Anora e o conto de fadas do mundo moderno
Estou escrevendo este texto após a noite do Oscar. Se você gosta de acompanhar a cerimônia, eu diria que, a essa altura do campeonato, você provavelmente já sabe que o último filme de Sean Baker, Anora, foi o grande vencedor da noite. Não me surpreende. Anora é um ótimo filme, muito descrito por aí como “um conto de fadas da vida real” (ou algo do tipo).

Interessante isso. Quando falamos em “conto de fadas”, algo muito específico costuma surgir na imaginação moderna: encantamentos, magia, o triunfo do bem sobre o mal… o beijo de um príncipe encantado. Por essa perspectiva, dizer que Anora é um conto de fadas parece até um mega exagero. Tecnicamente falando, um conto de fadas é uma narrativa estruturada em torno do destino, da boa fortuna e da transformação. Então, é compreensível questionar essa categorização em um filme como esse. Quer dizer, pode um conto de fadas existir em meio a clubes de strip e oligarcas russos? Será que a história de Anora pode pertencer à mesma tradição de Cinderela ou A Bela Adormecida?
Marina Warner é uma escritora de ficção, crítica e historiadora. Suas obras incluem romances e contos, bem como estudos sobre arte, mitos, símbolos e, veja só, contos de fadas. Em seu livro Once Upon A Time: A Short History of Fairy Tale, Warner sugere que os contos de fadas muitas vezes foram roteirizados ou escritos pelas classes mais baixas, com saltos imaginativos no centro de seu propósito. Eles contêm contos de advertência — não no sentido de uma vida após a morte, mas mais sobre como sobreviver aos perigos terrestres. Anora, nesse sentido, é um tipo de conto de fadas. Só que não da forma como estamos acostumados.
Nas palavras de Warner:
“Contos de fadas são histórias que tentam encontrar a verdade e nos oferecem vislumbres de algo maior – este é o princípio que sustenta sua presença crescente na literatura, na arte, no cinema, na dança, na música. Os contos costumavam ser luz em meio à escuridão. Mas a aversão a promessas superficiais e soluções fáceis em tempos de conflito, desastres ecológicos e outras dificuldades está podando as asas dos contos de fadas. A esperança pode parecer uma falsidade deliberada.”

“Falsidade deliberada” talvez seja o termo certo para definir a história de Anora. Como tantas outras antes dela, a protagonista Anora (Mikey Madison, anotem esse nome!) ou, simplesmente, “Ani”, é uma stripper do Brooklyn, de língua afiada e uma dureza que claramente a vida a levou a ter. Em uma certa noite de trabalho, ela conhece Ivan, o filho doce e ingênuo de um oligarca russo bilionário, que imediatamente se apaixona por ela. Cair nas graças de um mini-bilionário não é algo que acontece todos os dias. Ani e Ivan passam, então, a se encontrar diariamente, e o que era para ser um acordo de exclusividade entre uma garota de programa e um cliente se transforma em algo muito mais intenso. De repente, em um fim de semana avassalador, Ani e Ivan se casam em uma capela de Las Vegas.


Sabe, geralmente o casamento é aquele momento em que um conto de fadas anuncia seu clímax, seu final feliz. Se Sean Baker tivesse escrito um conto de fadas convencional, esse seria o momento em que Anora é finalmente salva de sua terrível rotina, na qual seu explorado corpo é sua fonte de renda. Mas o diretor inverte isso em seu filme: no conto de fadas de Ani, seu casamento é somente o começo de seu pesadelo: quando a fantasia acaba e o mundo se fecha sobre ela. No momento em que a família de Ivan — liderada por seu ameaçador pai, sua intragável mãe e capangas russos nada habilidosos no que fazem — chega para arrancá-lo desse relacionamento e desfazer seu casamento, a história se transforma em outra coisa: uma caçada, um estudo de poder e uma negociação pela sobrevivência de Ani, que, nas palavras do oligarca russo, é “só uma prostituta”.
Não há sapatinhos de cristal em Anora, nem transformações mágicas — e muito menos príncipe encantado, já que Ivan se revelou ser o que esperávamos: um garoto mimado, imaturo e que nunca vai ter coragem de confrontar seus pais. O senso de encantamento do filme, então, vem de algo muito mais precário: a completa imprevisibilidade da protagonista, cujos instintos oscilam entre desafio, submissão e manipulação numa velocidade incrível. Se vamos dizer que Anora é uma protagonista de conto de fadas, ela definitivamente não é do tipo passivo, que espera ser resgatada. É ela quem cria sua própria sobrevivência. Mas, por trás de tudo isso, está a compreensão de que, para mulheres como ela, cujo trabalho e valor estão atrelados ao seu corpo, finais felizes são lugares conquistados, não concedidos.

Lembra de A Bela Adormecida? Uma garota é amaldiçoada a cair em um sono encantado. Em Anora, a maldição não é um feitiço, mas um sistema. Não é o sono, mas sua sobrevivência, seu dia a dia. Por mais esperta e adaptável que seja, Ani está presa às limitações do mundo em que vive: à consciência de que os homens ao seu redor a veem como descartável, de que seu corpo é seu sustento, amarrada à ilusão de que seu casamento, por mais absurdo e impulsivo que seja, pode ser sua única chance de algo melhor na vida.
Marina Warner também diz que contos de fadas são repletos de transformações. Não vejo Anora como uma história de transformação, mas sim de adaptação. Este é um filme sobre uma garota que, ao se ver diante de homens poderosos que a enxergam como nada, encontra maneiras de se tornar indispensável, de virar suas próprias percepções contra eles. Se, em um momento, ela é a dançarina sexy de olhos arregalados, empolgada com o vislumbre da riqueza, no seguinte, ela é calculista, perspicaz. Ani se torna aquilo que a situação exige que ela seja. Diferente de Cinderela, aqui não há fada madrinha, nenhuma força externa concedendo a Anora um momento de graça. Em vez disso, ela precisa ser sua própria fonte de magia, correndo atrás não de Igor, o moleque inconsequente que fugiu do papai, mas da possibilidade de um final que não a deixe destruída.
O sapatinho de cristal, em Anora, não é um objeto, mas uma ideia: a chance de fuga, a esperança de que uma história possa terminar de maneira diferente do que se esperava. Só que, quando sua sobrevivência depende de adaptação, de se modificar a todo momento, quem é Anora de verdade? Existe um “eu” além das performances de striptease? Talvez só o ótimo personagem Igor, interpretado por Yura Borisov, tenha enxergado esse outro lado.

Dito tudo isso, o que significa então, para uma garota como Anora, ter um final feliz? Sean Baker não traz essa resposta. Nem tenta. Em vez disso, Anora permanece na tensão, nas contradições, na consciência de que, em uma vida assim, a própria sobrevivência pode ser o mais próximo de um conto de fadas. É o que acontece ao final desse filme. A sensação é que o futuro de Ani segue incerto, mas sua história ainda não acabou.
Como todas as princesas de contos de fadas antes dela, Ani ainda está buscando o final que merece.
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