O sofrimento é o meio para o sucesso?
Poucas coisas são tão acolhedoras quanto o triunfo do espírito humano. Sabe aquele momento em que o Rocky Balboa, desacreditado e cansado, se recusa a cair? Quando ele faz isso, o Rocky supera suas próprias limitações e conquista uma vitória que vai além dos rings de boxe. Ou então quando o Frodo tira forças que nem ele sabia que tinha para cumprir seu papel e missão em destruir o Um Anel, lutando contra a constante tentação que aquele objeto traz. Essa ideia de sofrimento levando ao triunfo é algo que sempre reforça a importância de persistir e não desistir de nossos sonhos e objetivos. Reforça a ideia de que a vontade interior pode superar qualquer barreira. E isso é um dispositivo narrativo muito forte, já que essa forma de retratar o sucesso através da dor pega bastante investimento emocional por parte de quem está assistindo um filme ou lendo uma obra.
O sofrimento e a dor costumam ser fundamentais na jornada de um protagonista, se transformando em um meio para o crescimento pessoal e o triunfo naquilo em que aquele personagem acredita. Normalmente, isso começa com o protagonista enfrentando desafios aparentemente impossíveis de serem enfrentados ou extremamente desafiadores – sejam eles físicos ou emocionais. Ao mesmo tempo, isso o humaniza, passamos a nos identificar com aquele personagem. Torcemos por ele.
Muitas vezes, essas situações são circunstâncias da jornada. “Ossos do ofício”, sabe? Veja, Frodo não escolheu sofrer para destruir o Um Anel, mas a jornada até a montanha não deu espaços para que ele caminhasse de forma tranquila. Não se caminha tranquilo em Mordor. Portanto, existem situações em que você simplesmente não tem opção, mas existem também momentos em que vemos as pessoas optando pela dor, por acreditar que somente por ali o sucesso poderá ser alcançado.
A representação do sofrimento como um componente necessário do sucesso é um tema bem recorrente, especialmente na mídia cinematográfica. Eu gosto de duas obras em específico, “Cisne Negro” (2010) e “Whiplash” (2014), que retratam essa ideologia através do desenvolvimento intenso e destrutivo de seus protagonistas. Esses filmes, além de incríveis, também sugerem que a arte excepcional exige não apenas talento e dedicação, mas também sacrifício e dor. Portanto, esses são filmes que perpetuam de certa forma essa noção de que a grandeza é inatingível sem sofrimento. Mas quais as implicações disso?
“Cisne Negro” é um filme dirigido pelo sempre interessante Darren Aronofsky e acompanha a personagem Nina Sayers (interpretada por Natalie Portman) passando por um declínio psicológico em sua busca pela perfeição como bailarina. Existe em Nina uma obsessão em ser perfeita e, ao forçar isso, seu lado artístico sofre, pois ser uma boa bailarina não significa ser perfeita, significa ser vulnerável, autêntica, verdadeira. Sua transformação no Cisne Negro, no entanto, é marcada por alucinações, automutilação e desconexão pessoal, dores bastante impulsionadas pelas pressões de seu diretor, Thomas Leroy, e de sua mãe extremamente autoritária. Cisne Negro é um filme que sugere que o eventual sucesso de Nina, ainda que momentâneo, é inseparável de seu sofrimento e loucura. É um filme muito trágico e grotesco, mas mostra que às vezes as pessoas fazem qualquer coisa e pagam qualquer preço pela perfeição.
“Whiplash” também mostra uma narrativa semelhante. O filme dirigido por Damien Chazelle, e que eu já escrevi sobre aqui, segue a história do baterista Andrew na busca pela grandeza. O problema disso é que Andrew sofre constantes abusos físicos e psicológicos por parte de seu instrutor, Fletcher, que acredita que levar os alunos ao limite, mesmo que isso signifique quebrá-los, é a única maneira de alcançar a grandeza. O resultado é uma história marcada por isolamento, obsessão e dores. Talvez isso esteja melhor sintetizado na apresentação final de Andrew que é, ao mesmo tempo, um triunfo e uma prova de seu sofrimento. Mas é também uma justificativa – “olha só, ele trabalhou duro. Ele conseguiu”.
Bom, tanto Whiplash quanto Cisne Negro levantam uma questão perturbadora e polêmica: na busca pela excelência, o sofrimento e o abuso são justificáveis? Se são, até onde? Essa questão é séria, pois ela possui um potencial enorme de influenciar toda uma nova geração de jovens e artistas, os levando a relativizar e aceitar ambientes e práticas prejudiciais como parte fundamental do seu caminho para o sucesso. Esses são filmes cuja narrativa mostra os efeitos de quando o bem-estar pessoal é secundário em relação à realização profissional. Tanto Nina quanto Andrew possuem graves problemas de saúde mental. Será que a linha entre sucesso e autodestruição é realmente tão tênue como vemos nessas obras?
Além disso, o papel do instrutor aqui é fundamental. Em Whiplash, Fletcher acredita que suas práticas, ainda que abusivas, são fundamentais para o sucesso de Andrew, alimentando essa ideia de que a grandeza só pode ser alcançada por meio de extrema pressão e dor. Essa é uma dinâmica menos evidente em Cisne Negro, mas no filme do Aronofsky os métodos manipulativos do diretor de Nina e o ambiente opressivo do balé contribuem bastante para o colapso da personagem.
“Eu estava lá para levar as pessoas além do que se espera delas. Acredito que seja uma necessidade absoluta.”
Terrence Fletcher, Whiplash.
Uma forma legal de enxergar o que estou escrevendo aqui talvez seja contrastar estas narrativas com outros filmes que retratam caminhos, digamos, mais saudáveis para o sucesso artístico, o que talvez ofereça uma visão mais equilibrada. Por exemplo, o filme “Sede de Viver” (1956) explora o gênio conturbado de Vincent van Gogh, mostrando o impacto de sua loucura e de seus problemas mentais na sua criatividade, sem glorificar o sofrimento. Na verdade, a doença mental de Van Gogh é um dos pontos mais significativos do filme, mostrando sua luta contra a depressão, ansiedade e alucinações, que eventualmente levaram ao seu suicídio. O filme também mostra o estigma e a ignorância em torno das doenças mentais no final do século XIX. O retrato que Sede de Viver faz da doença mental de Van Gogh é bastante preciso, pois o filme não foge da realidade da condição do artista, mas a retrata com sensibilidade e empatia.
Aliás, saúde mental é um ponto importante a ser debatido tanto em Whiplash quanto em Cisne Negro.
Mais especificamente em Cisne Negro, em nenhum momento Nina recebe um diagnóstico de doença mental ou mesmo fala com um profissional de saúde. Sem nada explícito, sua doença foi interpretada como esquizofrenia, transtorno de personalidade, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno disso, transtorno daquilo. Com certeza, muitos de seus sintomas correspondem a cada um deles, mas nenhum se ajusta perfeitamente. Nina é uma perfeccionista que sofre de psicose. Ela alucina e fica cada vez mais paranoica ao longo do filme. Sua alimentação é desordenada e ela pratica automutilação. Ela é ansiosa, temperamental. Nina é obcecada em se tornar o Cisne Negro e ela oferece sua própria vida em prol disso.
No entanto, embora Nina possua claramente um quadro mental doente, muitos de seus sintomas são considerados “normais” para uma bailarina de elite no auge de sua carreira. O balé é uma forma de arte implacável. Requer treinamento rigoroso e disciplina excepcional. Isso atrai perfeccionistas como Nina. Mas a necessidade de abrigar força, poder e agilidade em um corpo minúsculo e bonito cria uma alimentação desordenada. O tempo altamente regulamentado e os exercícios repetitivos podem se tornar uma compulsão. Dor e lesões não são apenas constantes, mas também fonte de orgulho e prova de compromisso, de desejo e de vontade. As bailarinas são lindas e silenciosas, mas será que essas condições não contribuem ou exacerbam a doença mental?
“Eu senti. Perfeita. Eu estava perfeita. “
Nina Sayers, Cisne Negro
Da mesma forma, Andrew abdica de suas relações pessoais na busca de atingir um nível de excelência que foi projetado nele por Fletcher. Andrew se fecha e se cega para quaisquer consequências que essa obsessão tem causado em sua vida.
O sofrimento e a dor podem nos fazer crescer, mas também causam traumas. Lidar com isso requer terapia, tempo, nutrição, comunidade e autorreflexão. Nem Nina, nem Andrew tiveram isso. E seu sucesso anda de mãos dadas com sua tragédia.
Saindo um pouco das telas
A história da humanidade é por si só marcada por dor. Cada avanço nosso exigiu alguma forma de sacrifício. O desenvolvimento da agricultura exigiu trabalho árduo e esforço físico. Por trás de cada arquitetura monumental estão milhares de vidas perdidas devido a acidentes e ambientes agressivos. Daí a industrialização mudou para sempre a forma como as pessoas trabalhavam, acelerando as coisas mas também criando vários empregos e condições mais perigosas com compensações ridículas. Pessoas morreram em câmeras de gás. Pessoas morreram por conta de sua cor de pele. E as guerras. Não podemos nos esquecer das guerras.
Pegamos o que sabemos do mundo e reduzimos isso às nossas vidas individuais, quase como um mantra. Desde cedo somos ensinados de que a chave do sucesso é o trabalho duro. O que é verdade, em partes. Existe, porém, uma visão um pouco exacerbada do que de fato é considerado ingrediente quando falamos de sucesso, uma visão que, muito constantemente, está atrelada a figuras as quais consideramos de sucesso e pelas quais construímos narrativas (e acreditamos nelas) que ignoram outros fatores que também fazem parte do sucesso, nos condicionando a achar que o sacrifício e o esforço extremo é sempre necessário ou que devemos trilhar o mesmo caminho que essas pessoas trilharam para alcançar algum triunfo na vida. O que nos leva a outro probleminha: o medo de falhar.
“O fracasso é o pai do sucesso”. Fácil dizer, né? A verdade é que ninguém gosta de falhar e, quando falhamos, nosso pensamento imediato é o de que não nos esforçamos o suficiente. Nos convencemos facilmente de que deveríamos ter feito mais, apesar de ter dado o nosso melhor, ficamos cegos para os nossos limites. É importante desafiar nossos limites, mas isso não pode ser uma prática diária.
Ok, mas isso não responde nada. É possível alcançar o sucesso sem sofrimento? Sabe o que eu penso de verdade? Eu penso que a resposta é sim. Não existe uma regra ou uma fórmula básica para todo mundo, infelizmente. Algumas pessoas vão, sim, enfrentar uma série de condições e situações injustas. Muitas dessas pessoas ainda nem nasceram. Mas não se permita cair no conto do “No pain, no gain”.
Acho que, antes de mais nada, precisamos entender que só porque outra pessoa teve que alcançar o sucesso através do sofrimento, não significa que também temos que nos forçar a passar pelo mesmo. Todos nós temos que suportar dificuldades diferentes e superar diferentes desafios. Não faz sentido nenhum provocar situações dolorosas do nada. Em vez disso, talvez seja melhor encarar a história de outras pessoas como uma inspiração e um reconhecimento.
Outra coisa é saber reconhecer e responder adequadamente à dor. Vivemos em um mundo muito insensível, que nos cobra, que nos exige. Como diria Renato Russo: “O mundo anda tão complicado”. É crucial distinguir entre o desconforto saudável que promove o crescimento e a dor pela dor. Quando você atingir seus limites físicos e mentais, dê um passo para trás e se pergunte se é necessário continuar – todos merecem e precisam de um descanso. Observe quem são seus mestres. Não se esqueça de que somos seres humanos, de carne e osso. Reconhecer isso e tratar as pessoas como seres humanos ao invés de meros jogadores, bateristas, bailarinas ou qualquer coisa que seja, gera um senso de identidade e personalidade mais resistente à falha do que abusar dos limites de alguém.
Por último, e mais importante, precisamos de equilíbrio. O sucesso leva tempo e o sofrimento no caminho, ainda que às vezes seja inevitável e ainda que muitas vezes nos ajude a crescer, não acelera a jornada. É necessário um equilíbrio entre trabalhar em direção aos nossos objetivos e praticar um autocuidado.
Você só vai contemplar o seu sucesso se você sobreviver para isso.
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Excelente texto! Parabéns!
Eu fiquei aqui refletindo sobre diversas questões entre o sofrimento e alcance de objetivos. Acredito que não há como alcançar algo na vida de significativo se não tiver o mínimo de esforço e, consequentemente, sofrimento. Como diz o psicólogo Steven Hayes “tudo que dói importa e tudo que importa dói”. No entanto, analisando a questão dos limites apresentados de maneira impecável nos filmes o ponto seria o quanto de sofrimento você está disposto a bancar. Daí entra a perspectiva individual de cada indivíduo, alguns colocam o “sarrafo” lá embaixo, não se esforçam tanto e são felizes; e está tudo bem. Por outro lado, existem pessoas com um nível de exigência altíssimo que estarão dispostas a fazer qualquer coisa não importa se tiverem que sacrificar sua integridade física e mental. Claro que além desse ponto de vista individual, também há a romantização do sofrimento pela sociedade. O sofrimento está na base de nossa história cultural, o herói precisa sofrer para triunfar no final do filme. Caso contrário não teria “graça” assistir a uma história de puro sofrimento sem sentido ou glórias sem esforços.
Abraço 😉
Ei, Jordana. Bom te ver por aqui, obrigado pelo comentário, isso contribui muito para a linha de raciocínio. Acho que passa muito pelo que você disse sobre “o quanto a gente ta disposto a bancar”, no fim as perspectivas e expectativas individuais acabam moldando muito a forma como vamos tocar as coisas, né?
Um abração em ti! 🙂