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O Retrato da Tecnologia em Akira e Ghost in the Shell: Nosso Futuro é Cyberpunk?

Tecnologia e inteligência artificial têm sido o tema do momento nos anos recentes. O rápido e assustador avanço dessa área vem trazendo novas perspectivas e, ao mesmo tempo, novas dores de cabeça também. Ferramentas de IA, como ChatGPT e DALL-E, por exemplo, são sistemas projetados para produzir algo novo com base em uma experiência anterior, num sistema de Machine Learning. Ou seja, eles auto evoluem. Muitos desses serviços podem ser acessados ​​online, de forma gratuita ou por meio de uma assinatura de, até então, baixo custo. O fato é que essas ferramentas, por mais simples que pareçam ser seus objetivos, estão moldando nossa forma de se relacionar com a tecnologia.

Inteligência Artificial

E tudo isso ainda é só o começo. Por isso, pode ser difícil entender do que exatamente as IA’s são capazes ou como elas podem (e vão) impactar nossas vidas. O que sabemos é que, até o momento, tudo é bastante impressionante.

De repente nos deparamos com shows ou comerciais de TV que “revivem” artistas do passado, simulações de vozes e deep fakes capazes de enganar até os mais atentos aos mínimos detalhes, fora os milhares de perfis espalhados pelas redes sociais de “pessoas” que literalmente não existem, mas que lucram e possuem milhares de seguidores. É o caso da Aitana: a primeira modelo espanhola gerada por IA, e que chega a lucrar até 10 mil euros por mês. No momento em que escrevo esse post, ela possui mais de 200 mil seguidores no Instagram e suas fotos recebem milhares de visualizações e reações. Ela ainda recebe mensagens privadas de celebridades que não sabem que ela não é uma pessoa real. Pode parecer bizarro, mas isso tem se tornado cada vez mais comum.

Modelos Artificiais
Aitana: a modelo espanhol criada por Inteligência Artificial é um absoluto sucesso nas redes sociais e gera muito dinheiro.

Esse crescimento tecnológico dos últimos anos tem nos revelado um futuro que muitas vezes parece as histórias de ficção científica que costumávamos ler antigamente, mas dessa vez na vida real. Nesse meio, o gênero de Cyberpunk é o que mais me chama atenção. Ele é caracterizado por um futuro distópico onde a tecnologia altamente avançada coexiste com a decadência social. Refletir sobre isso tem se tornado cada vez mais relevante e necessário na formação das nossas percepções dessa nova era digital e existem duas obras maravilhosas ,que eu particularmente amo, “Akira” e “Ghost in the Shell”, que são ótimos exemplos de narrativa Cyberpunk, e trazem alguns insights legais sobre nossa atual trajetória tecnológica.

Uma revolução técnológica

Bom, o século XXI tem sido marcado por esse aumento sem precedentes na inovação tecnológica, desde a inteligência artificial e a realidade aumentada até a biotecnologia e a Internet das Coisas. E isso não necessariamente é ruim, não se pode olhar somente o lado podre da laranja. A tecnologia, a princípio, é uma ferramenta para alavancar as possibilidades que a humanidade tem e sonha em conquistar. Mas o lance aqui é que, à medida que o nosso mundo se torna mais interligado, a linha entre os domínios físico e digital se torna cada vez mais fina, levantando questões sobre as implicações éticas dessa nova onda.

Pesquisando mais sobre isso, encontrei em um artigo sobre IA e Desigualdade Digital escrito por Pablo Amorim no LinkedIn, uma exploração legal sobre como esse avanço tecnológico pode impactar negativamente a sociedade.

“A origem do problema somos nós. A IA pode perpetuar o preconceito humano, o que significa que as tecnologias podem refletir e ampliar preconceitos e desigualdades sociais já existentes. Por exemplo, algoritmos de seleção de empregos podem ser treinados com base em dados históricos de contratação, que podem refletir desigualdades raciais ou de gênero. Isso pode levar a decisões discriminatórias e a uma maior exclusão digital. “

Ainda que a implementação de tecnologias avançadas possa aumentar a eficiência e a produtividade, elas também podem impactar negativamente certos segmentos da força de trabalho. Novas tecnologias podem resultar em uma demanda crescente por trabalhadores altamente qualificados, especializados em áreas relacionadas à tecnologia e inovação. Ao mesmo tempo, trabalhos mais rotineiros e repetitivos tendem a ser automatizados, deixando alguns trabalhadores menos qualificados em situação de vulnerabilidade.

Isso pode levar a uma disparidade econômica mais ampla, onde os trabalhadores altamente qualificados podem prosperar, enquanto aqueles com habilidades mais básicas vão sofrer para encontrar empregos bem remunerados ou com uma remuneração, digamos, ao menos digna. A desigualdade educacional e de treinamento pode acentuar essa divisão, pois aqueles que têm acesso a oportunidades educacionais de alta qualidade terão uma vantagem significativa.

Voltando ao Cyberpunk, esse gênero explora o lado mais sombrio desses avanços, o lado podre da laranja. Ele nos alerta sobre possíveis consequências quando a tecnologia ultrapassa as considerações sociais e éticas.

Akira: Um olhar para um futuro distópico

Akira e Cyberpunk

Akira, de Katsuhiro Otomo, é um mangá inovador e que mais tarde virou um filme de animação que, dentre outras coisas, redefiniu o conceito de Cyberpunk no Japão. Falei um pouco sobre isso no meu artigo sobre estéticas de anime nos anos 90. Enfim, Akira apresenta uma Tóquio distópica em 2019 (originalmente ambientada em 1988), devastada pela corrupção, instabilidade política e um evento cataclísmico. A história gira em torno de poderes psíquicos e tecnologia ultra avançada, refletindo algumas consequências sobre a experimentação científica desenfreada e o potencial de corrupção do poder. Akira serve como um conto de advertência, incitando a sociedade a enfrentar as consequências do progresso tecnológico sem controle.

A inspiração narrativa não surpreende: nos primeiros minutos do filme, uma nuvem em forma de cogumelo e uma luz ofuscante engolem Tóquio. Assim, a ligação entre a identidade do Japão como o único país que experimentou não uma, mas duas bombas atômicas e as tensões globais da Guerra Fria fica mais evidente: os traumas nucleares da sociedade japonesa alimentam esse filme.

Akira

Alta tecnologia e baixa qualidade de vida é, antes de mais nada, uma crítica social. Portanto, dá para entender o Cyberpunk em si como uma crítica social também. Em Akira, a baixa qualidade de vida e a alta tecnologia existem no dia a dia da vida das pessoas comuns, da gangue de motociclistas de Kaneda e das forças militares e policiais opressivas e altamente tecnológicas. O colapso da sociedade é claro: a cidade de Neo-Tóquio está completamente coberta de sujeira, tanto literal quanto metaforicamente. Akira tem referências a drogas, violência urbana e fanatismo religioso. Este caos em que sobrevivem os povos comuns de Neo-Tóquio é fortemente contrastado pelo governo e pelas forças militares. Os que estão sob a responsabilidade do governo destacam-se na multidão com equipamento de choque e armamento avançado.

Por exemplo, quando Kaneda e sua gangue encontram a criança fugitiva, Takashi, e perdem Tetsuo, eles são cercados por forças militares super-armadas em caminhões e helicópteros. Na mesma cena, a turma também encontra uma criança, mais tarde revelada como Masaru, em um dispositivo flutuante autopilotado. Em contraste, mesmo a bicicleta mais tecnológica da gangue, a de Kaneda, simplesmente nem se compara a tecnologia das forças governamentais. No caso de Akira, o Cyberpunk expõe o quadro de um estado policial à beira do colapso e extremamente opressor – e o enredo reforça isso. O filme é uma metáfora muito bem feita para as consequências de uma ganância desenfreada por poder e dinheiro. Assim, Akira existe como uma narrativa que usa os temas clássicos do Cyberpunk, da baixa qualidade de vida e da alta tecnologia, para pintar o quadro de uma sociedade levada ao colapso pela ganância de seu governo.

Opressao em Akira

Ghost in the Shell: Transhumanismo e a natureza da consciência

Uma coisa comum em muitas obras Cyberpunk, sejam japonesas ou não, é o transhumanismo. Isso levanta toda uma questão da identidade, mais especificamente o que significa ser humano num futuro tecnológico e em constante evolução. Se traçarmos um paralelo com a nossa realidade de hoje, em um grau muito menor, é claro, já vemos sinais de pequenas transmutações. Chips para controlar hormônios e nutrientes do corpo e até plásticas, são formas de usar a tecnologia para alterar seu corpo em prol de algum benefício. Já no gênero fictício de Cyberpunk, isso é extrapolado à níveis muito mais avançados, com corpos definidos e altamente avançados substituindo corpos humanos reais. Se você já assistiu Westworld, sabe como é quase impossível distinguir a olho nu um robô de um ser humano, por exemplo.

Westworld
“Wake up, Dolores”

O transhumanismo, dentro do Cyberpunk japonês, é frequentemente explorado através da cibernética, como IA senciente, androides e ciborgues, e, em menor grau, por meio de mutações, como no caso de Tetsuo, em Akira, explorando o grau em que existe a violência extrema ou horror corporal em muitas obras. Assim, robôs e mutantes tornaram-se temas-chave nesse gênero, apontando para uma identidade japonesa em mudança num mundo cada vez mais tecnológico, em que a tecnologia responde diretamente ao toque e influencia diretamente a vida cotidiana, e em que a tecnologia existe em uma combinação Cyberpunk de moda e tecnologia intimamente ligada ao corpo humano.

Cyberpunk - Tetsuo
Cyberpunk: Mutação genética em Akira
Mutação de Tesuo, em Akira.

No japão existe um mercado sexual que se sustenta com robôs criados e usados para o prazer, substituindo uma presença feminina por exemplo. Ou seja, o que o Cyberpunk como ficção ilustra, não é algo distante da realidade de hoje, em 2024.

Interessante e assustador, né? Bom, outra obra que também traz reflexões bem legais e tem bastante influência dentro do Cyberpunk, é Ghost in the Shell.

A história de Masamune Shirow também explora a interseção entre tecnologia e humanidade, mas dando ênfase na natureza da consciência. Situado num futuro onde os indivíduos podem melhorar os seus corpos com melhorias cibernéticas, a história acompanha a agente Major Motoko em um mundo onde as fronteiras entre humanos e máquinas se tornam cada vez mais confusas. O conceito de “fantasma”, ou a essência da consciência individual, levanta questões filosóficas profundas sobre a identidade e as implicações éticas da fusão do ser humano e da máquina.

Ghost in the Shell

Sem querer fazer muita auto propaganda, mas eu também escrevi um pouquinho sobre isso num texto sobre Ex-Machina e Qualia :D.

Mas voltando ao que interessa: Ghost in the Shell usa a tecnologia e o transhumanismo avançado para perguntar o que significa ser humano num mundo altamente tecnológico, e a resposta dada é até simples: “a memória define a humanidade.” No entanto, a obra desafia esta simplicidade, afirmando que a memória é uma definição de humanidade. Major, embora humana, duvida de sua própria humanidade ao longo do filme. Apesar de ter memórias claras, ela duvida que sejam mesmo suas próprias memórias: se o mestre das marionetes é capaz de manipular uma pessoa comum, que não possui o mesmo grau de aprimoramento cibernético que ela, e implantar falsas memórias e personalidades em seu cérebro, Major questiona se o mesmo também não aconteceu com ela.

Em uma de suas conversas com Batou, essa dúvida fica evidente quando Major explica que não há como distinguir seu corpo de um robô totalmente mecânico sem abrir seu cérebro e ver a massa cinzenta por si mesma. Ao lutar contra o tanque nas cenas finais, ela tenta reunir forças para derrotar a máquina e, ao fazer isso, seu corpo convulsiona e se contorce de maneiras desumanas antes de se despedaçar completamente, onde ela fica sem um braço e uma perna.

Essas imagens grotescas agravam as dúvidas que Major tinha. Ela é capaz de exibir uma força tão desumana, a ponto de destruir literalmente a si própria. É um horror que contrasta com a questão da transmutação humana. No mundo de Ghost in the Shell, as linhas entre o homem e a máquina são tão confusas que quase deixaram de existir. As alterações e a destruição do corpo humano no filme existem para ilustrar isso também.

Major - Cyberpunk

Ao contrário de Akira, que procura alertar contra a loucura humana num mundo de alta tecnologia, Ghost in the Shell vem falar sobre um futuro pós-humano onde não é necessária nenhuma distinção entre homem e máquina, IA e criatura viva.

O futuro é cyberpunk

Nos dias atuais, os temas apresentados em Akira e Ghost in the Shell, ainda que estejam relativamente distantes em sua forma literal, tornaram-se assustadoramente prescientes. O cyberpunk, que sempre foi coisa de ficção, agora serve como uma lente através da qual vemos a nossa própria realidade. Questões como a invasão de privacidade, o domínio corporativo e o uso ético de tecnologias emergentes hoje são realidades dentro das discussões sociais e, de certa forma, um espelho para as preocupações que essas duas obras retratam.

A ascensão da tecnologia não só tem remodelado nossa relação com o mundo, criando novas e melhores possibilidades, mas também levanta questões e medos que antes só eram discutidos no campo da ficção. Resta agora saber se vamos lidar com isso de maneira sustentável e, principalmente, ética. Ainda que essas sejam justamente nossas maiores fraquezas como seres humanos.

Uma coisa é certa: O futuro é cyberpunk.

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Material de Referência

1 – EuroNews: Meet the first Spanish AI model earning up to €10,000 per month (https://www.euronews.com/next/2024/01/20/meet-the-first-spanish-ai-model-earning-up-to-10000-per-month)

2 – Pablo Amorim: A revolução tecnológica da IA pode aumentar ainda mais a desigualdade digital (https://www.linkedin.com/pulse/revolu%C3%A7%C3%A3o-tecnol%C3%B3gica-da-ia-pode-aumentar-ainda-mais-digital-amorim/?originalSubdomain=pt)

3 – Wikipedia: Akira (https://en.wikipedia.org/wiki/Akira_(1988_film))

4 – Wikipedia: Cyperpunk (https://en.wikipedia.org/wiki/Cyberpunk)

5 – The Sun: SILICON LOVERS Rise of SEX ROBOTS blamed for turning Japanese people into ‘endangered species’ (https://www.thesun.co.uk/tech/6851057/sex-robots-japan-birth-rate/)

6 – G1: ‘Chip da beleza’ com ocitocina: implante hormonal ‘turbinado’ leva jovem para UTI; veja os riscos (https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/12/15/chip-da-beleza-com-ocitocina-implante-hormonal-turbinado-leva-jovem-para-uti-veja-os-riscos.ghtml)

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