A Influência do Gênero e suas Perspectivas na Arte
No meu último post aqui, escrevi sobre o papel do horror na sociedade e como ele funciona como uma janela para nossa condição coletiva. Mas isso não se aplica somente a esse gênero em específico – isso se aplica à arte de forma geral, que serve como uma janela para a experiência humana, refletindo nossas perspectivas culturais e sociais. Mas ela também se aprofunda ao nível pessoal, expressando não somente a criação de um artista, mas também a sua visão individual sobre aquilo que ele quer representar.
A arte muitas vezes retrata o gênero em papéis e estereótipos específicos. Artistas femininos e masculinos podem trazer perspectivas diferentes para a representação de certos temas, refletindo expectativas sociais e dinâmicas de poder. Por exemplo, o olhar masculino sempre foi um ponto de crítica, onde as mulheres são retratadas a partir de uma perspectiva masculina, muitas vezes como objetos de desejo. Por outro lado, as artistas femininas podem desafiar estas representações tradicionais, oferecendo pontos de vista alternativos que refletem as suas experiências.
Esse é o caso da história de Judite e Holofernes, representada pelos artistas Michelangelo Merisi da Caravaggio e Artemisia Gentileschi, onde o contraste entre duas obras diz muito mais do que o vemos em tela.
Judite e sua…carreira artística?
“O Livro de Judite” é um dos livros deuterocanônicos do Antigo Testamento da Bíblia Católica. Considerado um livro apócrifo na visão protestante, ele possui 16 capítulos – prometo deixar um link no fim do texto sobre isso, eu não saberia nem por onde começar a explicar tantos termos bíblicos.
Enfim, o livro gira em torno de Judite, uma viúva linda e sábia que fica indignada com os anciões de sua cidade quando eles “testam” Deus em vez de confiar Nele e decidem se render ao principal general do rei Nabucodonosor, Holofernes, se Deus não salvar Israel em cinco dias. Nabucodonosor era o rei da Assíria, e pretendia conquistar e manter uma soberania política sobre todas as nações do mundo ocidental.
Judite sente que dar a Deus esse prazo é algo arrogante e extremamente inapropriado. Ela diz aos anciões que possui um plano, mas que precisa deixar a cidade para ter sucesso. Judite vai com sua leal empregada ao acampamento de Holofernes, com quem aos poucos vai se envolvendo, prometendo-lhe informações sobre os israelitas. Ganhando sua confiança, ela consegue acesso à barraca dele em uma noite, enquanto ele estava completamente bêbado. Lá dentro, ela o decapita e depois leva sua cabeça de volta a sua cidade. Os assírios, tendo perdido o seu líder, se dispersaram, Israel é salva e Judite se torna uma heroína.
Existem algumas observações sobre a canonicidade dessa história dentro da bíblia, dentre outras considerações católicas a serem feitas, mas isso não vai ser explorado aqui.
O lance é que, ao longo da história, Judite e seu feito foram representados de várias maneiras nos movimentos artísticos. Na Idade Média, ela foi celebrada por sua natureza virtuosa, muitas vezes comparada à Virgem Maria devido ao seu celibato, que é quando uma pessoa se compromete em não se casar ou manter relações sexuais com outra. Os manuscritos a retratavam como uma figura vitoriosa sobre Holofernes, incorporando qualidades como humildade e valor.
Na Renascença, a representação de Judite tornou-se mais politizada. Ela simbolizou a força de entidades menores contra a tirania. Muitos artistas a enfatizaram como uma guerreira forte, ao mesmo tempo que a ligavam às deusas clássicas, refletindo poder e sedução. Com o passar do tempo, suas representações tornaram-se mais sedutoras e agressivas.
Na arte renascentista do norte da Europa, Judite foi retratada em formas mais atraentes e com nudez, mostrando um afastamento da representação virtuosa tradicional. Hans Baldung Grien mostrou uma Judite nua, parecendo mais uma ninfa do que uma heroína bíblica, com um olhar ligeiramente tímido enquanto a cabeça de Holofernes é vista em sua mão esquerda. Numa versão do final do século XVI atribuída a Vincent Sellaer, Judite, com os seios expostos, olha para a cabeça decepada que segura pelos cabelos.
Durante a era barroca, o ato de Judite decapitando Holofernes se tornou uma oportunidade para os pintores se entregarem ao sangue. Nas obras desse período, Judite aparece mais como uma assassina violenta do que como uma mulher virtuosa ou sedutora. E em 1599, Caravaggio pintou uma das mais conhecidas representações da cena no mundo, explicitando o momento em que Judite corta a garganta de Holofernes, com o rosto erguido em descrença enquanto o corpo ainda se debate. A Judite de Caravaggio, que é jovem e loira, demonstra uma certa estranheza ao decapitar o general.
Mais tarde, em 1620, Artemisia Gentileschi também pintou Judite, e sua visão da personagem tem sido interpretada pelos historiadores como transmitindo a raiva feminina da artista que, além de ter sido uma mulher em um campo majoritariamente masculino, também foi vítima de estupro. Na pitura de Gentileschi, Judite é auxiliada por sua empregada para prender Holofernes enquanto corta sua cabeça. A pintura transmite o esforço físico vivenciado pelos três personagens e, ao contrário da de Caravaggio, mostra Judite sem medo da tarefa que tem em mãos.
E é sobre as duas interpretações de Judite e Holofernes, por Caravaggio e Artemisia, bem como a influência de seus gêneros e experiências próprias na representação dessa arte, o que eu quero falar nesse post.
Caravaggio x Gentileschi
É sempre importante considerar obras de homens e mulheres considerando o contexto ao qual eles estavam inseridos. Muitas vezes, o papel do gênero só é considerado em obras femininas. Ao analisar as obras de uma artista mulher, o gênero é frequentemente citado como uma grande influência na criação da obra, mas é raramente considerado quando se olha para a obra de um artista masculino. O machismo possui várias camadas.
Dá para perceber isso na representação do mesmo tema por dois artistas, um homem (Caravaggio) e uma mulher (Gentileschi). Cada uma das pinturas possui uma atitude diferente de Judite e é essa atitude que cria um contraste entre como essas duas pinturas retratam a mesma história através do gênero dos artistas.
A arte de Caravaggio, de maneira geral, é repleta de sombra, violência e complexidade psicológica. Ele foi o pintor mais popular e controverso de sua época, um artista radical e um homem volátil que morreu no exílio, e suas obras são caracterizadas pelo uso do Chiaroscuro, que se refere ao contraste de claro e escuro nas pinturas. Era uma técnica bastante conhecida, mas Caravaggio a colocou em outro nível. Ele envolveu suas cenas em sombras espessas e usou a luz com moderação, sem deixar nada no meio – um estilo que foi chamado de “tenebrismo“.
Voltando à Judite, na pintura de Caravaggio, podemos notar o rosto “vivo” de Holofernes (quer dizer, mais ou menos, né? Mais pra lá do que pra cá). Enfim, o general parece gritar de agonia contra a lâmina que corta seu pescoço. No quadro, Judite é uma personagem secundária na cena. Ela é quase um manequim, sua expressão facial é suave, bonita e não parece realmente afetada pelo ato violento que ela está cometendo, é algo mais puxado para o “estranhismo”. Além disso, a representação dos seios de Judite sob o vestido parece sexualizá-la.
O foco em Holofernes e sua morte também é interessante quando vemos pela perspectiva de que Judite é uma linda e sedutora mulher que o atraiu para esse destino. Caravaggio é um homem que segue uma narrativa já consagrada de Judite como uma sedutora. A queda de Holofernes devido aos seus vícios foi tão interessante para artistas e escritores quanto o heroísmo de Judite, e talvez até mais. O assunto era popular para muitos homens porque era relevante para suas vidas como homens. Eles se relacionavam mais com Holofernes do que com Judite. Por essa razão, puderam descrever com precisão as emoções sentidas pelo general. Caravaggio sabia muito bem que o orgulho pode levar um homem ao fim a partir de suas próprias experiências pessoais e, ao criar sua obra, não surpreende que ele tenha retratado Holofernes com mais vida: ele entendeu a luta do personagem contra o orgulho. Ele se viu em Holofernes e se viu sendo morto por Judite.
Por outro lado, a pintura de Gentileschi, de certa forma, é também um auto retrato.
Artemisia Gentileschi criou pinturas poderosas e autobiográficas que confrontavam a violência masculina na sociedade em que vivia. Nascida em 1593, a sua infância esteve entrelaçada com o mundo artístico selvagem da Roma de Caravaggio. Ela enfrentou uma experiência traumática aos 17 anos, quando foi estuprada por um artista contratado por seu pai, Orazio Gentileschi. O julgamento desse ato, que durou sete meses, marcou um momento crucial na sua vida e demonstrou a sua coragem em lutar contra a opressão numa sociedade dominada pelos homens.
Sua experiência de vida é refletida na sua versão de Judite e Holofernes, onde o centro da pintura é a faca, o sangue e as mãos de Judite. O espectador vê o sangue, a violência da cena e não se intimida. Judite é expressiva, forte, robusta, muito parecida com outras mulheres de Gentileschi, que são muitas vezes descritas como “sangrentas” ou “animalistas”. Holofernes, deitado sobre a mesa, está praticamente morto. Sua expressão é sem vida e sua cabeça é segurada por Judite e sua empregada. Ele não é o protagonista da pintura, o foco está em Judite e em sua força e expressão, o que contrasta com a pitura de Caravaggio, que priva Judite de emoção e poder. O sentimento no rosto de Judite é também uma expressão da própria artista, dada sua experiência de vida e tudo aquilo o que ela, como mulher, busca representar em suas obras.
Um outro ponto curioso é também a empregada ao lado de Judite. Na obra de Caravaggio, ela é uma velha passiva e esperando Judite finalizar o trabalho, enquanto na obra de Gentileschi, é uma jovem diretamente envolvida com o ato.
Essas diferenças são extremamente importantes para a compreensão do gênero sobre estas duas obras.
A importância do olhar feminino na arte
As versões de Judite e Holofernes por Caravaggio e Gentileschi não só mostram diferenças artísticas, mas também fornecem um contraste na forma como homens e mulheres capturaram historicamente as experiências das mulheres na arte. Gentileschi se afasta de um olhar predominantemente centrado no homem, oferecendo uma visão profunda sobre as diferentes perspectivas de representação da experiência feminina.
Historicamente, artistas masculinos costumavam retratar as mulheres a partir da sua própria perspectiva, moldada pelas normas sociais e pelo olhar masculino. E, claro, estamos falando de uma sociedade completamente arcaica em termos de consciência de classe ou feminina, mas ainda assim, muitos artistas masculinos retratavam certas cenas como uma oportunidade para a sensualidade ou a nudez, focando no erotismo para atender desejos profundos de um público também masculino.
É possível ver isso de maneira clara através das representações de “Susanna e os Anciões“. A história de Susanna é extraída dos Apócrifos, e conta como a inocência e a virtude de uma heroína triunfam sobre a vilania. Susanna, uma mulher casada, é secretamente desejada por dois anciões da comunidade que conspiram para seduzi-la. Ela é mostrada despachando suas criadas antes de começar o banho e os dois mais velhos ficam a observando. Mais tarde, ela é falsamente acusada de adultério pelos homens, cujas propostas ela recusou, e é considerada culpada por um tribunal e condenada à morte. Sua inocência é provada pelo jovem profeta Daniel.
A maioria dos artistas masculinos usaram o tema como uma forma de explorar momentos sensuais e de nudez, sob o pretexto de retratar uma história bíblica.
A mesma história foi também retratada por Gentileschi, porém, em sua versão, apesar de Susanna também estar com os seios à mostra, não há nada de sensual ali, pelo contrário: você pode sentir sua pele se arrepiando perante ao olhar dos dois homens. É uma representação muito mais real do sentimento de uma mulher sobre o abuso sexual.
Por isso, é importante reconhecer como o contexto, a experiência pessoal e o gênero do artista podem influenciar significativamente a maneira como histórias e temas são representados na arte, especialmente quando se trata da experiência das mulheres na arte histórica. A abordagem de artistas como Artemisia Gentileschi é um exemplo de como a perspectiva feminina pode influenciar e enriquecer a arte, oferecendo uma representação mais autêntica e menos centrada no olhar masculino tradicional.
O papel do gênero na arte
O papel do gênero na arte é um assunto vasto e intrigante, e tanto Caravaggio quanto Gentileschi oferecem perspectivas diferentes, influenciadas por sua própria experiência e contexto social.
Caravaggio foi um artista espetacular e revolucionou seu tempo com o uso do Chiaroscuro. Apesar de seu temperamento e condições psicológicas totalmente questionáveis, é preciso reconhecer seu dom e sua contribuição para sua época e reconhecer também que ele é um artista valorizado até os dias de hoje. E é legal ver como Caravaggio, com sua pintura mais centrada na agonia de Holofernes e na suposta sedução de Judite, retrata a cena de forma a refletir talvez uma visão mais masculina da narrativa. Sua interpretação parece enfatizar a força e o poder de sedução de Judite, caracterizando a heroína de uma maneira menos emotiva e mais próxima da idealização feminina da época.
Por outro lado, Artemisia Gentileschi, influenciada por suas próprias experiências como mulher em uma sociedade dominada por homens e pela violência que ela mesma enfrentou, retrata Judite de maneira mais emotiva e poderosa. Sua abordagem reflete a força, a raiva e a determinação, colocando Judite no centro da ação, desafiando as representações tradicionais da mulher como objeto de desejo ou passividade.
A história de vida de Gentileschi e as suas pinturas em grande escala de mulheres poderosas são um símbolo feminista até hoje. Uma mulher que deve sempre ser lembrada e também valorizada, pela sua história e pelo que ela representou e ainda representa.
Além disso, sua representação de “Susanna e os Anciões” é um exemplo marcante de como ela retrata a história de forma mais realista e menos sexualizada, evidenciando a angústia e o desconforto de Susanna diante do assédio masculino, contrastando com as representações mais tradicionais feitas por artistas masculinos.
Enfim, o gênero e as experiências pessoais com certeza moldam e enriquecem a interpretação de histórias e temas na arte, especialmente ao representar experiências femininas. É crucial valorizar e reconhecer essa diversidade, isso também faz parte da arte e isso também nos torna pessoas mais conscientes.
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Material de Referência
1 – Art and Self with Cindy Ingram: “Art Compare and Contrast Lesson – Judith Slaying Holofernes by Caravaggio and Gentileschi” (https://www.youtube.com/watch?v=Jf5uYLmw0SM)
2 – The Warburg Institute: “Renaissance Lives – ‘Artemisia Gentileschi and Feminism in Early Modern Europe’” (https://warburg.sas.ac.uk/events/renaissance-lives-artemisia-gentileschi-2)
3 – The Guardian: “More savage than Caravaggio: the woman who took revenge in oil” (https://www.theguardian.com/artanddesign/2016/oct/05/artemisia-gentileshi-painter-beyond-caravaggio)
4 – History Hit: “Artemisia Gentileschi: The Most Celebrated Female Painter of the 17th Century” (https://www.historyhit.com/culture/artemisia-gentileschi-the-most-celebrated-female-painter-of-the-17th-century/)
5 – Wikipedia: “Livro de Judite” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_de_Judite)
6 – Britannica: “Artemisia Gentileschi” (https://www.britannica.com/biography/Artemisia-Gentileschi)
7 – Wikipedia: “Caravaggio” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Caravaggio)
8 – Renaissance Reframed: “The Beauty and the Beast: Caravaggio and Gentileschi’s ‘Judith’ Compared by Claire Sandberg” (https://renaissancereframed.com/2020/10/01/the-beauty-and-the-beast/)
9 – Norton Simon Museum: “Susanna and the Elders” (https://www.nortonsimon.org/art/detail/M.2005.2.P/)
10 – Wikipedia: “Susanna and the Elders (Artemisia Gentileschi, Pommersfelden)” (https://en.m.wikipedia.org/wiki/Susanna_and_the_Elders_(Artemisia_Gentileschi,_Pommersfelden))