade. A Mona Lisa é uma conquista!

Da Vinci foi um artista genial na representação humana através da arte, cada uma de suas obras se comunicam com você de formas diferentes, e isso só foi possível pois ele conhecia e se preocupava em como nosso corpo funciona. Entender a relação de nossas expressões com a comunicação pode gerar resultados surpreendentes.

Vamos misturar mais.

As faces de Gollum

As conexões que fazemos através da face

Hoje, em 2023, a gente já está bastante a frente em termos de CGI e tecnologias de efeitos especiais. Mas, durante um bom tempo, o Gollum, de O Senhor dos Anéis, foi o auge da criação artística em um CGI com emoções muito bem destacadas. E isso passa MUITO pelo olhar do personagem e como suas expressões faciais mudam constantemente devido a sua dupla personalidade e conflitos internos provocados por anos de convívio com o Um Anel.

Obviamente não é só o olhar do Gollum que demonstra o trabalho fantástico na criação desse personagem, mas toda a sua movimentação e trejeitos, que foram trabalhados com muito cuidado.

Porem, suas expressões são um fator-chave.

O ator Andy Serkis teve seus movimentos capturados e animados em CG para dar vida à Gollum.

O rosto do Gollum é incrivelmente detalhado, com profundidade, cicatrizes e algumas outras imperfeiçoes que fazem com que ele se pareca uma pessoa de verdade mesmo. Esses detalhes são essenciais para se criar um senso de realismo no personagem. Gollum não possui expressões estáticas, pelo contrário, elas mudam de acordo com suas emoções e humor, como já mencionei antes. Por exemplo, quando ele esta com medo, seus olhos se alargam e sua boca se torna menor, criando uma sensação de terror. Esses pequenos movimentos o transformam em uma criatura viva e ativa, ao invés de um CGI mais estático. E cara, você é atingido por raiva, pena, alivio… tudo ao apenas acompanhar o arco desse personagem, de tão bem que ele transmite seus sentimentos.

As conexões que fazemos através da face

Talvez o sorriso da Mona Lisa seja a expressão facial mais famosa do mundo. Tem toda aquela vibe misteriosa e desafia a nossa percepção quanto ao seu significado, já que ela parece “mudar de humor” dependendo do seu olhar para a obra. O Gollum já se expressa muito através dos olhos, principalmente, transitando em emoções de raiva, medo, angústia e confusão. Tanto o Gollum quanto o quadro da Mona Lisa transmitem essa sensação de estarmos diante de algo vivo e, embora eles tenham contextos completamente diferentes, a conexão emocional vem de forma parecida. Eu acho isso incrível, de verdade.

Além das palavras: Olhe mais!

Seja uma pintura, um filme, ou uma conversa com qualquer pessoa, é importante irmos além das palavras. Compreender a comunicação como um todo nos conecta de forma muito legal com qualquer coisa ou pessoa. E isso não tem nada a ver com o Metaforando ou com leitura de micro expressões para detectar mentiras. É sobre buscar entender e compreender além do superficial, além do que esta apenas sendo dito para se conectar com aquilo de forma mais genuína.

O olhar, o sorriso, nossa face como um todo, tem um papel significativo no nosso dia a dia e impactam profundamente nossa comunicação e nossas interações sociais. Regulam nossas emoções e nossa percepção. Aprender a reconhecê-los e buscar entendê-los de forma gentil e sincera (nada de CSI, gente!), podem gerar resultados surpreendentes nas nossas relações, seja com as pessoas, ou com a arte de forma geral.

Além das palavras, olhe mais!

As conexões que fazemos através da face

***********************

Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

***********************

Material de Referência

1 – Filme: “Divertidamente” (2015), Pete Docter

2 – Britannica – “Leonardo da Vinci: Italian artist, engineer, and scientist” (https://www.britannica.com/biography/Leonardo-da-Vinci/Anatomical-studies-and-drawings)

3 – Livro: “A Treatise on Painting“, de Leonardo Da Vinci e traduzido por John Francis Rigaud.

4 – Nature Video (youtube): “Creating Gollum” (https://www.youtube.com/watch?v=w_Z7YUyCEGE)

Um comentário sobre “De Mona Lisa à Gollum: As conexões que criamos através da face

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *