Pegando gancho em Scorsese: Conteúdo versus arte no cinema moderno
Que o avanço tecnológico e as novas tendências de consumo que ditam nossa realidade hoje em dia terão impacto no futuro, isso não é segredo para ninguém. A forma como consumimos conteúdo vem mudando a indústria, especialmente do cinema, já a algum tempo e vários fatores contribuem para isso, como serviços de streamings por exemplo. Quando se pensa a longo prazo, essas mudanças parecem ser ainda mais significativas, já que a geração mais nova está crescendo cada vez mais acostumada com conteúdos ‘on-demand‘ e vem recentemente se adaptando ainda mais rápido ao “efeito TikTok“, onde o conteúdo passa a ser digerido de maneira muito mais rápida, levantando dúvidas sobre a qualidade de seu impacto em quem consome. O TikTok acabou se tornando um ‘fast food‘ da mídia audio-visual. Spencer Hoffman escreveu sobre essa mudança que o TikTok vem provocando em nosso consumo de mídia para a Hollywood Insider de maneira bem interessante:
“Não só o TikTok estava crescendo entre as plataformas de mídia social, mas também o aplicativo de compartilhamento de vídeo o estava redefinindo. Junto com aplicativos imitadores como Zynn aparecendo após o grande sucesso do TikTok, aplicativos e sites de mídia social anteriormente existentes começaram a incorporar a fórmula do TikTok em suas próprias plataformas. Potências da Appstore, como Instagram e Snapchat, introduziram recursos semelhantes à criação de vídeo e estilo de página inicial do TikTok, chamados Instagram Reels e Snapchat Spotlight, respectivamente. Instagram Reels e Snapchat Spotlight permitem ao usuário percorrer vídeos curtos direcionados ao usuário, estranhamente semelhante ao formato do TikTok. Esse estilo de conteúdo curto que o TikTok aperfeiçoou era perfeito para fácil consumo porque esse estilo de vídeo é facilmente compartilhável e assistível. É preciso pouco comprometimento para assistir a um vídeo do TikTok e compartilhá-lo com os amigos. Embora convencer um amigo a começar um programa de TV ou assistir a um filme possa exigir tempo e paciência, exibir um TikTok divertido exige pouco tempo e comprometimento da outra parte: ambos os lados recebem gratificação instantânea.”
O cinema, então, se encontra numa encruzilhada. Como a próxima geração de cineastas vai lidar e gerenciar essa forma de consumo? Será que teremos conteúdos mais rasos ou ainda há espaço para um cinema mais autêntico e com real poder positivo de transformação nas pessoas? Numa conversa recente com o também diretor, Edgar Wright, o lendário Martin Scorsese expressou as suas preocupações sobre o estado da indústria cinematográfica e a necessidade de preservar a essência artística do cinema nessa era impulsionada pela tecnologia e pelo comércio.
“Idealmente, o que espero é que – hesito em usar a palavra – filmes ‘sérios’ ainda possam ser feitos com esta nova tecnologia e este novo mundo do qual fazemos parte”, afirmou o diretor. “Para que isso possa ser apreciado pelo público da grande tela. Essa é a chave.”
E, sinceramente? Isso é de verdade algo que precisa ser discutido agora de uma certa forma pois, uma vez que a chave virar de vez, talvez não tenhamos mais como reverter certas coisas. Scorsese ainda acrescenta sobre a distinção entre “conteúdo” e “arte”, o que vai no centro dessa questão. “Conteúdo” implica uma abordagem centrada no consumidor, onde o objetivo principal é entreter e atender às demandas de um mercado. Muitas vezes prioriza rentabilidade, sucesso comercial e consumo rápido. Por outro lado, “arte” enfatiza a expressão artística, a profundidade e a integridade. O objetivo da arte é provocar reflexão, deixar um impacto duradouro e explorar todo o potencial da narrativa cinematográfica.
Edgar Wright afirmou que Scorsese não quer que os cineastas sejam apenas “fornecedores de conteúdo”. Em resposta, o diretor americano destacou a diferença entre os dois. “Conteúdo é algo que você come e joga fora”, disse Scorsese. “Conteúdo é como doce.”
Ele explicou: “Gostava de ter a TV ligada o tempo todo quando era criança. Era assim…bastava colocá-la e diminuir o som, isso é conteúdo. É quase como o rádio antes da televisão. O rádio fica ligado o tempo todo, há uma voz tocando ao fundo. Ou quando as pessoas mantêm a TV ligada para ouvir uma voz. Isso é tudo. Mas se você quer ter uma experiência que possa enriquecer a sua vida, é diferente.”
É claro que não necessariamente existe uma separação rígida entre conteúdo e arte na produção cinematográfica, e muitas obras podem combinar elementos de ambas as partes. Além disso, a definição de “arte” e “conteúdo” pode ser subjetiva e variar de acordo com a perspectiva de cada pessoa. Muitos filmes buscam um equilíbrio entre entretenimento comercial e expressão artística. Mas o fato é que estamos diante de mudanças que vão mudar a maneira como uma geração inteira de pessoas percebem e digerem os conteúdos. E concordo com o Scorsese quanto ao fato de que isso é sim, bem preocupante.
E à partir de suas falas, vamos fazer algumas considerações.
A abordagem centrada no consumidor
“Conteúdo” é frequentemente associado à ideia de mídia projetada para atender a um público amplo ou específico – “conteúdo infantil”, “conteúdo adulto”, etc. Nada de errado nisso, mas essa ideia pode levar a uma narrativa estereotipada, onde as convenções estabelecidas são seguidas para garantir a comercialização. Com isso, o conteúdo pode não desafiar o espectador, optando por narrativas de fácil digestão que proporcionam um prazer momentâneo sem deixar nenhuma impressão duradoura. Te lembra algo?
Ainda dentro desse campo, o aspecto comercial sempre tem uma precedência. A lucratividade orienta as decisões, o que acaba levando ao foco em elementos como, por exemplo, o potencial de franquia e o apelo por bilheteria. Essa abordagem comercial às vezes custa a integridade artística e narrativa, levando a uma proliferação de sequências, reboots e block-busters. É o que vemos em muitos “filmes de heróis”, onde somos frequentemente apresentados a narrativas rasas e vários reboots da mesma história, tudo em busca de bilheteria. É claro que muitos desses filmes também trazem novas visões e formas de ver o mundo colaborando positivamente para o debate fora da tela mas, isso é um outro ponto levantado pelo tio Scorsese e que, apesar de estar sempre carregado de muita polêmica, tem fundamento.
“O perigo é o que esses filmes estão fazendo com nossa cultura. Teremos gerações que acreditarão que filmes são só aquilo. Talvez até já pensem. Por isso, temos que lutar ainda mais fortes, e isso precisa vir da base, dos próprios cineastas. Você tem os irmãos Safdie, Chris Nolan… Atinjam eles por todos os lados. Vão lá. Reinventem tudo. Não desistam.”
Scorsese, para a revista QG.
Ou seja, o conteúdo vem tomando um rumo que é muitas vezes concebido para ser efêmero, oferecendo entretenimento imediato que é rapidamente consumido e descartado. Não visa necessariamente provocar reflexão ou até mesmo desenvolver senso crítico, pois o seu objetivo principal é satisfazer as exigências atuais do mercado.
O lado artístico
Em contraste à esse ritmo do conteúdo, “arte” no cinema significa, dentre ourtras coisas, um foco na expressão artística, na narrativa e na visão criativa do diretor. O cinema de arte busca profundidade, significado e ressonância emocional. O objetivo é deixar um impacto duradouro, desafiando os espectadores a pensar criticamente e a contemplar as mensagens e emoções da obra. Isso faz parte da história do cinema como expressão artística.
Bertold Brecht concebeu, ainda no teatro, o “efeito de distanciamento” (Verfremdungseffekt, em alemão). Esse conceito envolve o uso de técnicas destinadas a distanciar o público do envolvimento emocional na peça. Brecht queria “distanciar” ou “alienar” seu público dos personagens e da ação e, por meio disso, torná-los observadores que não se envolveriam ou simpatizariam emocionalmente, psicologicamente ou individualmente com os personagens. Em vez disso, ele queria que o público entendesse intelectualmente os dilemas dos personagens e os erros que produziam esses dilemas expostos em suas tramas dramáticas. Ao ficar assim “distanciado” emocionalmente dos personagens e da ação no palco, o público poderia atingir esse nível intelectual de compreensão (ou empatia intelectual). Em teoria, embora alienados emocionalmente da ação e dos personagens, eles seriam capacitados em nível intelectual tanto para analisar quanto talvez até para tentar mudar o mundo, que era o objetivo social e político de Brecht como dramaturgo e a força motriz por trás de seu dramaturgia.
Esse tipo de abordagem é um ótimo exemplo sobre como a arte possui, como objetivo primordial, gerar reflexões na sociedade.
O cinema, assim como o teatro, é também caracterizado pela sua vontade de assumir riscos criativos e experimentar técnicas de contar histórias. Os cineastas deste domínio priorizam a integridade narrativa e estética ao invés de interesses comerciais, resultando em obras que podem não aderir às convenções convencionais, mas que podem trazer benefícios maiores ao público.
Isso já pode ser percebido hoje quando olhamos para estúdios como a A24, que foca bastante em um cinema mais independente. O blog “Frame.Io Insider” possui um artigo incrível sobre como a A24 continua a prosperar na indústria cinematográfica. O seu sucesso demonstra que uma combinação de seleção única de filmes, inovação de marketing, liberdade criativa, diversidade e foco no não convencional pode ser uma fórmula vencedora para um estúdio independente que procura deixar a sua marca em Hollywood. Vale a pena a leitura, o link estará ao final desse texto.
Enfim, a experiência cinematográfica é crucial no mundo da “arte”, e esses filmes são frequentemente elaborados para serem exibidos nos cinemas, pois as qualidades visuais e auditivas desempenham um papel significativo na narrativa. O objetivo é mergulhar o público em uma experiência única e transformadora.
No campo artístico, a diversidade prospera e o cinema abrange vários gêneros, estilos e abordagens. Inclui obras de vanguarda, filmes independentes, cinema em língua estrangeira e narrativas experimentais, oferecendo um cenário rico e diversificado de criatividade que desafia as normas convencionais.
Qual o caminho a seguir então?
A distinção entre “conteúdo” e “arte” levanta questões importantes sobre o propósito e o impacto potencial dos meios de comunicação que consumimos. Numa época em que a tecnologia permite um acesso rápido e fácil a uma vasta gama de conteúdos, devemos considerar o que valorizamos na arte do cinema.
O apelo de Scorsese é claro: é hora dos jovens cineastas abraçarem a essência artística do cinema, assumirem riscos criativos e contarem histórias que desafiem, provoquem e inspirem. Embora o “conteúdo” tenha o seu lugar na indústria, a preservação da “arte” é essencial para o crescimento contínuo e a relevância cultural do cinema.
“Essa é a liberdade que você tem agora. Tanta liberdade, acho que você tem que repensar o que quer dizer e como quer dizer”
Enquanto estamos nesta encruzilhada cinematográfica, cabe aos cineastas, ao público e à indústria como um todo decidir que caminho seguir. A distinção de Martin Scorsese entre “conteúdo” e “arte” é um lembrete de que o cinema não é apenas um meio de entretenimento: é um meio poderoso de expressão artística e reflexão cultural. A escolha é nossa: continuaremos a produzir e consumir conteúdos descartáveis ou abraçaremos uma narrativa mais profunda, a exploração artística e as contribuições culturais significativas que o mundo do cinema “arte” tem para oferecer?
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Material de Referência
1 – Far Out Magazine: “Martin Scorsese urges young filmmakers to save the industry from “content providers”” (https://faroutmagazine.co.uk/martin-scorsese-urges-young-filmmakers-save-industry-from-content-providers/)
2 – Hollywood Insider: “How is TikTok Changing the Way We Consume Media?” (https://www.hollywoodinsider.com/tiktok-consume-media/)
3 – Jovem Nerd: “Scorsese critica, mais uma vez, filmes de heróis: “Temos que lutar”” (https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/scorsese-fala-filmes-de-herois/)
4 – Wikipedia: “Distancing effect” (https://en.wikipedia.org/wiki/Distancing_effect)
5 – Britannica: “alienation effect” (https://www.britannica.com/art/alienation-effect)
6 – frame.io insider: “A24’s Not-So-Secret Recipe for Success” (https://blog.frame.io/2023/04/11/the-a24-success-story/)
7 – The Advocate: “TikTok’s Influence on the Film and Music Industries” (https://theacademyadvocate.com/5936/entertainment/tiktoks-influence-on-the-film-and-music-industries/)
8 – Martin Scorsese interviewd by Edgar Wright | BFI London Film Festival (https://youtu.be/l-4ULfDDySU)