O Nu Feminino além da Passividade
Você lembra da primeira vez que viu uma pintura do nu feminino que não parecia suave, recatada ou passiva? Melhor ainda, você lembra da primeira vez que uma pintura de uma mulher nua te deixou desconfortável?
Acho que já vi tantas artes que não passam de soft porn que me tornei quase insensível a isso. O corpo feminino, estendido por séculos de tela, deitado, reclinado, esperando. Já vi Vênus nascer e renascer várias vezes, de diferentes formas e ângulos, representações de Madonas deslizando seus mantos, ou odaliscas me encarando como se eu não existisse. Tem de tudo. Mas, de vez em quando, uma pintura ou outra me para completamente. São pinturas que não me pedem para admirá-las. Não me pedem para simplesmente olhar para a beleza. São pinturas que me desafiam.
Acho que as obras separadas para esse texto conseguem mostrar como a arte é capaz de questionar e desconstruir as dinâmicas de poder tradicionais, expondo as tensões entre desejo, medo e controle.
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Olympia, de Édouard Manet (1863)

Isso deveria ser um território seguro. Uma mulher em uma chaise, nua, exceto por um laço, uma pulseira, um par de chinelos. A pose é familiar—Vênus de Urbino de Ticiano, suave e convidativa. Mas Olympia não se deita. Ela encara. Sem olhar tímido, sem afastamento sonhador. Seu corpo é uma transação, sua expressão, um desafio. O mundo ficou surpreso quando Manet a revelou pela primeira vez no Salão de Paris de 1865, especialmente porque vários detalhes na obra a identificavam como uma prostituta. O escândalo não era a nudez. Era o fato de ela saber que você estava olhando.
L’Origine du Monde, de Gustave Courbet (1866)

Sem rosto, sem nome, apenas carne, descarada e crua. Não há mito, não há desculpa para sua existência além de sua própria fisicalidade. Ela é íntima, mas agressivamente direta. Uma obra que só foi exposta ao público 100 anos depois de feita.
Não é para você. Ela simplesmente é.
Blue Room (1923)

Calma – eu posso explicar. Suzanne Valadon é uma pintora que conhecia as regras do jogo—afinal, ela havia sido modelo antes de se tornar artista. Ela sabia o que significava ser observada – mas ela não tornava suas obras em objetos. Suas mulheres sentam-se curvadas, relaxadas, coçando, se vestindo, existindo. Blue Room (1923) não é uma fantasia, é uma mulher ocupando espaço, estirada em uma cama, totalmente no controle de seu próprio olhar, de seu próprio conforto. Os homens da época pintavam por desejo. Valadon pintava pela realidade. Você pode não ver nudez aí, mas essa é uma obra despida de qualquer senso comum.
Seated Female Nude with Stockings (1918)

Egon Schiele. Se o desconforto tivesse uma pincelada, seria a dele. Seus nus—contorcidos, magros, febris—não oferecem ideal, nem romance. Suas mulheres não estão dispostas para o prazer do espectador. Elas se retorcem e se espalham em uma defesa angular. Seus olhos são ocos, seus membros espalhados, seus corpos não são suaves, mas esqueléticos, urgentes, vivos. Seated Female Nude with Stockings (1918) parece algo que não deveríamos estar vendo, mas não pelas razões usuais. Não é erótico. É exposição—vulnerabilidade pura e sem filtro.
Les Demoiselles d’Avignon (1907)

Picasso destrói o nu. Les Demoiselles d’Avignon (1907) não é um retrato de cinco mulheres—é uma emboscada. Seus corpos são fragmentados, afiados, quase monstruosos. Estas não são figuras envoltas em uma luz suave, esperando para serem admiradas. Elas são irregulares, implacáveis, alienígenas. Seus rostos—meio mascarados, meio rosnando—são distorcidos por influências africanas e ibéricas, tirando qualquer sensação de sensualidade europeia. A pintura não te recebe. Ela te avisa.
Grey Lines with Black, Blue and Yellow, de Georgia O’Keeffe (1923)

E então, uma mudança. Georgia O’Keeffe nunca pintou um nu, mas ela pintou a essência de um. As dobras de uma flor, a curva de uma pétala—sensual, mas nunca submissa. Seu trabalho foi repetidamente reivindicado por críticos desesperados para ver os corpos das mulheres em cada flor. Ela os negou. “É só uma flor”, disse ela. E ainda assim, havia algo revolucionário nisso. Uma mulher pintando suavidade, pintando profundidade, sem permitir que os homens a reivindicassem como sua.
Benefits Supervisor Sleeping (1995)

Lucian Freud pinta a carne não como um convite, mas como peso. Benefits Supervisor Sleeping (1995) não é delicada. É pesada, expansiva, real. Cada dobras, cada vinco, cada centímetro de pele é pintado com o peso da existência. O corpo não é idealizado, não é erotizado, não é feito para consumo. Ele é carne e osso, dormindo sem se preocupar com a aprovação do espectador.
Branded (1992)

Jenny Saville dá continuidade ao que Freud deixou e vai mais além. Seus nus são grotescos, massivos, imponentes. Branded (1992) é um autorretrato de uma mulher segurando sua própria pele, carne pressionada e esticada, inchada e excessiva. As palavras delicada, solidária, decorativa estão escritas em seu corpo—zombando das expectativas impostas sobre os corpos das mulheres, zombando do olhar que tenta defini-las. É o oposto do que o nu feminino foi por séculos. Ele não seduz. Ele confronta.
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Em que momento você para de olhar? Em que momento o nu deixa de ser algo para admirar e se torna algo com o qual se deve lidar? É quando ela para de sorrir? Quando ela para de se deitar? Quando ela para de pedir aprovação e simplesmente existe em sua própria pele?
Para mim, esses pintores—Manet, Courbet, Valadon, Schiele, Picasso, O’Keeffe, Freud, Saville—todos fizeram algo perigoso. Eles quebraram as regras do nu. Eles o despojaram de sua suavidade, de sua passividade, de sua beleza. Eles o transformaram em outra coisa. Algo poderoso. Algo que te encara de volta.
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