Sean Baker
Às vezes parece que alguns cineastas são ungidos como os únicos representantes de um certo tipo de cinema, com seu trabalho servindo como um atalho para toda uma tradição. A Itália tem Federico Fellini para o excesso onírico, a França tem Jean-Luc Godard para a experimentação radical e a Coreia do Sul tem Bong Joon-ho para a hibridização sofisticada de gêneros. Por muito tempo, o rosto do cinema independente americano pertenceu a John Cassavetes e, mais tarde, a Jim Jarmusch e Richard Linklater. Mas hoje, se há um cineasta que personifica o espírito da narrativa americana crua, profundamente humanista e de micro-orçamento, esse cara é Sean Baker.
Baker recentemente tem sido bastante criticado por seu mais recente trabalho, “Anora”. Isso de deve à diversos fatores mas, independente disso, acho que compreender a filmografia de um diretor fornece um contexto essencial para interpretar seus trabalhos mais recentes, pois podemos enxergar melhor certas escolhas estilísticas e intenções narrativas. E quando fazemos isso, quando reconhecemos a evolução artística de um diretor e as perspectivas que ele costuma explorar, passamos a apreciar melhor a intenção por trás de narrativas polêmicas ou complexas, o que nos leva a um engajamento mais profundo e informado com seus filmes. Espero colaborar com isso nesse texto.

A ascensão de Sean Baker ao patamar que ele tem hoje foi gradual, muito marcada por um compromisso com histórias sobre pessoas que vivem às margens da sociedade americana. Seus filmes de início de carreira, como Take Out (2004) e Prince of Broadway (2008), foram filmados com orçamentos mínimos, usando atores não profissionais e técnicas de filmagem de guerrilha. Esses filmes focavam na vida de imigrantes não documentados e vendedores ambulantes, apresentando suas lutas com um olhar neorrealista.

Em 2012, com Starlet, a estética tão distintiva de Baker (uma mistura de naturalismo lo-fi e paletas de cores vibrantes) começou a se solidificar. O filme, que aborda a improvável amizade entre uma jovem atriz pornô e uma idosa, estabeleceu as bases das preocupações temáticas que mais tarde definiriam o trabalho do diretor: trabalho sexual, precariedade econômica e os laços formados nas margens da vida americana. Com uma abordagem realista e uma cinematografia naturalista, Starlet tem bastante empatia e cuidado ao tratar de personagens frequentemente marginalizados, um aspecto fundamental no estilo de Baker. É interessante notar também como o trabalho sexual já é explorado por Baker aqui nesse filme.

Então veio Tangerine (2015), o filme que transformou Sean Baker em uma sensação do cinema independente. Tangerine já impressionou pelo fato de ter sido filmado inteiramente em um iPhone 5S, mas sua história é bem mais interessante que isso. O longa acompanha duas trabalhadoras do sexo transgênero ao longo de uma caótica véspera de Natal em Los Angeles. Mais do que um truque estilístico, o estilo de filmagem de mão e hiper-cinético transmite muito bem a energia de suas personagens, interpretadas por Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor em atuações que as revelaram como novos talentos. O sucesso de Tangerine provou que Baker não só levante a bandeira de vozes marginalizadas, mas também é um cara inovador, que consegue expandir os limites do cinema digital de maneiras que poucos haviam tentado antes.

Mas se Tangerine colocou seu diretor no mapa, Projeto Flórida, lançado em 2017 (e o favorito desse que vos escreve), o consolidou como uma força gigante no cinema americano. Projeto Flórida se passa nos motéis de cores pastéis nos arredores da Disney World – temos um texto sobre ele aqui no site. No filme acompanhamos a vida de pessoas e famílias em dificuldades financeiras, tudo pelos olhos de Moonee, uma garotinha de seis anos, interpretada por Brooklynn Prince em uma estreia impressionante. Essa garota merecia um Oscar. Com uma mistura de atores não profissionais e Willem Dafoe num papel excelente como um gerente de motel extremamente compassivo, o filme abordou a de desabrigados ocultos da sociedade américana, mesclando um olhar infantil com um forte realismo. Projeto Flórida rendeu a Baker seu maior reconhecimento até então, provando que ele poderia combinar o cinema independente com um nível de acessibilidade ao mainstream que poucos conseguiram antes.

Em 2021, com Red Rocket, Baker voltou seu olhar para um ex-ator de filmes adultos, interpretado com um desespero frenético por Simon Rex. Filmado no Texas, tendo como pano de fundo a eleição presidencial de 2016, o o filme equilibra humor e tragédia ao retratar um homem agarrado ao seu passado de sucesso enquanto causa estragos na vida daqueles ao seu redor. Embora não tenha a ternura imediata de Projeto Flórida, Red Rocket destacou a fascinação de Baker por personagens moralmente ambíguos e pessoas que a sociedade adora ignorar ou vilanizar, mas que Baker retrata com uma empatia inabalável.

Finalmente, em 2024, Anora levou Sean Baker ao topo. Mais uma vez ele retorna aos seus temas característicos de sobrevivência, exploração e marginalização. Anora acompanha uma jovem trabalhadora do sexo envolvida em um relacionamento precário com o filho de um oligarca russo, numa narrativa que mistura as observações sociais de Baker com sua exploração das dinâmicas de classe e poder. Visto a tragetória e característica narrativa de seus filmes anteriores, Anora não deveria ser nenhuma surpresa – a não ser pelo fato de ser um excelente filme que destaca como o diretor desafiando os limites do cinema independente sem perder o foco de seus personagens. Anora rendeu a Sean Baker 4 estatuetas de Oscar: Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Edição, consolidando de maneira definitiva a carreira do diretor. Você pode ler o texto sobre Anora aqui.

Por fim, o que torna Sean Baker um diretor essencial é sua capacidade de criar filmes que são ao mesmo tempo formalmente inovadores e profundamente humanos. Suas histórias, muitas vezes centradas em personagens que existem na periferia da vida americana convencional, sempre trazem autenticidade e uma conexão emocional muito características de seu estilo. Embora muitos diretores independentes tenham também trabalhado esse espírito dos excluídos da América, poucos o fizeram com a mesma mistura de humor, coração e honestidade que Baker traz para a tela. A questão agora não é se Baker continuará relevante, mas como sua visão vai continuar o cenário do cinema contemporâneo.
Espero ver muitos filmes desse diretor ainda.
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Material de Referência
1 – The Movie Database, Sean Baker.