Projeto Flórida: a vida marginalizada, os sonhos e a resiliência infantil
“The Florida Project” (ou “Projeto Flórida“) é um filme que entrou na minha lista de favoritos imediatamente após eu o assistir. Sabe aquele filme que bate diferente? A sensação de que você acabou de ver algo verdadeiramente bonito? Este é um filme delicado o suficiente para te fazer querer abraçar tudo ali com muito carinho, mas maduro e pesado o suficiente para te fazer se emocionar e testemunhar uma realidade que, muitas vezes, a gente insiste em não perceber. Poucos filmes conseguem capturar uma vida marginalizada e a resiliência da infância como este. Dirigido por Sean Baker, Projeto Flórida surge em 2017 e é um retrato da vida marginal ao sonho americano, contrapondo com um dos cenários mais conhecidos do mundo: a Disney World – o “lugar mais feliz do planeta”.
Em resumo, Projeto Flórida é um drama que retrata a vida de Moonee, de seis anos, e sua rebelde mãe, Halley, que vivem semana após semana no econômico hotel “The Magic Castle”, às sombras da Disney World, em Orlando, na Flórida. Enquanto Moonee e seus amigos vivem suas aventuras e travessuras, Halley enfrenta suas dificuldades do dia a dia. Esse filme não poderia ser mais honesto na sua narrativa e ele nos coloca em um mundo de contrastes gritantes, onde a inocência da infância esbarra na dura realidade da pobreza. Tudo isso, pelos olhos da pequena Moonee.
A inocência infantil pelos olhos de Moonee
Um dos aspectos mais importantes e emocionalmente impactantes desse filme é que ele consegue proporcionar uma visão muito sincera do olhar infantil ao mundo, em meio às circunstâncias desafiadoras que as crianças ainda não conseguem identificar. No centro disso, está a pequena Moonee, e eu preciso ressaltar que a atuação de Brooklynn Prince interpretando essa personagem é uma das coisas mais lindas que eu já vi na vida.
Moonee incorpora o espírito de resiliência infantil. Apesar de arteira e desbocada em um nível bem alto para uma criança, ela permanece extremamente espirituosa, otimista e cheia de energia. É a personificação da ideia de que as crianças possuem uma capacidade inata de se adaptar ao ambiente e encontrar alegria nos momentos mais simples. E a sua imaginação é um componente central da personagem. Ao longo do filme, ela transforma o hotel onde mora em um playground encantador. Sua capacidade de criar um mundo mágico fora do comum mostra como o poder da imaginação de uma criança pode transcender certas circunstâncias. Pontos para Sean Baker, que dirige esse filme nos permitindo testemunhar a alegria e a criatividade desenfreadas que só a infância pode trazer.
Essa inocência de Moonee, no entanto, contrasta com a dura realidade de sua vida. Enquanto sua mãe luta contra a escassez e as duras dificuldades de encontrar recursos no dia a dia, o desemprego e os desafios pessoais, Moonee permanece feliz, inconsciente dessas lutas internas. Essa visão que temos da pequena personagem é uma mistura de angústia com esperança para quem assiste: nos encantamos com o dia a dia de Moonee, mas sabemos também da realidade em que ela vive e onde isso pode parar. E isso é algo surpreendente pois você percebe que, uma vez adulto, você não consegue mais não enxergar os problemas. Nos emocionamos pois, essa capacidade de enxergar a vida tão positivamente pertence apenas às crianças. Ainda assim, em alguns momentos, sinto que Moonee tinha uma leve consciência de sua própria realidade.
“Você sabe por que essa é minha árvore favorita? Porque ela caiu. E ainda continua crescendo.”
Moonee
Portanto Moonee é o nosso alívio daquele mundo. É uma fonte de alegria e riso não só para as outras crianças do filme, mas também para o público. Seu entusiasmo, suas travessuras e suas interações com os amigos pintam um quadro da alegria que a infância pode trazer, mesmo nas circunstâncias mais difíceis e que, como adultos, já não conseguimos mais criar. Sua personagem proporciona momentos de leveza em uma narrativa bastante pesada.
Isso se mostra também no relacionamento de Moonee com sua mãe, Halley, que é bem complexo. Embora suas interações às vezes revelem as dificuldades de um relacionamento entre mãe solteira e filha, elas também ressaltam o profundo amor e a conexão entre elas. O amor de Moonee por sua mãe é tão profundo que transcende a dinâmica familiar. E a gente sente esse mesmo sentimento em Halley que, controversa ou não, possui também um forte amor materno.
A dura realidade da pobreza à margem de um mundo encantado
Projeto Flórida apresenta, de uma maneira crua e bem autêntica, a realidade de pessoas mais marginalizadas, sem romantizar ou sensacionalizar as coisas. Não são pessoas vivendo em extrema pobreza, mas o filme levanta um ponto legal sobre algumas questões cruciais da sociedade.
A narrativa retrata bem a instabilidade financeira que afeta seus personagens. Muitos deles estão presos em um ciclo de empregos mal remunerados, trabalho precário e dívidas crescentes e isso inclui, é claro, Halley. O constante medo de despejo e falta de moradia paira sobre ela e Moonee, gerando um nível constante de insegurança para a jovem mãe. Ela vende perfumes para turistas e outras pessoas nas proximidades do hotel, e embora o filme não se aprofunde em seu passado, fica implícito que ela se envolve nessa atividade para gerar algum dinheiro rapidamente, dada sua situação financeira desafiadora. A personagem de Halley reflete os desafios enfrentados por muitas pessoas em circunstâncias semelhantes que devem recorrer a meios não convencionais para sustentar as suas famílias, pessoas que, muitas vezes, se veem obrigadas a aceitar empregos temporários e mal remunerados que oferecem pouca segurança ou benefícios no trabalho, ou pior, se envolver em experiências ainda mais perturbadoras e perigosas, como a prostituição que, em meio à tantas negativas de um emprego formal, foi o caminho escolhido por Halley na tentativa desesperada de se manter e continuar cuidando da pequena Moonee.
Aliás, esse é um momento do filme que vale a pena estender na reflexão. Embora eu entenda que Halley não é perfeita e discordo sobre alguns de seus métodos de educação em relação à Moonee, Halley, dentro do que consegue e tem recursos para tal, está apenas tentando o seu melhor em uma situação da qual é muito difícil escapar. Obviamente, com sua ficha criminal e falta de educação, não é fácil voltar aos trilhos. Além disso, em todas as cenas que vemos entre Moonee e ela, Halley nunca colocou qualquer fardo sobre sua filha por sua condição de vida atual ou a machucou de qualquer forma. Nunca se “arrependeu de ser mãe” (o que acontece muito). Ela realmente ama Moonee e é esse amor, incondicional e sem suporte, o que à leva a tomar as perigosas decisões que tomou.
Dito isso, precisamos falar sobre Bobby Hicks. Muito bem interpretado pelo incrível Willem Dafoe, Bobby serve como uma presença estabilizadora, paterna e compassiva no filme. Ele é o gerente do Magic Castle e preenche uma “lacuna” entre os adultos e as crianças na história, oferecendo orientação, apoio e proteção, ainda que ele tente a todo momento se impor como uma certa autoridade frente à Moonee e seus amigos – obviamente sem sucesso. Bobby é também uma janela para o mundo adulto do hotel, já que o filme passa bastante tempo focado no dia a dia inocente das crianças. Através deste personagem, nos aprofundamos mais na realidade e nos desafios enfrentados por Haley em seu dia a dia.
O interessante é que o filme não necessáriamente pinta Bobby como um bom samaritano em meio à um ambiente precário. Ele nunca arrisca seu próprio conforto para ajudar Halley e Moonee. Bobby é um homem que realmente se preocupa em ser uma boa pessoa e em tomar decisões morais, mas vive em um mundo imoral e está inteiramente focado em suas próprias ações como indivíduo, e não no sistema em que opera, o sistema que ele literalmente ajuda a gerenciar. Descobrir que uma mãe solteira pobre está fazendo trabalho sexual para pagar o aluguel e alimentar sua filha e ameaçar denunciá-la ao Conselho Tutelar não me parece a melhor forma de ajudar alguém.
E veja, meu objetivo não é criticar Bobby. Ele é legal e respeitoso com todos, é muito, mas muito paciente com Halley e Moonee e a única pessoa que ele ataca é literalmente um pedófilo. Bobby é um cara fundamentalmente decente que só quer fazer o seu trabalho. Mas Projeto Flórida não quer que a gente pense em seus personagens, mas sim sobre seu contexto.
Esse contexto ressoa no silencioso contraste que o filme faz em relação à Disney World. O Magic Castle está em uma localização muito próxima do mundo encantado de Mickey e seus amigos, que não por acaso representa o sonho de muitas crianças. Então é interessante ver como, à poucos minutos do hotel que abriga Moonee e sua mãe, a Disney World se torna uma representação gritante do abismo entre a fantasia e a realidade. Enquanto algumas famílias gastam fortunas para experimentar a magia da Disney, outras pessoas, na mesma vizinhança, enfrentam a dureza da vida na pobreza.
Maternidade e amor em meio ao caos
Além dos desafios financeiros, “The Florida Project” é muito também sobre essa busca de Halley por dignidade. Ela não é uma personagem definida apenas pelo seu estado socioeconômico: é uma jovem mãe que luta por um sentido e respeito em meio a um mundo marginalizador. Apesar de seu estilo de vida pouco convencional, Halley se preocupa profundamente com Moonee tentando sempre protegê-la da dura realidade de sua situação. Enquanto ela faz raiva, engana e tenta escapar dos problemas, ela disfarça seu “jogo sujo” como uma grande aventura para Moonee. É seu instinto maternal a chave para compreendermos essa personagem pois, embora suas ações possam ser vistas como moralmente questionáveis, sua situação desperta empatia no público ao testemunhar sua luta para sobreviver e cuidar de sua filha. Halley é uma personagem incrível, interpretada por Bria Vinaite, e apresenta uma ampla gama emocional, desde momentos de ternura e amor pela filha até explosões de frustração e raiva pelos desafios que enfrenta.
No entanto, o resultado da soma de suas ações e sua realidade, por mais que pareça óbvio, parte o nosso coração e deixa um sentimento frustrante de ver que a sociedade pensa que a melhor solução é separar mãe e filha em vez de ajudar Halley a encontrar um trabalho consistente e um lugar permanente para morar.
Um filme que merece ser assistido
Projeto Florida é um filme que merece ser visto por todo mundo. É uma narrativa super ativista e que confia muito no seu público (até demais, eu diria). Além de mostrar os aspectos mais bonitos da inocência infantil, também retrata o quão feio e brutal o estado de pobreza pode ser para algumas pessoas. É pesado perceber famílias tentando sobreviver em lugares precários, enquanto outras famílias estão por aí vivendo vidas melhores e nunca precisam se preocupar em estar em situações financeiras tão difíceis. E o filme não joga a culpa nessas famílias, mas nos faz enxergar o outro lado da moeda e contribui com nosso raciocínio crítico. Esse filme nunca perde o ritmo ao retratar a escuridão daqueles que vivem em situações difíceis e os atos mais sinistros que alguns cometerão para colocar comida na mesa para aqueles que amam.
É um dos meus filmes favoritos da vida e espero sempre falar sobre ele, seja aqui ou em qualquer lugar.
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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!
Nossa esse filme é sensacional!! Assisti já faz um tempão, mas lembro direitinho de como me senti e a leitura do seu texto trouxe novamente essas sensações. Fiquei admirada na época com a genialidade do filme em contrastar o mundo mágico da Disney com a realidade dura da pobreza. Aquela última cena das meninas correndo em direção a Disney é de cortar o coração né?!
Não sei se você fez essa associação também, mas a experiência da menina lembra muito a visão ingênua de Jean Louise no livro “O sol é para todos”, outra criança narrando temas pesados de violência e injustiça. Mais uma vez meus parabéns pela escrita impecável e por trazer tantas referências incríveis ❤️