CinemaFilosofia

Palm Springs, Sísifo e a nossa busca por significado na vida

Hoje em dia vivemos em um mundo cheio de relações líquidas e responsabilidades que acabam por nos prender em algo bastante repetitivo às vezes. Com isso, a vida frequentemente parece um ciclo interminável e insuportável de rotinas e tarefas repetitivas, onde nossas ações podem parecer sem sentido e nossos esforços fúteis. No entanto, acho que é na nossa capacidade de encontrar propósito e significado dentro dessas repetições que talvez consigamos nos libertar dessas correntes da monotonia e descobrir o poder transformador do momento presente. Isso tem muito a ver com a busca por significado na vida e eu parei para refletir mais sobre isso ao assistir um filme bem legal chamado “Palm Springs“.

Mas antes de falar sobre esse filme, existe um mito filosófico conhecido como “O Mito de Sísifo” que explora a ideia de encontrar felicidade e propósito em situações como essas que falei acima. Curiosamente, o filme “Palm Springs” pega esse conceito e o traz à vida de uma forma bem leve, apresentando personagens presos em um loop temporal que devem navegar pelos desafios de uma existência repetitiva. Portanto, vou jogar dois centavos sobre os paralelos entre mito e filme. Acho que dá um textinho legal.

O Mito de Sísifus

O Mito de Sísifo

Na Mitologia Grega, “O Mito de Sísifo” é uma história que nos conta sobre um homem chamado Sísifo e sua dolorosa tarefa. Você pode ler sobre toda a sua história aqui, mas o ponto que quero pegar é: Imagine que você tem uma grande bola, como uma pedra gigante, e você precise empurrá-la morro acima. Mas toda vez que você quase chega ao topo, a bola rola de volta para baixo. Então você tem que começar a empurrá-la de novo, e de novo, e de novo, para sempre. Puta merda, né? Pois então, Sísifo era um homem que tinha que fazer a mesma tarefa repetidas vezes. Ele tinha que empurrar uma pedra morro acima, mas ela sempre rolava para baixo, e ele começava tudo de novo. Era um trabalho sem fim e deve ter sido muito frustrante e cansativo para Sísifo.

E essa história pode ser vista como uma metáfora para a vida. O filósofo Albert Camus escreveu sobre isso. Ele utilizou o mito como uma alegoria da condição humana e da luta existencial. Em seu ensaio filosófico, ele argumenta que a própria vida é absurda e desprovida de significado ou propósito inerente. Como Sísifo, nós humanos nos deparamos com tarefas e desafios que podem parecer sem sentido e repetitivos. No entanto, Camus sugere que abraçar o absurdo da vida e encontrar sentido e propósito diante do absurdo pode ser o caminho para a verdadeira liberdade e felicidade.

“Esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo? O operário de hoje trabalha todos os dias de sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão de sua miserável condição: pensa nela durante a descida. A clarividência que deveria ser o seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com o desprezo.”

Albert Camus, em O Mito de Sísifo.

É o tipo de coisa que nos ensina que, embora a vida possa ser difícil e às vezes pareça sem sentido, a gente ainda pode encontrar realização nas nossas próprias vidas. Então, a lição é encontrar significado e felicidade no que fazemos, mesmo que pareça que estamos presos em um ciclo sem fim.

Ok, história legal. Mas onde Palm Springs entra nisso? Vou tentar explicar.

Palm Springs e o loop sem fim

Palm Springs” é um filme de 2020, dirigido por Max Barbakow. Do gênero de comédia romântica, ele conta a história de Nyles e Sarah, que se encontram presos em um loop temporal, revivendo o mesmo dia indefinidamente. Lembra muito aquele filme com o Bill Murray, “O feitiço do tempo”. O cenário é um casamento em Palm Springs, onde Nyles está presente como convidado. Quando Sarah é acidentalmente pega no loop temporal, os dois ficam presos em um loop eterno do mesmo dia, acordando todas as manhãs para os eventos do dia do casamento.

Andy Samberg interpreta Nyles de maneira bem divertida.

Enquanto eles navegam naquele ciclo repetitivo, Nyles, que está no loop do tempo há algum tempo, guia Sarah pelas complexidades de sua situação em comum. Inicialmente, eles lutam com a falta de sentido naquilo tudo mas, com o passar do tempo, eles desenvolvem uma conexão entre si e encontram maneiras de se divertir dentro dos limites do loop. Eles se permitem se entregar à comportamentos, digamos, imprudentes, mas também exploram seus desejos e aprendem com suas experiências.

É nesse ponto que o filme leva o conceito de existência repetitiva à um nível literal. Nesse ciclo perpétuo onde Nyles e Sarah estão presos, eles acordam todas as manhãs para os mesmos eventos e experiências, sem conseguir escapar da monotonia. Isso é paralelo à tarefa eterna de Sísifo, enquanto Nyles e Sarah lutam contra a natureza aparentemente sem sentido de toda aquela situação.

Abraçando o presente

Tanto no mito de Sísifo quanto em Palm Springs, os personagens enfrentam uma escolha: se desesperar diante de sua existência repetitiva ou abraçar o momento presente e encontrar significado nele. Sísifo, apesar de sua tarefa sem fim, encontra alegria e propósito no ato de empurrar a rocha, aceitando seu destino e recusando-se a sucumbir à desesperança. Apesar de sua condenação, ele encontra uma alegria silenciosa em seu próprio destino. A rocha, que simboliza sua tarefa árdua e repetitiva, torna-se sua casa, sua realidade. Essa aceitação do absurdo da vida e a busca por significado dentro das repetições são representadas por essa reação de Sísifo. Camus pontua o seguinte em sua obra:

“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla o seu tormento. No universo que repentinamente recuperou o silêncio, erguem-se milhares de vozes maravilhadas da terra.”

Portanto, quando Sísifu contempla seu próprio tormento e a falta de significado em suas ações, ele rejeita os ídolos e ilusões que antes buscava como fontes de sentido. Essa rejeição dos ídolos é uma afirmação da liberdade e autonomia do homem absurdo, que se recusa a ser enganado pelas falsas promessas de significado.

Da mesma forma, Nyles e Sarah em “Palm Springs” inicialmente experimentam frustração e desespero, mas eventualmente aprendem a apreciar as pequenas alegrias e buscam crescimento dentro de seu loop temporal.

Felicidade e significado na vida em meio ao absurdo

À medida que Nyles e Sarah se adaptam à sua situação, eles descobrem que o crescimento pessoal e a conexão podem existir mesmo dentro de ciclos repetitivos. Eles usam seu loop temporal como uma oportunidade para explorar novas experiências, aprender com seus erros e se conectar uns com os outros em um nível mais profundo. Ao encontrar propósito e realização em seus relacionamentos e auto-aperfeiçoamento, eles transcendem as limitações de sua existência repetitiva e esculpem seu próprio senso de significado.

Se voltarmos ao nosso mito, Camus diz que Sísifo ensina uma forma de felicidade superior. Ele nega os deuses, rejeitando a busca por sentido e propósito externos, e encontra alegria em sua própria atividade. Ele encontra satisfação e significado ao erguer as rochas, mesmo que elas rolem de volta para baixo.

Sísifo não vê o universo como estéril ou fútil. Cada grão de pedra, cada fragmento mineral da montanha que ele enfrenta, é um mundo em si mesmo. A luta em si, o esforço para alcançar o cume, é suficiente para encher o coração de um homem. Nesse contexto, é dito que é preciso imaginar Sísifo feliz.

“Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”

Desta forma, “Palm Springs” oferece uma interpretação similar a de Camus em “O Mito de Sísifo”, apresentando a possibilidade de libertação e transcendência da natureza repetitiva da existência. A jornada de Nyles e Sarah demonstra que o crescimento pessoal, a conexão e a busca por significado podem levar à libertação do ciclo de Sísifo, sugerindo que existem maneiras de encontrar resolução e ir além daquela aparente repetição eterna.

O poder do significado na vida e da alegria no ciclo da existência

O ensaio de Albert Camus e o filme “Palm Springs” oferecem perspectivas interessantes sobre como encontrar significado e felicidade em circunstâncias repetitivas e aparentemente fúteis. Assim como Sísifo encontra satisfação no ato de empurrar a pedra, Nyles e Sarah abraçam sua situação e descobrem oportunidades de crescimento pessoal e conexão dentro de seu próprio loop temporal.

É sempre bom lembrar que o trabalho de Camus tem muito mais profundidade e toca em temas atuais e muito mais importantes, como a relação atual de trabalho e proletariado. Vale a pena demais ler o que Camus escreve sobre o mito de Sísifo assim como também vale muito à pena ler outras de suas reflexões.

De qualquer forma, ambas as histórias nos lembram que, mesmo diante dos absurdos e da monotonia da vida, temos o poder de criar nosso próprio senso de propósito, encontrar alegria no momento presente e aproveitar ao máximo nossas experiências, por mais repetitivas que possam parecer. Ainda que, no mundo atual, nossas escolhas e tomadas de decisões sejam limitadas pela desigualdade e exploração capitalista, é sempre bom e gostoso assistirmos filmes assim.

Penso nisso como um ato, mesmo que talvez utópico, de esperança.

***********************

Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

***********************

Um comentário sobre “Palm Springs, Sísifo e a nossa busca por significado na vida

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *