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The Last of Us: Quem somos depois de perder tudo?

Talvez você conheça ou já tenha jogado algum jogo da série The Last of Us. Essa história ganhou uma versão própria em Live Action, na HBO. A primeira temporada adaptou o primeiro jogo inteiro, e agora estamos próximos de receber a segunda temporada, que vai tratar dos eventos de The Last of Us Part II. Tudo o que você vai ler daqui para frente diz respeito à essa parte da história, então, tenha consciência de que à partir de agora, você será exposto à spoilers.

Dito isso, na minha versão imaginária de uma continuidade à The Last of Us Part II, Ellie toca violão para viver.

Embora isso não seja verdade, acho que é o mais próximo que ela tem de uma vocação, de algo que conecta seu passado e seu presente. Ela já morou em Jackson, onde os dias seguiam uma rotina, onde ela tinha um propósito, uma vida com significado, até amor. Agora, ela vaga. Não tem amigos, nem lar, e as pessoas que antes a prendiam ao mundo foram arrancadas – por suas próprias mãos ou por forças maiores que ela. Ela se move pelos lugares como um fantasma, faltando-lhe dedos e algo ainda mais profundo, algo invisível. Ellie já foi alguém, mas ainda não decidiu quem é agora.

Do outro lado, temos Abby – uma soldada, ou seja, alguém com um propósito também. Abby cresceu nos escombros do velho mundo, treinada para a guerra, para a vingança, para a sobrevivência. Ela é forte de um jeito que Ellie não é, do jeito que tem que ser. Quando a conhecemos, ela é uma força da natureza, atravessando o mundo sem temer nada nem ninguém. Mais tarde, ela já não está mais tão certa sobre si, Abby se tornou mais suave de maneiras que nunca imaginou que poderia se tornar. Agora ela segura a mão de um garoto e o guia em direção a algo parecido com segurança, algo como redenção. Abby já foi alguém, mas ainda não decidiu quem é agora.

The Last of Us Part II é um jogo sobre ciclos de violência, sobre o que fazemos com nossa dor. Ellie é interpretada por Ashley Johnson, que a dá voz desde os quatorze anos. Abby é interpretada por Laura Bailey, que chegou a receber ameaças de morte simplesmente por dar vida a personagem. Essa dinâmica foi suficiente para afastar alguns jogadores, agravada pelo fato de que, estilisticamente, The Last of Us Part II se recusa a dar a esses mesmos jogadores o que eles querem. É um ato de desafio, de rejeição. É, para ser mais provocativo, um jogo amaldiçoado – mal ajustado e desconfortável de maneiras que parecem quase deliberadas.

Resumidamente, podemos dizer que Ellie perde Joel, a única coisa que realmente ama, e que sua busca por vingança a leva a mais perdas e mais destruição. Ela abandona todos ao seu redor em prol de seu objetivo, enquanto Abby, mais à margem, embarca em sua própria jornada de redenção. No final, Ellie está sozinha, abandonada, e Abby encontrou algo que se parece com paz, embora tenha sido conquistada com muito sofrimento. Às vezes eu me pergunto se Ellie não foi manipulada, se o próprio jogo não a usou sem cerimônia como um meio para um fim. Acho que nunca vou saber ao certo.

Gosto de imaginar, também, outra versão de The Last of Us Part II. Nessa versão, talvez sua violência seja mais do que apenas violência. Talvez haja algo além da brutalidade, algo além da recusa fria do jogo em permitir que alguém vença. Talvez pudéssemos acreditar em suas mensagens sobre perdão e redenção porque a história seria sobre duas pessoas que cometeram erros, embora em proporções diferentes, e não sobre como a dor inevitavelmente gera mais dor. Imagine que você seja, por exemplo, alguém que perdeu algo que nunca mais poderá recuperar e se destruiu tentando preencher esse vazio. Imagine que você seja Ellie – ou Abby.

Duas coisas podem ser verdade ao mesmo tempo. The Last of Us Part II é, literalmente, a fantasia sombria de um mundo sem misericórdia. Mas também é uma história sobre amor, veja só. Um amor profundamente sentido que diz que todos os ciclos, se perseguidos incansavelmente, tornam-se autoperpetuantes, mesmo que o perseguidor não seja, no fim, o autor. E assim como o arrependimento é geralmente intangível, ele também é constante, e nem sempre pelos motivos que a moralidade permite. Muitas vezes, é porque, como no final de Ellie e Abby, algo simplesmente não poderia ser. Não pode ser. Nunca será. É apenas um conto de fadas.

A ideia de que um jogo pode ser “válido”, seja lá o que isso signifique, só porque alguém o viveu, é indulgente e egoísta. Mas a ideia de que ele está errado, em toda a sua crueldade equivocada, é igualmente limitada. Todas as histórias são sobre perda e esperança, e este é um jogo sobre como a vida também é perda e esperança—e condená-lo por isso é um tipo de crueldade. Às vezes a dor de alguém pode ser a vida de outra pessoa.

De volta à minha versão imaginária: Ellie toca violão para viver.

Pelo menos costumava. Agora, não pode mais, o que a torna diferente. Num mundo onde a sobrevivência se tornou a única coisa que importa, a capacidade de criar, de lembrar, é uma fraqueza. The Last of Us Part trata a bondade como uma vulnerabilidade, e entendemos imediatamente que amar algo nesse mundo é correr o risco de perdê-lo. Sabemos quem são os vilões porque eles são retratados pelos olhos de Ellie como pessoas horríveis, mas também percebemos que o próprio jogo vê ser gentil, ser misericordioso, como um pecado.

Ellie não está inacabada porque ainda tem algo a aprender, ela está quebrada. Está cercada pelos ecos de seu passado, por pessoas que tentam alcançá-la e não encontram nada para segurar. O violão, antes um símbolo de sua conexão com Joel, se torna inútil quando ela perde a capacidade de tocá-lo. Mas isso é exatamente o que significa sobreviver aqui: sacrifício, perda, negociados e depois arrancados através da troca de violência e sofrimento. Abby segue um baile similar – parte como vingança, parte porque é a única coisa que ambas podem fazer.

E assim o cliclo continua. Um padrão se estabelece, perguntas são feitas, muros são erguidos e derrubados ao descobrirmos seus segredos. Os termos são deixados intencionalmente indefinidos – Ellie acredita estar justificada em sua busca assim como Abby acredita estar justificada na dela. Elas se espelham, se perseguem, se destroem. Refletem sobre o que foi e o que poderia ter sido.

É interessante notar também como em nenhum momento Ellie pergunta: “Por que eu?”, uma pergunta com a resposta mais banal e aterrorizante possível: porque ela era de Joel, porque é jovem e raivosa e cheia de algo que nunca poderá ser recuperado. Esse é o desconhecido mais conhecido de todos os ciclos de violência: o que reconhecemos, mas escolhemos ignorar e, em última instância, o centro da dor de The Last of Us Part II. O que significa matar alguém que é como você? Será que é sempre uma ilusão imaginar que essa destruição pode ser catártica de alguma forma?

Bom, se o jogo funciona como uma história de amor condenado – amor por Joel, por Dina, pelo passado – isso depende da resposta a essas perguntas. Ellie age de forma terrível, mas sua punição é sua própria infelicidade. Ela recebe o que talvez seja o único final possível, vendo Abby, a quem perseguiu acima de tudo e de todos, uma última vez, assistindo-a desaparecer no horizonte – vingança abandonada enquanto o futuro vai embora. Ellie agora deve viver sabendo que feriu sem motivo ou cuidado, que foi vaidosa e cruel, especialmente quando mais importava.

Isso basta? Podemos ser o mais honestos possível conosco, mas não existe uma honestidade total e sem falhas. A dor de Ellie é inevitável, e esse fim é perseguido com um masoquismo quase implacável—vemos que ela é uma mulher que se alimenta da eliminação, que se deixa definhar, que acredita que amar algo é também destruí-lo, consciente e deliberadamente.

O que o final de Abby sublinha é que ela também sofreu, em silêncio, quando ninguém estava olhando. Ela também amou, com a parte de si que era menos controlada e mais indulgente.

Ellie toca violão para viver.

Mas quem é ela?

No fim, ela não é ninguém. Não é a garota que Joel salvou, nem a mulher que Dina amou, nem mesmo a pessoa que perseguiu Abby pelo país inteiro. Ela é apenas mais uma coisa perdida em um mundo cheio de coisas perdidas.

Ellie deixa o violão para trás, e com ele, tudo o que foi. Talvez, em alguma outra versão dessa história, ela encontre paz. Talvez, em alguma outra versão dessa história, ela aprenda a viver.

Mas The Last of Us Part II não é uma história que permite “talvez”.

É sempre impossível.

Ninguém se machuca dentro da sua própria cabeça.

Você não pode. Você segue em frente.

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