Artes

Os Vitorianos e a arte como ferramenta social

Uma vez escrevi um texto aqui na Olhe Novamente questionando se arte pode “prever o futuro”. Bem, a arte não exatamente prevê coisas, mas ela pode ter bastante influência no futuro. Foi o que os artistas vitorianos também pensaram. No auge da Revolução Industrial, quando a Grã-Bretanha enfrentava a pobreza, fome e doenças, a arte se tornou mais do que uma forma de expressão estética; ela se transformou em uma ferramenta poderosa para a mudança política. Artistas vitorianos, movidos por um senso de responsabilidade moral, passaram a ver suas obras não apenas como decoração, mas como um meio capaz de abordar os males sociais e moldar o futuro da sociedade.

O meio do século XIX foi um período de extrema agitação política e desigualdade social na Grã-Bretanha. Embora a Revolução Industrial tenha gerado imensa riqueza para alguns, ela deixou muitos outros presos à pobreza, trabalhando em condições deploráveis. Fomes, cidades poluídas, depressões financeiras e o abismo entre ricos e pobres foram os cenários da vida vitoriana. À medida que as realidades da industrialização começaram a afetar as classes trabalhadoras, um número crescente de movimentos sociais surgiu, exigindo reformas e ação. O surgimento de jornais e investigações públicas revelou as terríveis condições de vida dos pobres, proporcionando ao público uma visão sem precedentes dos problemas sociais.

Esse período de conscientização crescente deu origem a uma nova compreensão sobre a arte. Para muitos artistas da época, o papel tradicional da arte — focado principalmente em retratos, temas históricos e beleza idealizada — começou a se transformar. A arte deixou de ser apenas sobre agradar os olhos: ela se tornou uma força para a mudança social, capaz de despertar emoções, provocar reflexões e até mesmo incitar ações. Os artistas vitorianos acreditavam que tinham a responsabilidade de usar suas plataformas para chamar atenção para as questões mais urgentes do momento.

A condição dos trabalhadores e dos pobres era um tema-chave na arte e literatura vitorianas. Enquanto os reformadores sociais trabalhavam para reportar ao governo, escritores e artistas se engajavam com o projeto maior de facilitar a mudança aumentando a conscientização sobre as condições de pobreza, essencialmente educando as classes médias sobre como aqueles “moradores em diferentes zonas” viviam suas vidas.

George Frederic Watts exemplificou bem essa mudança de propósito. Sua pintura Song of the Shirt (1847), por exemplo, retrata a exaustão de uma costureira que trabalhava em condições cruéis. Inspirada por um relatório que documentava a severa exploração de mulheres nas indústrias de costura, a pintura de Watts trouxe à tona as injustiças enfrentadas por essas trabalhadoras. A imagem de uma mulher curvada sobre a máquina de costura, cercada por um ar de desolação, se tornou um símbolo do sofrimento da classe trabalhadora. Watts não queria apenas representar aquela dura realidade, ele esperava que, ao fazer isso, sua obra inspirasse ação e arrecadasse fundos para a caridade.

Song of the Shirt”, por George Frederic Watts

Os artistas estavam profundamente envolvidos na crença de que suas obras poderiam alcançar e influenciar os membros mais poderosos da sociedade. Muitos exibiram suas pinturas em locais prestigiados, esperando chamar a atenção daqueles que tinham os recursos para promover mudanças. A arte já não era mais apenas para o prazer privado, ela se tornava um meio de educar e mobilizar o público, incluindo as figuras influentes que poderiam abordar as causas profundas da pobreza e desigualdade. Quando passaram a usar sua arte como uma ferramenta de ativismo político, esses artistas buscavam trazer os problemas sociais para o centro da consciência nacional.

As Exposições da Royal Academy, em particular, tornaram-se um espaço onde os problemas sociais contemporâneos foram exibidos como nunca antes. Na década de 1870, o crítico John Ruskin observou que as paredes da exposição estavam repletas de cenas sociais, como se fossem representações visuais de um jornal, cheias de imagens de problemas sociais como a pobreza e as condições de trabalho. Essas pinturas já não eram mais apenas representações históricas ou paisagens românticas, elas refletiam as preocupações imediatas da sociedade.

Um dos artistas mais famosos a usar o realismo para abordar questões sociais foi Luke Fildes. Antigo artista gráfico de jornais, Fildes ficou conhecido por suas representações ousadas da pobreza. Sua pintura de 1874 Applicants for Admission to a Casual Ward mostrava um grupo de pessoas desesperadas e exaustas fazendo fila para abrigos de rua. Fildes buscava despertar a compaixão nos espectadores ao retratar a humanidade crua daqueles que precisavam de ajuda. Embora alguns críticos tenham achado a pintura desconfortável, outros ficaram emocionados com sua intensidade, que era quase uma convocação à audiência para agir.

Applicants for Admission to a Casual Ward, por Luke Fildes

Thomas Kennington, por outro lado, usou a idealização para chamar atenção para questões sociais. Em sua obra de 1891 The Pinch of Poverty, Kennington retratou uma doce menina que vendia flores para ajudar sua família. Embora a família esteja vestida com roupas bem velhas, mostrando que estão passando por momentos difíceis, ela é retratada da forma mais atraente e simpática possível para ganhar a compaixão do espectador. A pintura sugeria que o público tinha um papel a desempenhar para aliviar o sofrimento da família, incentivando-os a agir por meio de doações ou reformas sociais.

The Pinch of Poverty, por Thomas Kennington

Os artistas vitorianos também estavam conscientes das crises de saúde pública de seu tempo. A pintura de William Austin Atkinson, The First Public Drinking Fountain (1859), ofereceu uma mensagem direta ao público: o cólera estava se espalhando por meio da água contaminada, e a solução era a ação coletiva. A pintura comemorava a inauguração da primeira fonte pública de água potável de Londres, no bairro de Holborn, que forneceu água limpa para todos, independentemente da classe social. Nela vemos pessoas de todas as classes sociais usando a fonte juntas. Dessa forma, Atkinson enfatizou a importância da higiene pública e a necessidade de superar as divisões de classe em prol de uma saúde pública melhor, mais justa e mais adequada.

The First Public Drinking Fountain, por William Austin Atkinson

A arte sempre foi uma ferramenta crucial para confrontar e desafiar o status quo e os artistas vitorianos fizeram muito bom uso de seu poder para despertar emoções, aumentar a conscientização e gerar discussões que poderiam levar a mudanças reais. Por meio de pinturas, gravuras e outras formas de arte, eles criaram um diálogo visual sobre questões sociais que ressoou além de seu tempo. O impacto de suas obras nem sempre foi imediato, mas elas plantaram as sementes para a reforma social. Eles buscaram desafiar as atitudes predominantes de seu tempo e promover um futuro em que a empatia e a ação pudessem resolver as injustiças sociais que testemunhavam em sua época. Muitas das condições retratadas ali ainda seguem vivas hoje, mesmo depois de tantos avanços.

Esses artistas, acima de qualquer coisa, entenderam que a arte não apenas reflete o mundo — ela pode ajudar a transformá-lo.

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Material de Referência

1. Olhe Novamente, “Pode a arte prever o futuro?”

2. Wikipedia, “Labour movement”

3. “The Industrial Revolution and Its Impact on European Society” (PDF)

4. Watts Gallery – Artists’ Village, “Art and Action: Making Change in Victorian Britain”

5. Dispelling the Myths Surrounding Nineteenth-Century British Art – “Social Realism in Victorian Painting” (PDF)

6. The Victorian Web, “Social Commentary and Victorian Illustration: The Representation of Working Class Life, 1837–1880”

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