A Ghost Story: Aceitando a mortalidade e a impermanência
Imagine que você tem um lembrete especial no seu quarto. Algo que o lembre que, algum dia, em algum momento no futuro, você não vai mais estar aqui. Como uma foto ou mesmo algum objeto que o diga: “Ei! Você não vai estar aqui para sempre!“. Essa lembrança é também uma filosofia conhecida como “memento mori” e ela simboliza a nossa mortalidade: “Lembre-se de que você vai morrer“. Talvez pareça pesado, mas esse é um conceito legal para nos ajudar a talvez apreciar e aproveitar melhor o tempo que temos agora. Um gentil lembrete para fazermos o melhor que pudermos todos os dias. Um lembrete importante sobre a natureza transitória da vida. E, sabendo que a morte é inevitável, talvez essa filosofia seja a chave para aceitarmos esse fato e alcançarmos paz frente à nossa própria mortalidade.
Levando isso ainda mais ao extremo, essa é também uma filosofia que nos ensina que todos vamos ter que nos “desapegar” em algum momento. Seguir em frente. E é sobre a impermanência das coisas e o nosso dever de seguir em frente que quero escrever hoje, ilustrando com um dos meus filmes favoritos dos anos recentes.
“A Ghost Story”
Eu não costumo escrever isso (por displicência mesmo) mas, já avisando: daqui para frente é só spoiler.
O Cinema é um campo muito vasto e existem filmes de tudo quanto é jeito por aí, desde os mais simples aos mais sofisticados. Mas existe uma espécie de filmes, que eu particularmente adoro, que desafiam os métodos convencionais de contar histórias e se aventuram em territórios desconhecidos de exploração visual e filosófica. “A Ghost Story”, dirigido por David Lowery, é uma dessas jóias cinematográficas que ultrapassam os limites de uma narrativa “comum”. E este filme transmite uma mensagem extremamente filosófica sobre a natureza impermanente da existência.
“A Ghost Story” (ou “Sombras da Vida” no título BR, mas nesse texto vou ficar com o original) foi lançado em 2017 e sua história gira em torno de um homem recentemente falecido (“C”, interpretado por Casey Affleck) que retorna como um fantasma, literalmente retratado como uma figura coberta por um lençol branco com dois buracos negros no lugar dos olhos. O fantasma acompanha silenciosamente o luto de sua ex-companheira (“M”, interpretada por Rooney Mara) e se mostra fortemente ligado à sua antiga casa. Enquanto o fantasma permanece na casa, ele observa as várias mudanças e ocupantes que vão e vêm ao longo do tempo.
Este não é um filme tradicional, especialmente pelo seu estilo cinematográfico, mas conta uma história poderosa e emocionante. A obra explora, de maneira muito bonita, temas como o tempo, a impermanência, a dor e a condição humana e ao longo da narrativa refletimos também sobre a memória e a experiência humana. É um filme que acaba sendo bastante desafiador de se assistir especialmente pelos longos cortes e pelo uso mínimo de diálogos, confiando, em vez disso, no poder da narrativa visual. Mas essas escolhas estilísticas e cinematográficas fora do padrão que o Lowery toma, servem como um canal para a mensagem central do filme: a de que a natureza finita da vida é o que lhe confere significado e que o apego à existência e ao mundo material nos impede de viver verdadeiramente – ou de morrer em paz.
Um olhar para o luto
O filme se desenvolve à partir da morte de seu protagonista que, como citado na descrição, retorna para sua antiga casa como um fantasma. Inevitavelmente, testemunhamos junto com ele o luto de sua ex-companheira e é legal ver como esse processo é cru e até desconfortável de assistir. Não existem enfeites cinematográficos. Não há uma música melodramática de fundo, apenas os sons de uma vida cotidiana – sinos de vento e barulhos de talheres. Este retrato do luto ressoa como um testemunho da simplicidade e da mundanidade da perda, que muitas vezes parece durar uma eternidade.
Em um momento forte dessa triste sensação, a esposa do protagonista se senta para comer uma torta, num misto de compensar a dor com uma tentativa de aceitação. O fantasma permanece ali, imóvel, enquanto sua ex-esposa continua silenciosamente seu colapso emocional. Tanto o fantasma quanto o público são apenas observadores deste momento intensamente pessoal. Pessoal em um nível tão forte que é quase como algo que nem o fantasma, nem o público deveriam estar testemunhando.
O clima então começa a mudar de puramente emocional para desconfortável demais conforme ela continua comendo a torta, sem parar, por minutos a fio, sem cortes, em uma única tomada. Uma cena muito difícil de se assistir e esse consumo cada vez mais caótico de sua esposa, essa tentativa desesperada de preencher o vazio emocional deixado pela ausência do marido, culmina com seu vômito, num retrato nítido da futilidade de tentar apressar o processo de cura. É uma pura demonstração da importância de aceitar as próprias emoções e permitir que o tempo siga seu próprio curso.
Essa talvez seja a dura realidade do processo de luto. Todos estamos propensos à uma morte inesperada em nossas vidas. E isso não vem com música melancólica de fundo, apenas o som do vento ou, quem sabe, o barulho de um garfo raspando uma forma de torta: a realidade pura e crua. O tempo também é importante nesse processo: O mundo não para para ninguém e o tempo continua, seja em momentos tranquilos ou de dor. É assim que o luto realmente se parece – nem sempre há algo de romântico nisso. Alguns parecem durar para sempre, enquanto outros momentos parecem voar.
O apego e o fardo da existência
Um outro momento forte do filme vem dizer sobre o apego e a temporalidade das coisas. Em certo ponto, o fantasma se encontra com outro fantasma. Ali a gente percebe que o protagonista não está sozinho nesse plano existêncial: existem outros fantasmas, outras almas que também não conseguiram seguir em frente. Os fantasmas, se olhando pelas janelas de suas casas, se comunicam silenciosamente e nós, como público, os entendemos através de legendas. E através desse diálogo descobrimos que o outro fantasma está à espera de alguém, mas um alguém que ele próprio já não se lembra mais quem é. A trilha sonora dessa cena tem também um peso fundamental. Quando a cena começa, uma música tensa de violino começa a tocar, criando uma sensação de terror e desconforto uma vez que surge a descoberta de outro espírito. A música mantém a tensão durante o diálogo e ao fim muda para um tom melancólico, enquanto a câmera foca no protagonista e lentamente diminui o zoom. O fantasma é muito menor do que imagina, é apenas um ponto no tempo e, ali, ele é finalmente forçado a enfrentar esta realidade. Essa compreensão não serve apenas para os mortos: os vivos também podem e devem enfrentar esse fato.
Acho que até hoje eu não consegui digerir bem essa cena, mas ela mostra muito bem como o apego pode se tornar um fardo: o outro fantasma se apega a um mundo do qual não se lembra mais, apegado ao próprio sentimento de apego, mas a verdadeira beleza da existência reside na sua temporalidade. As coisas vêm e vão e as memórias são feitas e esquecidas – essa é a natureza do tempo. Talvez a “vida após a morte” seja na verdade sobre chegar a um acordo com a nossa própria finitude. Muitas vezes, as pessoas ficam profundamente apegadas à sua própria existência, querendo que ela se prolongue pela eternidade, mas não é assim que a existência funciona. Esses fantasmas podem aguentar e esperar o tempo que quiserem enquanto o tempo passa, mas só podem encerrar e “seguir em frente” quando aprenderem a aceitar a finitude de sua realidade.
O fantasma continua a assombrar sua antiga casa muito depois de sua ex esposa se mudar e outros proprietários assumirem o local. Ele assiste sua casa ser demolida e transformada em um prédio enorme, do qual ele inclusive tenta “se matar” ao se jogar do topo (confesso que eu dei risada nessa parte). O filme então o leva de volta ao passado, quando os primeiros colonos viviam da terra que mais tarde se tornou sua casa. O apego àquele lugar não o deixa se encaixar em nenhum espaço do tempo.
A busca por significado
Talvez todas essas reflexões estejam mais conectadas também com a busca por um significado na vida. Eu falei um pouquinho disso no texto sobre Palm Springs e também, em outro contexto, no texto sobre BoJack. Mas voltando ao nosso filme, em um dos raros momentos de diálogo na narrativa, temos a cena de uma festa, onde um “filósofo” meio bêbado entrega um interessante monólogo sobre a futilidade da criação diante do fim do universo, algo mais na linha do niilismo ali. E olha, por mais que essa cena seja também uma explicação cuspida, literal e bem pretensiosa do que o filme realmente quer dizer, o diretor utiliza esta perspectiva não para validar o niilismo, mas para dizer que o significado é encontrado nos momentos mais simples, na conexão e comunicação com os outros. A transitoriedade da vida torna esses momentos belos e impactantes, nos incentivando a valorizá-los enquanto durarem.
De volta à mortalidade e ao memento mori
Apesar do estilo controvérso da narrativa desse filme, David Lowery demonstra ao público como os momentos são importantes para encontrar um significado. Mesmo que o filme gire em torno de um homem morto com essas percepções, ele também pode ensinar algo aos vivos. Isso se relaciona bem com o “Memento mori” que, como conceito, nos incentiva a refletir sobre nossa mortalidade e a impermanência da nossa existência. Serve como um lembrete de que, assim como o tema de “A Ghost Story”, a vida é transitória e todos os seres vivos devem, em última análise, enfrentar a inevitabilidade da morte. Esta reflexão nos leva a reavaliar as nossas prioridades e a apreciar o valor do momento presente. Entendê-la pode de fato nos fazer “seguir em frente”. E isso remete à um outro ponto importante do filme que eu ainda não citei.
Antes da esposa do fantasma finalmente deixar a casa, ela escreve algo em um pequeno pedaço de papel, o dobra, e o guarda em uma abertura na parede fixando depois com uma pintura. O fantasma passa grande parte do filme tentando recuperar esse bilhete secreto. No final do filme, o fantasma finalmente recupera o bilhete de sua esposa e, ao lê-lo, fica livre do loop temporal e desaparece imediatamente. O que estava escrito ali nunca é revelado ao público e, na moral? Isso não importa. Acho que foi uma forma bonita do filme de dizer: “Ele conseguiu. Seguiu em frente“. Pois nem sempre o significado de uma coisa é o mesmo para todo mundo, às vezes o que nos move é algo que só nós mesmos podemos entender.
Enfim, tanto em “A Ghost Story” quanto no conceito de “memento mori”, somos lembrados da impermanência da vida e da necessidade de valorizar os momentos que temos, encontrando significado no agora, em vez de nos fixarmos em um futuro incerto ou no passado.
E como sempre gosto de dizer: Espero sempre ver filmes assim!
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