Poderia Hollywood alterar nossa percepção da verdade?
Antes de começar, preciso compartilhar algo que veio à minha cabeça: acho que já usei o Quentin Tarantino como ‘gancho‘ em umas duas introduções aqui na Olhe Novamente e o texto que você está prestes a ler vai usá-lo novamente. Parece que algumas coisas grudam na nossa cabeça, não é? Ou talvez seja o fato de que certas referências são mais marcantes para uns do que para outros, então é natural você repeti-las em sua forma de se expressar. Ou ainda que tudo isso seja somente eu justificando para mim mesmo o fato de novamente usar esse diretor em uma introdução. É divertido, pelo menos.
Indo ao que interessa, o último filme feito por Tarantino (ao menos até o dia em que escrevo esse texto) se chama “Era uma Vez em… Hollywood“. Você já assistiu? É um puta filme (eu amo!) que coloca história e ficção de mãos dadas, pois aqui Tarantino borra as linhas entre fato real e fantasia de uma maneira que só ele mesmo consegue fazer. *Considere bastante spoiler daqui para frente*: O filme se passa no contexto de Los Angeles em 1969 e gira em torno dos eventos que antecedem os cruéis assassinatos da Família Manson, porém com um desfecho beeem diferente da tragédia real e muito mais legal também. No entanto, apesar de o final alternativo do filme proporcionar uma sensação gostosa e satisfatória de justiça, eu fico pensando em como ele também levanta questões importantes sobre o impacto de uma história reimaginada na compreensão do público, especialmente para essa galera mais jovem que pode não estar tão familiarizada com a história verdadeira.
Eu me lembro de que, quando esse filme foi lançado, as opiniões se dividiram bastante, especialmente pelo ritmo, pela forma como Tarantino escolheu narrar sua história. Mas se tem uma coisa que poucos discordaram é que “Era uma Vez em… Hollywood” é uma carta de amor a Hollywood do final dos anos 60. É um filme que exalta o espírito livre e criativo da Nova Hollywood. Inclusive, eu escrevi um pouco sobre isso nesse texto aqui. Tarantino conta sua história através das vidas do ator já em declínio Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu dublê Cliff Booth (Brad Pitt). A jornada desses caras acaba se cruzando com a de Sharon Tate (interpretada por Margot Robbie) e da Família Manson, resultando em um clímax que diverge radicalmente dos eventos históricos. No mundo reimaginado por Tarantino, Sharon Tate não morre e os membros da Família Manson encontram um fim do jeitinho que o diretor gosta: com bastante violência e sangue. Com bônus para o elenco incrível, né?
Pode-se dizer que o final desse filme é uma escolha artística ousada de Tarantino que consegue, em certo nível, subverter as expectativas do público pela forma como ele constrói tudo até o clímax. E acho que dá para dizer também que esse é um final que muitos gostariam que fosse o verdadeiro mesmo. Um final de conto de fadas onde os vilões são derrotados e os inocentes vivem felizes para sempre. Aliás, o próprio título do filme, “Era uma Vez em…”, já nos remete a esse elemento de fantasia, do tipo que se conta a uma criança antes de dormir, trazendo a sensação de um conto de fadas em vez de um relato histórico.
É justamente nesse ponto que o filme me permite introduzir a questão que levantei anteriormente: a distorção de fatos reais. Para aqueles que conhecem a história de Sharon Tate e seu trágico fim, a reviravolta do filme é claramente uma reinterpretação criativa, e não uma representação precisa. Tarantino fez parecido em Bastardos Inglórios. Mas, para quem nunca ouviu falar desses eventos, que realmente ocorreram em 1969, existe um risco de que a versão histórica do filme possa ser confundida com a realidade.
Em minha defesa, essa não é só uma preocupação minha e muito menos nova no campo da ficção histórica, ok? Filmes, seriados e quaisquer outras formas de entretenimento costumam sim “brincar” com os fatos para aprimorar sua narrativa. Isso é legal e eu adoro. Acredito que o perigo surge quando as linhas entre verdade e ficção se tornam tão finas que o público já não consegue mais as distinguir. “Era uma Vez em… Hollywood” é um exemplo legal para refletir sobre isso e abre portas para um olhar um pouco mais amplo: será que Hollywood poderia mudar a nossa percepção da verdade? Principalmente em um momento onde muitas pessoas “aprendem” história por meio de dramas recontados e cortes no YouTube em vez de livros ou estudos sérios.
A Hegemonia Hollywoodiana
Todo mundo sabe (ou deveria saber) que a influência de Hollywood vai muito além das telonas. As histórias produzidas, os personagens criados e os valores promovidos se tornam parte real da consciência coletiva, moldando sutilmente como o público ao redor do mundo percebe a realidade à sua volta. Todo mundo deveria saber também que este é um interesse comercial e industrial, que visa e direciona o LUCRO, portanto, não é como se Hollywood fosse um exemplo da moral e dos bons costumes. Tudo depende do que gera mais grana no fim do dia e, atualmente, ideologias e temas sociais tem gerado muito dinheiro. Vamos falar disso mais para frente.
Uma das maneiras pelas quais isso ocorre é através de uma “hegemonia cultural”. Ou seja, o domínio de certos valores culturais sobre outros. Parece familiar? Bom, filmes hollywoodianos frequentemente refletem as perspectivas e interesses daqueles que controlam a indústria, que no caso são as perspectivas e interesses dos Estados Unidos da América, cuja visão é centrada no ocidente, muitas vezes simplificando ou distorcendo eventos históricos complexos. Isso acaba levando a um domínio de histórias ocidentais, capitalistas e frequentemente brancas — que são constantemente reforçadas, enquanto perspectivas alternativas são historicamente marginalizadas ou até mesmo ignoradas, ainda que isso pareça estar mudando aos poucos.
Hollywood sempre foi uma ferramenta poderosa para a exportação da cultura americana, especialmente nos países em desenvolvimento. Sua influência no público é inegável e seus filmes exportam essa cultura através de suas estruturas, como, por exemplo, incorporando o espírito americano por meio de histórias cinematográficas e ampliando o querido mito do herói. Os filmes de Hollywood retratam um paraíso incrível onde as pessoas são livres, iguais e amigáveis. O herói ajuda as pessoas a defender a justiça e os desejos e sonhos desses mesmos heróis americanos representam os desejos e sonhos de todas as pessoas em todo o mundo. Tudo lindo e perfeito.
Mas a narrativa “bem contra o mal”, massivamente usada em filmes americanos, acaba reforçando uma visão binária de mundo que não leva em conta as complexidades da política global e nem dos contextos históricos. Isso não só influencia como o público entende a história, mas também como ele percebe questões globais contemporâneas ao seu redor.
A capacidade do cinema de provocar respostas emocionais e intensas é uma de suas maiores forças, talvez a mais importante, mas nas mãos erradas, esse poder também pode confundir ficção e realidade. A dramatização de eventos, seja em filmes históricos, biografias ou até mesmo em conteúdos baseados em notícias, é uma bomba de distorção da verdade. Quando uma história é escrita para ter um grande impacto emocional, os fatos podem se tornar secundários em relação à narrativa, e o público pode sair com uma compreensão distorcida do evento ou da questão. Essa é, por exemplo, uma das críticas que o filme Oppenheimer, dirigido por Christopher Nolan, recebeu após sua estreia, com muitos criticando, com razão, a falta de representatividade japonesa naquilo que foi uma aniquilação instantânea de centenas de milhares de vítimas de uma bomba atômica. Já Christopher Nolan diz que o filme se concentra na experiência, nos traumas e na perspectiva do cientista Oppenheimer – uma que é distinta e separada da das vítimas.
“Ele ouviu falar do bombardeio de Hiroshima no rádio quando o [presidente] Truman o anunciou”, explica Nolan, descrevendo como o cientista soube da explosão em tempo real junto com o resto do país. “E essa foi uma das coisas mais notáveis que li no livro, e foi um dos [elementos-chave] que me levou a querer contar a história da forma mais subjetiva possível. Eu queria experimentar as percepções que ele passa a ter e fazer com que o público fizesse isso também.”
Legal, Nolan. O problema é que Oppenheimer não retrata o impacto da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, nem contesta a afirmação de que aquilo foi militarmente necessário. Existe uma grande ênfase nos traumas de Oppenheimer e, embora ele tenha dito ao presidente dos EUA da época que sentia “como se tivesse sangue nas mãos”, ele realmente acreditava naquele projeto.
Mas a verdade é que o trabalho de Oppenheimer matou mais de 200.000 pessoas, segundo algumas estimativas, e muitos continuam a enfrentar os impactos da bomba até hoje. O filme, no entanto, é amplamente considerado uma contemplação dos dilemas morais enfrentados pelo cientista. Oppenheimer foi premiado em Hollywood com o Oscar de melhor filme na edição 96 da famosa cerimônia. Eu me pergunto como a história real será lembrada em alguns anos.
Da mesma forma, filmes de guerra frequentemente dramatizam batalhas enfatizando o heroísmo e o patriotismo, muitas vezes desconsiderando as realidades mais complexas e brutais de uma guerra. Essa manipulação emocional pode criar uma versão da verdade que se alinha mais com a história que Hollywood quer contar do que com os eventos reais.
Svetlana Aleksijevitj é autora de um livro impressionante chamado “A guerra não tem rosto de mulher“, onde ela se propõe a nos contar como a representação feminina é apagada em contextos como os de uma guerra. Muitas das coisas que ela escreve servem também para o cinema americano, onde a guerra é quase sempre vista por um contexto masculino e muitas vezes heroico.
“Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra. Das palavras “masculinas”. Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia perguntas para minha avó. Para minha mãe. Até as que estiveram no front estão caladas. Se de repente começam a lembrar, contam não a guerra “feminina”, mas a “masculina”. Seguem o cânone. E só em casa, ou depois de derramar alguma lágrima junto às amigas do front, elas começam a falar da sua guerra, que eu desconhecia. Não só eu, todos nós. Em minhas viagens jornalísticas, mais de uma vez fui testemunha, a única ouvinte de textos absolutamente novos. E experimentava um espanto igual ao de minha infância. Nesses relatos transparecia o esgar monstruoso do mistério… Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram. Ou perderam. Qual foi a técnica e quais eram os generais. Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana.”
Svetlana Aleksijevitj, em “A Guerra não tem rosto de mulher”
A influência de Hollywood é também ampliada pelo fato de que ela faz parte de um ecossistema maior de conglomerados de mídia que controlam uma parte significativa do conteúdo que é consumido globalmente. E essa concentração de propriedade de mídia tem implicações sérias na diversidade de narrativas disponíveis ao público. Isso porque as corporações possuem um poder significativo para moldar o discurso público ao decidir quais questões destacar e quais minimizar. Essa função de definição de agenda significa que os tópicos que recebem mais atenção são frequentemente aqueles que estão alinhados com os interesses dessas corporações. Assim como notícias sensacionalistas ou fofocas de celebridades podem receber mais cobertura do que questões sociais urgentes, a indústria de cinema também fomenta discussões que são mais favoráveis a ela.
Você provavelmente já ouviu falar da tão temida “cultura woke”. Esse conceito é aplicado a corporações empresariais que aparentemente apoiam, de maneira pública, causas socialmente progressistas. Isso se aplica ao cinema também, já que essas causas podem ser representadas na tela. Achou legal? Em 2018, Ross Douthat levantou um tema interessante em seu artigo “The Rise of Woke Capital” para o The New York Times, o qual ele chama de “Capitalismo Woke”. Este termo se refere a empresas, especialmente multinacionais, que se alinham com os movimentos sociais e, ao mesmo tempo, utilizam esse alinhamento em publicidade generalizada. São interesses próprios e comerciais mascarados pelo que chamamos de “cultura woke”: um exercício de marketing e relações públicas, através do qual as empresas esperam que, ao serem associadas a causas políticas corretas, obtenham o apoio dos clientes e, finalmente, ganhos comerciais. É o capitalismo engolindo as pautas da população. Só que em uma versão mais “progressista” onde o sistema utiliza relações públicas corporativas, bem como ideologias como a responsabilidade social corporativa, a ética empresarial, a cidadania corporativa e etc., para colocar as empresas em um quadro extremamente positivo. Em outras palavras: propaganda.
A importância de narrativas alternativas
Parece que a variedade de perspectivas que temos são bem limitadas, não é? Eu tenho essa sensação. Mas talvez seja justamente aí que mora a melhor alternativa à um cenário como este: buscar novas narrativas e ampliar nossos pontos de vista. Tanto fora quanto dentro de Hollywood.
Quer um exemplo real? Todos os dias mulheres e crianças morrem no genocídio NORMALIZADO que ocorre na Palestina. Digo normalizado pois isso não é segredo nenhum no mundo, mas a vida segue enquanto aquele povo sofre. Os palestinos são marginalizados em todos os meios de comunicação ocidentais, isso inclui o cinema. No entanto, cineastas palestinos possuem um acervo bem legal de filmes que documentam as suas vidas sob ocupação. Filmes que revelam o terror dos postos de controle, o trauma da guerra e os desafios cotidianos de viver num território dominado por soldados armados. Se você acompanha páginas de cinema no Instagram, pode pegar dicas legais e um insight interessante sobre isso nesse post aqui da @cine.kidda. Não se esqueça de seguir ela também!
Voltando às grandes produções, no ano passado, em 2023, estreou o filme Godzilla Minus One. A indústria americana historicamente sempre retratou o Godzilla como uma criatura que ameaça a população e precisa ser derrotada. Mais um ‘filme de monstro’. Não deixa de ser, mas o ponto é que o Godzilla é uma criação japonesa originalmente e possui muito mais sentido do que os que sempre foram retratados em Hollywood. Godzilla Minus One é dirigido por Takashi Yamazaki e esse filme vem dizer justamente isso. Yamazaki decidiu ambientar o filme no Japão do pós-guerra, permitindo que Godzilla Minus One explorasse os temas antinuclear, anti-guerra, trauma, esperança, culpa e redenção. Godzilla também simboliza a perspectiva japonesa do holocausto nuclear no filme, semelhante ao filme original de 1954. Bem mais que um ‘filme de monstro’.
Histórias assim podem proporcionar uma compreensão mais profunda das questões, e com a ascensão tecnológica e o acesso cada vez mais facilitado, essas narrativas têm desafiado a indústria de Hollywood e grandes corporações de mídia, conquistando aos poucos seu espaço. O filme Parasita quebrou barreiras ao ganhar o Oscar de melhor filme em 2019, mesmo sendo um filme estrangeiro. Em 2016, Shin Godzilla, de Hideaki Anno, também já havia trabalhado novas perspectivas, sendo também um filme japonês, com visão japonesa.
Vimos também em Barbie e Poor Things narrativas convincentes que retratam as experiências das mulheres dentro de uma estrutura patriarcal, cada filme explorando os temas do feminismo, identidade e agência através de uma lente que é ao mesmo tempo crítica e existencial. São filmes interessantes e que provocam uma reavaliação profunda dos papéis e espaços que as mulheres ocupam, saindo da narrativa convencional e indo para algo mais amplo dentro do empoderamento e da autodeterminação feminina. Tem coisa legal acontecendo também.
E isso não morre no cinema, documentários independentes também podem oferecer insights sobre questões globais a partir de perspectivas que não são tipicamente destacadas nas produções mainstream. Esses pontos de vista alternativos são cruciais para criar uma compreensão mais abrangente do mundo em que a gente vive. O mundo real. E se engajar com uma variedade de fontes de mídia incentiva o pensamento crítico e a alfabetização de mídia. Quando a gente aceita diferentes pontos de vista, passamos a analisar melhor os motivos por trás do conteúdo, questionar sua precisão e a imparcialidade das informações apresentadas e desenvolver uma opinião mais informada. Isso é essencial no mundo saturado de informações de hoje, onde desinformação e propaganda estão presentes a todo momento no nosso dia a dia. A informação correta é o que nos equipa para tomar decisões, participar dos discursos públicos e responsabilizar quem está no poder, mas precisamos estar abertos a isso.
Eu termino esse texto com as palavras de Bong Joon-Ho em seu discurso no óscar:
“Uma vez que você superar a pequena barreira das legendas, você será apresentado a muitos outros filmes incríveis.”
E é verdade.
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Material de Referência
1 – “Caso Tate-LaBianca“, wikipedia.
2 – “HEGEMONIA CULTURAL E HOLLYWOOD – Como o cinema contribuiu para a identidade cultural norte-americana se popularizar ao redor
do mundo”, Karine Porto Nassif
3 – “Capitalismo woke”, a terra é redonda
4 – “The Rise of Woke Capital”, Ross Douthat (The New York Times)
5 – “‘Oppenheimer’: Christopher Nolan Explains Why The Japanese Perspective Wasn’t Portrayed In His Drama In 1 Hour Q&A”, The Playlist
6 – “Hiroshima e Nagasaki: como foi o ‘inferno’ no qual morreram milhares por causa das bombas atômicas”, Carlos Serrano, da BBC News
7 – “Japan reminds everyone it created Godzilla in ‘Minus One’”, Courtney Lanning e Kyle Kellams, kuaf
8 – “Bong Joon-ho’s Oscars flex was quietly one of the night’s best moments”, polygon.com