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Sobre como as perspectivas transformam heróis em vilões e a nossa dificuldade em entender isso

Um dos meus filmes de animação favoritos de todos os tempos é o “Deu a Louca na Chapeuzinho“. Esse filme vai contar a história clássica da Chapeuzinho Vermelho, mas em outras perspectivas. E ele usa isso para brincar com nossas expectativas e presunções.

Por exemplo, na história original que nossos pais ou avós nos contavam, o Lobo é o grande vilão, que come a Vovó da Chapeuzinho, se disfarça da velha e de quebra quer devorar a neta também. Por sorte, um lenhador ajuda a pobre garota dando um fim no lobo mau. No entanto, em Deu a Louca na Chapeuzinho, a versão dos eventos do lobo é completamente diferente – ele é, na verdade, um jornalista investigativo tentando descobrir um esquema corrupto envolvendo as receitas da Vovó. O lenhador é só um cara tentando atuar em um comercial, e a Vovó, quem diria, tem uma vida secreta envolvida em esportes radicais. Como existe um mistério rolando e sendo investigado, o filme nos mostra o ponto de vista de vários personagens sobre a mesma história. É muito bom!

Deu a Louca na Chapeuzinho – 2005

E ao contar a mesma história a partir de múltiplas perspectivas, “Deu a louca na Chapeuzinho” desafia as nossas expectativas sobre “contos de fadas” ou histórias convencionais, e nos propõe questionar a validade da versão dos eventos de cada personagem. O filme também brinca com a narrativa, pois alterna entre as versões de cada personagem para criar uma história bem dinâmica.

Assim como nesse conto, as perspectivas são importantes em qualquer história, seja fictícia ou real, pois elas mostram que mesmo as pessoas mais bem intencionadas cometem erros que podem ser irreversíveis. Incluindo aqueles que consideramos heróis. E mostra também como os “vilões” dessas mesmas histórias também tem suas motivações para ter chegado àquele ponto.

Bom, de toda forma, muitas narrativas exploram essa questão e, em muitos casos, as perspectivas fazem toda a diferença. E é isso o que acontece em The Last of Us e Star Wars.

Ah!, daqui pra frente terão spoilers sobre The Last of Us (I e II) e eventos de Star Wars – Episode VIII: The Last Jedi. 🙂

“Ou você morre herói, ou vive o bastante para se tornar o vilão”

O papel da percepção é fundamental na construção de um senso mais crítico. No caso de Star Wars e The Last of Us, isso fica bem claro quando enxergamos os pontos de vista de Abby e Kylo Ren, que dão muito mais complexidade às tramas.

Na primeira parte de The Last of Us, conhecemos e jogamos com Joel, que é um sobrevivente de uma pandemia de fungos que transforma as pessoas em zumbis (chamados no jogo de “infectados“) e que assolou a humanidade. O Joel estava lá quando tudo começou e isso teve consequências graves em sua vida, pois sua única filha morreu em seus bracos devido à insanidade e crueldade que uma doença desconhecida havia provocado nas pessoas, trazendo o que há de pior no ser humano.

Sarah morre nos braços de Joel. Um trauma que o assombrará pelo resto da vida.

Anos depois desse evento, Joel, agora um homem quebrado e assombrado pelo passado, tem a tarefa de escoltar a garota Ellie até um grupo de rebeldes conhecido como “Vagalumes”. Os Vagalumes acreditam que a Ellie (que de alguma forma é imune ao vírus) possa ser a cura e salvação da humanidade. Ocorre que, ao longo dessa jornada, Joel e Ellie criam uma conexão muito forte um com o outro, e Joel se torna uma figura paterna para Ellie, enxergando nela a chance de ter novamente a filha que foi brutalmente assassinada em seus próprios braços no passado.

Joel e Ellie criam laços que dão beleza à um mundo desolado.

No entanto, ao chegar ao seu destino, Joel descobre que, para se extrair as informações necessárias que poderiam salvar a humanidade, Ellie poderia morrer no processo devido ao tipo de operação. Num misto de desespero e conflitos internos, Joel resolve resgatar Ellie dos Vagalumes, extinguindo o grupo matando todos em seu caminho, sem distinção e à sangue-frio. Isso inclui os médicos que estavam ali no local. Com tudo o que o Joel passou e, como jogadores, passamos junto com ele, você pode até entender sua decisão final. Mas isso não transforma essa atitude em menos questionável. Por fim, Joel decide mentir sobre o que realmente aconteceu à Ellie, já que a garota queria de certa forma ser essa “cura” que iria consertar aquele mundo sombrio e doente. Isso, claro, tem consequências graves no futuro. E a gente vê essas consequências na sequência do jogo.

Ellie: Promete pra mim que tudo o que você disse sobre os Vagalumes é verdade.
Joel: Eu juro.

Em The Last of Us Part II somos introduzidos à Abby, e podemos ver as ações de Joel pela perspectiva dessa nova personagem. Joel é visto como um vilão para Abby, que busca vingança contra ele pela morte de seu pai. O pai de Abby era um dos médicos assassinados pelo Joel quando ele decidiu resgatar a Ellie. E não qualquer médico: Ele era o cirurgião dos Vagalumes que tinha a missão de realizar a operação em Ellie para entender sua imunidade ao fungo responsável pelo apocalipse que a sociedade estava enfrentando e trabalhar em uma posterior cura. Portanto, do ponto de vista de Abby, Joel é um homem cruel e egoísta que tirou a vida de seu ente querido e não considerou as consequências de seus atos. O jogo ainda vai mais a fundo nisso, pois nós controlamos a Abby durante uma parte significativa da narrativa. Isso nos permite de fato viver as coisas do ponto de vista da personagem e entender suas motivações, seu passado com o pai e seu desejo por vingança. Abby é implacável! Sua sede por vingança e seu duelo pessoal com a Ellie dão o tom pesado dessa segunda parte do jogo.

O resgate de Ellie pelo Joel custou a vida do pai da Abby. Assassinado a sangue frio.

The Last of Us part II é um jogo, antes de mais nada, sobre isso: vingança. E ao jogar com a Abby e ver seus traumas e medos, enxergamos um lado do Joel que, por mais que estivesse ali o tempo inteiro, insistíamos em não ver. Talvez por essa construção idealista de herói que criamos ao jogar com ele na primeira parte da franquia. As perdas que o personagem teve, as constantes ameaças de um mundo cruel, o laço emotivo criado com a Ellie. Tudo nos faz focar no lado heroico do personagem, nos fazendo esquecer que ele é um homem com inúmeras camadas e falhas. A vingança da Abby sobre o Joel provoca um ódio profundo e irreversível na Ellie e, ao jogarmos com essa personagem, é como se todo esse ódio fosse transferido para fora do gameplay. Passamos, como jogadores, pelo mesmo sentimento de vingança que a Ellie possui e, como qualquer coisa pautada em ódio, isso acaba em muita dor.

Ellie enfrenta as consequências que seu ódio lhe trouxe. Pessoalmente, acho muito pesado jogar esse jogo mais de uma vez.

De maneira parecida, em uma galáxia muito, muito distante, temos Luke Skywalker. Diferente do Joel, o Luke é aquele herói mais clássico, sabe? Luke representa a esperança e o otimismo em um universo negro e cínico. Sua crença na força e disposição para lutar pelo que é correto inspira os outros a fazer o mesmo. Lutou contra seu próprio pai na missão de livrar o universo das garras do Império e, ao mesmo tempo, fez o que pode para salvá-lo das trevas e do que ele havia se tornado.

Assim como ocorre com a Abby em The Last of Us, na mais recente trilogia de Star Wars somos apresentados à Kyle Ren, que aparece como um vilão bem complexo. Neto de Darth Vader e ex-aprendiz de Luke Skywalker, ele luta contra a atração da luz, contra seus próprios dilemas em relação à Força e sua relação com Rey, principal personagem da nova trilogia, além de tentar ser próximo do que Vader foi um dia. E ele carrega um ódio profundo pelo seu tio, o nosso herói Luke Skywalker.

Kylo Ren em Star Wars: The Last Jedi

É através desse ódio, desejo de vingança e, de uma certa forma, dessa ânsia por autoafirmação, que conhecemos um pouco do passado recente de Luke. Nessa trilogia, que se passa anos após os eventos de “O retorno de Jedi”, temos um Luke mais velho, recluso e com uma mágoa profunda sobre a ordem Jedi que, segundo ele, fracassou.

Luke desistiu da Ordem e se recusa a treinar Rey devido à alguns motivos. Ele se sente responsável pela ascensão de Kylo Ren, seu sobrinho e ex-aprendiz que se voltou para o Lado Sombrio e também fica desiludido com a Força, acreditando que ela causou mais mal do que bem. Além disso, ele tem medo de seu próprio poder e do mal que pode causar. Mas, por que ele ficou assim?

Luke Skywalker: “Está na hora dos Jedi…acabarem”

Kylo Ren, que antes era conhecido como Ben Solo, quer vingança contra Luke Skywalker por causa de um incidente que ocorreu antes dos eventos da última trilogia. Durante um treinamento ministrado pelo próprio Luke, o herói sentiu a escuridão em Ben e ficou com medo do que ele poderia fazer. Em um momento de fraqueza, ele acendeu seu sabre de luz com a intenção de matar Ben durante o sono. No entanto, ele rapidamente percebeu o erro de seus caminhos e se conteve, mas era tarde demais. Ben acordou e viu Luke parado sobre ele com um sabre de luz aceso, o que confirmou seus piores medos e o fez atacar de raiva. Isso levou a um confronto entre os dois, com Ben destruindo o templo Jedi de Luke Skywalker e levando vários de seus colegas com ele para se juntar ao Lado Sombrio.

Do ponto de vista de Kylo Ren, Luke o traiu e tentou matá-lo, o que destruiu sua confiança e o levou a se voltar contra os Jedi. Ele culpa Luke por tudo o que aconteceu com ele desde então, incluindo a morte de seus pais e o conflito com a Resistência. Portanto, ele busca vingança contra seu tio e ex-mestre e quer destruir tudo o que ele representa, incluindo a Ordem Jedi. E Luke Skywalker sabe disso.

Luke temeu o que Ben Solo poderia se tornar.

A vida é feita de perspectivas. E é difícil aceitar isso às vezes

As perspectivas de Kylo Ren e Abby em suas respectivas histórias mostram como atos possuem consequências e o quão complexo pode ser chamar alguém de herói ou vilão.

Tanto Joel quanto Luke são personagens que tomaram decisões controversas em suas histórias e que os levaram a serem questionados. A decisão de Joel de salvar Ellie no final do primeiro jogo The Last of Us teve um grande custo, e até hoje se debate se suas ações foram justificadas. O momento de fraqueza de Luke com Kylo Ren, como mencionado anteriormente, também criou uma divisão entre os fãs de Star Wars que discordaram de sua interpretação em Os Últimos Jedi.

Através dos olhos de Kylo Ren e Abby, vemos como as ações de Joel e Luke não são preto no branco. A experiência de Kylo Ren com Luke revela que Luke tem suas próprias falhas e medos como Mestre Jedi, e que sua decisão de tentar matar seu próprio sobrinho foi um momento de fraqueza que teve consequências terríveis. A perspectiva de Abby em The Last of Us Part II mostra que as ações de Joel no final do primeiro jogo tiveram consequências além do que ele poderia ter imaginado, e que sua decisão de priorizar a vida de Ellie sobre o bem maior tem seus próprios dilemas éticos.

Heróis que falharam, ou personagens que já foram ou são vistos como heroicos, mas que de alguma forma erraram feio, podem ser difíceis para as pessoas encararem por vários motivos. A gente costuma ter um forte apego emocional a esses personagens, principalmente se acompanhamos sua história há muito tempo. Quando alguém assim cai em desgraça, pode ser uma experiência chocante para quem é fã e investiu tempo e emoção em sua jornada. É difícil aceitar o fato de que aquele personagem não é quem pensávamos que era, e difícil também abrir mão da conexão emocional que tínhamos com aquela figura.

Esse modelo de herói muitas vezes desafia nossas percepções de moralidade e a ideia do que significa ser de fato um herói. Gostamos de acreditar que eles são sempre bons e que suas ações são sempre justificáveis. Quando um herói falha, isso nos obriga a enfrentar o fato de que ele é humano e é capaz de cometer erros ou agir de maneiras nem sempre nobres. E eu entendo que isso pode ser bem desconfortável para algumas pessoas, e pode ser difícil conciliar essa nova perspectiva com a imagem que se tinha do personagem antes.

O passado sempre cobra o seu preço. Mas podemos aprender com ele.

Muitas vezes eles são um reflexo de nossos próprios fracassos e deficiências. Gostamos de nos ver em nossos heróis e, quando eles falham, isso pode ser um lembrete de nossas próprias imperfeições. Pode ser difícil aceitar que quem admiramos não é infalível, e pode ser uma experiência difícil aceitar o fato de que também não somos perfeitos.

E na moral? Eu não acho que isso seja uma simples questão de expectativas. É comum e natural ao ser humano criar conexões e laços de confiança. É assim com nossos heróis, mas também é assim com nossos pais, amigos, maridos e esposas. A vida não é colorida e você VAI se decepcionar. Cabe a nós saber lidar com isso da melhor maneira possível. E sobre nossas falhas, bem, acredito que elas servem para também nos transformar em pessoas melhores.

Mestre Yoda, Star Wars – Episódio VIII: Os Ultimos Jedi: “Passe adiante o que você aprendeu. Força, maestria. Mas fraqueza, tolice e fracasso. Sim, fracasso acima de tudo…melhor professor, o fracasso é.

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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

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Material de Referência

1 – “Deu a louca na Chapeuzinho” (Hoodwinked), 2005 – Direção: Cory Edwards

2 – The Last of Us (2014), Naughty Dog

3 – The Last of Us Part II (2020), Naughty Dog

4 – Star Wars: Episode VIII – The Last Jedi (2017), Direção: Rian Johnson

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