Como um Episódio de Os Simpsons Me Ensinou Mais Sobre a Amizade na Vida Adulta.
Amizade é um assunto que geralmente é fácil e gostoso de abordar. Todo mundo tem amigos, não é? Eu posso dizer com certeza que tenho os melhores do mundo e, talvez por estar ficando mais velho, reflito cada vez mais sobre minha relação com eles e meu papel como amigo. E isso é mais difícil do que eu imaginava porque, à medida que você vai crescendo, as relações vão ficando mais complexas. Assim é a amizade na vida adulta: seus amigos se mudam, se casam, se dedicam mais ao emprego, arrumam filhos. O mesmo com você, sua vida também passa por diversas mudanças e as amizades vão se moldando ao redor disso. Alguns, inclusive, se vão. Perde-se o contato.
De qualquer forma, é muito agradável pensar em nossos amigos. Eu sempre gostei de definir as coisas, ou encontrar definição para elas, e a melhor definição de amizade que eu já vi vem de um livro de terror do Stephen King. No livro “It – A coisa” (sim, aquele do palhaço), em um determinado momento, o King nos dá o seguinte conceito:
“Talvez não exista isso de bons amigos ou maus amigos – talvez existam apenas amigos, pessoas que ficam do seu lado quando você está machucado e que te ajudam a não se sentir tão solitário. Talvez sempre valha a pena temer por eles, e torcer por eles e viver por eles. Talvez valha a pena morrer por eles também, se for isso que tiver que ser.
Sem bons amigos. Sem maus amigos. Só pessoas que você quer, precisa estar junto; pessoas que constroem suas casas em seu coração”
Lindo. De verdade mesmo, é isso o que eu carrego no meu coração quando penso em amizade. E de uma forma geral, independente do gênero, idade ou classe social. Afinal, a amizade não se resume a um espaço pré-definido, não é?
Será que não?
Como homem, por mais que eu cultive amizades incríveis e importantes para mim em qualquer gênero ou classe, eu tenho meus amigos, também homens, com quem divido minhas bobagens de homem, reclamo da vida, discuto algum filme. Mas existe uma coisa na dinâmica das amizades masculinas que a difere um pouco das relações femininas. Já repararam que as mulheres parecem ter muito mais facilidade em trocar sentimentos e até sonhos mais íntimos entre si?
Pode ser um erro de interpretação de minha parte, e talvez até seja, mas eu sempre tive essa sensação. E é um sentimento que faz sentido em certo nível, uma vez que ainda vivemos e somos moldados em uma cultura machista. O machismo não é algo única e exclusivamente relacionado a assédio, lugar de fala ou direitos: ele também está presente de maneira bem consistente nas amizades masculinas. É como se houvesse uma barreira invisível que limita a nós, homens, de sermos mais humanos com nossos amigos do peito. Eu amo meus amigos, mas já me vi em muitas situações em que eu simplesmente não conseguia me abrir ou me expressar de forma mais ampla, por motivos dos quais eu também desconhecia.
Mas é aquela coisa, a gente cresce, envelhece e (espero eu) todos passamos por grandes fases de reflexão. Todos temos essa chave que muda de posição dentro de nós e nos faz reconectar ou repensar a vida, as atitudes, nosso meio. A minha chavinha sempre foi livros, cinema e a arte de forma geral, o que é basicamente o que eu tento refletir aqui na Olhe Novamente (espero não desistir disso). E, no meio disso tudo, outro dia, um episódio de Os Simpsons me pegou forte.
A Saga de Carl e o Valor da Amizade
Cara, apesar de nunca ter assistido de forma síncrona, Os Simpsons é um show que eu sempre gostei de ver e acho que desde sempre tiveram sacadas ótimas dentro do âmbito social. Fora as críticas precisas e bizarras previsões que viraram até meme. A série tem aquela pegada engraçada e cheia de críticas a vários modelos e comportamentos atuais. Mas isso não é segredo para ninguém.
Retomando o tema desse post, assisti ao episódio “A Saga de Carl”. Ele é o episódio 21 da 24ª temporada, explora um pouco do passado do personagem Carl e, de quebra, nos deixa algumas lições.
O episódio começa mostrando como Bart e Lisa estão viciados em um programa animado de monstros de karatê, que mostra criaturas míticas com habilidades de karatê. Marge, que já estava de saco cheio das brincadeiras das duas crianças, decide que eles precisam de algo com mais cultura, então ela leva todos ao museu da cidade. O lance é que a atração daquele dia no museu era justamente a ciência dos monstros de karatê. Não sei qual o seu tipo de humor, mas eu me divirto bastante com esse tipo de coisa.
Nesse mesmo museu, o Homer fica super interessado em um vídeo sobre as probabilidades de se ganhar na loteria e, mais tarde, mesmo com o vídeo concluindo ser burrice apostar em coisas assim, o Homer decide jogar com seus amigos de bar, Lenny, Moe e Carl.
Ocorre que eles de fato acertam o bilhete e decidem dividir a bolada em 4 partes iguais, além de festejar a conquista. O Carl fica encarregado de pegar a grana enquanto os outros preparam a festa. Quando as horas se passam e o Carl não volta, eles percebem que ele havia fugido com o prêmio.
Essa parte eu acho particularmente bem engraçada porque eu tenho um amigo que é justamente quem dizemos que vai fugir com a grana quando desenhamos situações como essa. Esse episódio já foi ganhando minha atenção aí.
Voltando ao enredo, Homer e seus outros dois amigos descobrem que o país natal do Carl é a Islândia, o que foi uma verdadeira surpresa para os 3, e que ele retornou para lá. Eles decidem então viajar até o país gelado e recuperar o dinheiro roubado. Chegando à Islândia, eles descobrem por via de um cidadão local que a família do Carl possui um passado vergonhoso: no passado, eles eram os guardiões das terras islandesas e permitiram que os bárbaros invadissem e saqueassem tudo por lá. Praticamente toda a Islândia odeia os Carlssons e eles vivem isolados do resto das pessoas. Ao finalmente acharem o Carl, ele revela que roubou o dinheiro para comprar uma página perdida das sagas islandesas, a qual sua família acredita que revelaria a verdadeira versão da história, onde seus antecedentes foram, na verdade, grandes e bravos guerreiros que lutaram pela Islândia. O Carl também diz que nunca contou essa história porque eles, na verdade, não eram amigos de verdade. Amigos, segundo o Carl, compartilham sentimentos, esperanças, sonhos. E amigos sabem quando você é da Islândia. Homer, Moe e Lenny, por outro lado, são apenas homens que se sentam em um bar para beber cerveja e falar sobre coisas de homens.
Pois é.
Bom, de início essas palavras não fizeram tanta diferença para os amigos “traídos”, uma vez que eles continuaram querendo a grana de volta. Quando eles veem que o Carl já havia gastado tudo com a página perdida, eles decidem pegar a página dele como punição. A princípio, eles queriam destruí-la, mas Marge, depois de uma ligação, muda um pouquinho a perspectiva dos rapazes e eles resolvem traduzir o conteúdo antes. Ao fazer isso, descobrem que a família do Carl não só colaborou com os bárbaros, se rendendo imediatamente a eles, mas também os ajudou a entrar na Islândia, sem qualquer resistência, para saquear, roubar e queimar os vilarejos. Seus antepassados decidiram também escrever essa “saga” para que ninguém se esquecesse desse ato de traição e covardia. Isso comove Homer, Leny e Moe, que percebem que o Carl fez tudo o que fez em vão. Movidos por um sentimento de compaixão, eles decidem ajudar.
Homer e seus amigos reúnem todo o povo da Islândia (que não são muitos) em uma praça pública e revelam todas as boas ações que o Carl já fez por eles. O Carl ajudou o Leny na mudança de casa, ajudou o Moe a pintar as janelas e sempre deixava as cervejas que sobravam das resenhas na geladeira do Homer para que ele pudesse beber mais tarde. Impressionados por tantas coisas boas, os cidadãos islandeses perdoam oficialmente os Carlssons e sua reputação é limpa. O Carl, comovido pelo esforço de seus amigos, os perdoa e a amizade dos quatro é finalmente reconciliada.
De volta a Springfield, Homer e seus amigos celebram o aprendizado do verdadeiro valor da amizade.
Homens, Coisas de Homens e Nossos Demônios
Esse episódio mexeu tanto comigo que, não só me motivou a escrever tudo isso, como também me trouxe muito a refletir.
As relações de amizade, principalmente entre homens, podem às vezes ser mais vazias, justamente por conta de estereótipos sociais ou ideias que construímos ao longo da adolescência e que acabam nos desencorajando de expressar vulnerabilidade e emoções. Homens tendem a ser condicionados a priorizar o trabalho, conquistas, posição ou, como definido nos Simpsons, “coisas de homem”. Tudo isso em detrimento a conexões mais emotivas e íntimas, dificultando as amizades masculinas de terem mais profundidade e significado.
Homens tem essa dificuldade de se abrir em relação a sentimentos, algo que, no meio feminino, é mais comum e natural. E isso está muito atrelado as construções um tanto machistas que vamos criando ao longo da adolescência.
Mas como contornar esse tipo de pensamento e comportamento? Bom, precisamos o mais cedo possível nos esforçar para criar conexões mais verdadeiras e aceitar nossas vulnerabilidades dentro das nossas amizades. E isso envolve ser mais aberto sobre assuntos pessoais, ter mais empatia e criar mais oportunidades para momentos mais profundos de conversa e troca de experiências. Isso é ser adulto e isso nos transforma em homens melhores do que jamais imaginamos. O que também me leva a outra questão.
O Nosso Papel na Amizade e o Valor da Virtude
Qual o nosso papel como amigo, especialmente na vida adulta? O que temos a oferecer? Será que é só a zoeira, as piadas, o futebol?
É muito comum sairmos com um amigo, passarmos horas bebendo e conversando, mas no final, perceber que falamos, falamos e falamos, mas nada foi dito de verdade. Ficamos presos nas mesmas piadas, nos mesmos dilemas ou em assuntos que não geram valor recíproco. E cabe a nós percebermos esses comportamentos.
Puxando um pouco o lado da filosofia, gosto muito da visão de Aristóteles sobre a amizade. Ao longo de sua vida, cheia de reflexões, é claro, Aristóteles também pensou sobre a amizade. E ele a definiu em 3 tipos: A amizade baseada em utilidade ou interesse, a amizade baseada em prazer e, por último, a amizade baseada na virtude.
No primeiro tipo, a amizade se baseia na utilidade que o outro tem para você. Sua relação com o amigo só existe por conta dos benefícios que ela proporciona. Aquele amigo do serviço que te ajuda com algo, você também o ajuda e no fim é isso aí. Não se criam laços mais profundos.
A amizade baseada no prazer não tem nada a ver com um sentido sexual. Aqui, Aristóteles se refere a algo mais amplo. O amigo que só é seu amigo por que te faz rir ou por que é seu companheiro de bar, ou balada. Homer, Leny, Moe e Carl, por exemplo, estavam dentro desse espectro e, ao final do episódio, entenderam a necessidade de se conhecer melhor.
E aí temos a amizade baseada em virtude. Essa é verdadeira forma da coisa. Aqui, o principal fator é o valor e a virtude de cada pessoa. E a amizade é consequência disso. Não há interesse ou prazer em algo específico, não há utilidades. Há aqui a comum vontade de ver a outra pessoa bem, de querer ouvi-la, de querer compartilhar experiencias de maneira genuína e, principalmente, virtuosa. Sem falsas intenções ou amarras.
E cara, é muito importante a gente identificar nossas amizades. Obviamente não tem nada de errado em ter amigos que são do trampo ou da cerveja. Isso é absolutamente natural. Mas é importante observarmos as nossas virtudes também e buscar mais virtudes naqueles amigos dos quais consideramos chave na nossa vida. Amigos que, como disse Stephen King, construíram suas casas no nosso coração. Escutarmos mais, sermos mais honestos, encorajar, celebrar os sucessos e ajudar em tempos difíceis.
E como homens, reconhecer os valores emocionais das nossas relações e entender os desafios e expectativas que nos limitam de criar amizades com mais significado. Os benefícios de uma amizade de verdade são infinitos e nos dão força para enfrentar qualquer coisa na vida.
Será que o Frodo conseguiria destruir o anel sem a amizade do nobre Sam? Bom, isso já é assunto para outra resenha…
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Material de Referência
1 – Livro: “A Coisa” (1986), Stephen King
2 – Os Simpsons S24E21: “A Saga de Carl“
3 – Filosofia e Psicanálise: “As três espécies de amizade em Aristóteles” (https://www.filosofiaepsicanalise.org/2008/09/as-trs-espcies-de-amizade-em-aristteles.html)
Ameii seu texto! Sempre que dá faço questão de ler e comentar sobre o que você escreve 😉
Simpsons tem meu coração, assitia desde pequena, apesar de não ser indicada para crianças hehehe
Esse episódio do Carl também me fez refletir sobre amizades na vida adulta, percebo essa dificuldade de expressar emoções em um grupo de homens. No meu convívio pessoal, naquelas reuniões de família sempre se junta um grupinho de homens para falar de futebol, conserto de carro e outras coisas semelhantes. Nada de muito profundo ou significativo como você explicou. E do outro lado as mulheres desabafando suas amarguras e também invejando ou criticando outras rsrsrs
O máximo de expressividade emocional entre homens que já vi foi através da ficção com o Clube da Luta, não sai da cabeça aquela cena do protagonista chorando igual bebê nos peitos de outro cara. Enfim, cômico e trágico. Espero que um dia não seja mais tabu falar sobre os pensamentos e sentimentos verdadeiros em uma roda de amigos, Stephen King é mestre em mostrar essas amizades baseadas na virtude. “Conta Comigo” é outra obra impecável desse cenário.
Sortudos são os amigos do Stephen King, inveja boa 😉
Abç!
Ei, Jordana! Obrigado pelo comentário!! Fico feliz que goste dos textos =)
Esse foi o meu primeiro texto aqui, entao o ponta pé inicial da Olhe Novamente veio com ele, recentemente revisei mas ainda guardo um carinho muito grande com esse texto e com o que eu aprendi nesse episódio de Os Simpsons. E que legal que voce percebe as mesmas coisas, isso reforça a linha de raciocínio.
Um forte abraço!
Ameii seu texto! Sempre que dá faço questão de ler e comentar sobre o que você escreve 😉
Simpsons tem meu coração, assitia desde pequena, apesar de não ser indicada para crianças hehehe
Esse episódio do Carl também me fez refletir sobre amizades na vida adulta, percebo essa dificuldade de expressar emoções em um grupo de homens. No meu convívio pessoal, naquelas reuniões de família sempre se junta um grupinho de homens para falar de futebol, conserto de carro e outras coisas semelhantes. Nada de muito profundo ou significativo como você explicou. E do outro lado as mulheres desabafando suas amarguras e também invejando ou criticando outras rsrsrs
O máximo de expressividade emocional entre homens que já vi foi através da ficção com o Clube da Luta, não sai da cabeça aquela cena do protagonista chorando igual bebê nos peitos de outro cara. Enfim, cômico e trágico. Espero que um dia não seja mais tabu falar sobre os pensamentos e sentimentos verdadeiros em uma roda de amigos, Stephen King é mestre em mostrar essas amizades baseadas na virtude. “Conta Comigo” é outra obra impecável desse cenário.
Sortudos são os amigos do Stephen King, inveja boa 😉
Abç!