“Adolescência”: Juventude, Violência e a Crise da Masculinidade Moderna
Existe uma expressão, em inglês, chamada “boys will be boys”. Embora haja uma tradução para isso, algo como “meninos serão meninos”, a versão original, em inglês, faz mais sentido para mim. De qualquer forma, boys will be boys sempre me soou passivo demais. Algo como “ah, é assim que esse garoto deve ser” ou “ele fez isso porque é um menino. Meninos fazem coisas de meninos”. Rapidamente, esse “menino” evolui para um ser humano agressivo.
A mini série Adolescência, da Netflix, é um soco no estômago. Uma das coisas mais tristes que vi e que provavelmente verei este ano. Ela fala de uma das piores dores que os pais podem sentir: a dor de perder um filho que continua vivo. O tormento eterno de viver se perguntando “por quê?”. Haja terapia.

A narrativa é centrada em Jamie Miller, de 13 anos, interpretado pelo novato Owen Cooper, que é preso pelo assassinato de sua colega de classe, Katie Leonard. A série se aprofunda na investigação que se segue à partir do caso, explorando temas como masculinidade tóxica, a influência de subculturas online como a “manosfera” e o impacto das mídias sociais em adolescentes. Indo além da série, vamos conversar um pouco sobre esse tema aqui hoje.
De certa forma, acho que normalizamos demais o “boys will be boys”. Pensamos que a agressividade na adolescência é natural, que eles vão superar isso. Mas e se não superarem? E se as pressões da masculinidade moderna, a exigência de ser inabalável, o medo de parecer fraco, o fascínio pelo poder através da violência forem apenas reforçados pelos mundos digitais que eles habitam? Nestes espaços, a empatia é vista como fraqueza, a expressão emocional como fracasso. É mais fácil construir uma identidade baseada na dominação do que admitir vulnerabilidade.
O problema é que esse tipo de masculinidade não fica restrito ao mundo online. Ele se infiltra nas casas de famílias comuns, na forma como os meninos interagem, na maneira como resolvem conflitos. Crimes com facas muitas vezes são tratados como um problema de pobreza, de lares desestruturados, de afiliação a gangues – e, até certo ponto, talvez sejam mesmo. Mas também é um problema da infância e adolescência masculinas. Um problema sobre o que significa ser homem em uma era em que a masculinidade tradicional está em crise, onde os únicos modelos de força que muitos jovens enxergam são violentos.
E assim o ciclo continua. Uma geração de meninos, criada online, cresce acreditando que a violência é uma moeda legítima. Que, se você for desrespeitado, deve responder com força. Que seu valor é medido pela dominação, não pela bondade. E o pior? Os adultos em suas vidas mal percebem, até que seja tarde demais.
Se existe um antídoto para isso, ele deve começar com atenção. Não vigilância, não punição, mas uma atenção real e engajada. E isso significa pais dispostos a sentar e realmente entender os mundos digitais que seus filhos habitam. Escolas dispostas a discutir a masculinidade moderna com a nuance que ela merece. Uma sociedade disposta a admitir que a internet não é um espaço separado, mas o principal campo de batalha onde identidades estão sendo forjadas.

Bancos de dados como YouTube e Discord sugerem que o surgimento de subculturas online hiperagressivas, do tipo que transforma alienação em doutrina e autodestruição em espetáculo, é um fenômeno dos anos 2010 em diante. Mas eu sugeriria que suas origens são de um passado muito mais distante, desde o início dos fóruns e quadros de mensagens online que, antes de se tornarem incubadores de radicalização, vendiam irreverência aparentemente inofensiva.
Para aquela espécie de adolescente que passava horas navegando no board do 4chan, absorvendo a ironia niilista dos primeiros canais de opinião no YouTube ou se alimentando do caos não filtrado dos cantos mais obscuros do Reddit e do Twitter, esses espaços representavam algo como um texto fundador, e seus arquitetos, santos padroeiros de uma geração criada no isolamento digital. O que começou como comunidades baseadas em uma alienação compartilhada rapidamente se transformou em um terreno fértil para a raiva, o ressentimento e a obsessão com a dominação. O que era ironia se transformou em ideologia. O que era hostilidade se disfarçou de humor. Em algum momento, a memeficação da violência tornou-se indistinguível da violência real.
Antes que a grande mídia assimilasse termos como incel ou redpill, esses fóruns já os haviam cunhado, refinado e armado. O léxico do ódio a si mesmo voltou-se para o exterior. A manosfera não era apenas uma piada, mas um projeto de masculinidade atomizada, forjada na raiva e na rejeição percebida. Jovens isolados, socialmente atrofiados e cada vez mais desprovidos de comunidades no mundo real, encontraram conforto em espaços que validavam seus piores impulsos. Se o mundo não lhes oferecia controle, essas subculturas prometiam uma forma de recuperá-lo: pela intimidação, pelo desapego, pela violência.
A internet, em seu melhor, oferece pertencimento. Em seu pior, radicaliza os solitários e os perdidos – e ultimamente só estamos recebendo o pior.

É possível traçar uma linha reta entre esses esgotos digitais e o preocupante aumento da violência juvenil, particularmente os crimes com facas – uma epidemia moderna, principalmente no Reino Unido, na qual jovens recorrem a lâminas tanto como armas quanto como símbolos de poder. Notícias sobre adolescentes flagrados por câmeras de segurança empunhando facas a plena luz do dia já não chocam, são rotina. A escalada é inegável. O que antes era domínio de gangues e criminosos endurecidos agora é realidade para meninos que mal passaram da infância. As redes sociais, com seus ciclos intermináveis de provocação e humilhação, transformam atos de violência em moeda viral. Cada briga é filmada, cada ameaça é postada, cada ataque é glorificado até que a participação não seja apenas encorajada, mas esperada.
A cultura da bravata online transborda para as ruas. O que começa como exibição digital se manifesta em brutalidade no mundo real. Vemos isso no Reino Unido, onde os crimes com facas atingiram níveis alarmantes. Vemos isso nos EUA, onde brigas escolares se transformam em esfaqueamentos fatais. Vemos isso em todas as cidades onde adolescentes carregam lâminas não apenas para proteção, mas para afirmar sua identidade. As ruas tornaram-se uma extensão do campo de batalha digital, onde a masculinidade é performada, desafiada e violentamente defendida.
Claro, não estou sugerindo que todo adolescente com a cara grudada na tela do celular vai acabar estampado numa ficha criminal. Mas não podemos ignorar como a internet remodelou a maneira como meninos entendem a masculinidade. Em um mundo onde os ritos tradicionais de passagem se erodiram, a internet preencheu o vazio, oferecendo um modelo de masculinidade tão sedutor quanto corrosivo. Charlatães da hustle culture vendem a fantasia da dominação por meio da riqueza e do desapego. Autoproclamados “machos alfa” despejam monólogos intermináveis sobre submissão feminina e superioridade masculina. Até a violência é vendida como uma necessidade, uma afirmação de controle em um mundo que supostamente busca arrancá-lo deles. O público? Meninos à procura de respostas.
Na série Adolescência, logo após ver o triste vídeo de Jamie esfaqueando uma garota, seu pai pergunta: “Por quê?”. Ao que Jamie responde: “Eu não sei”. E, pode acreditar, ele realmente não sabe. A masculinidade sempre foi uma herança complexa, mas nunca antes foi tão agressivamente mercantilizada. Os jovens de hoje não herdam um senso de identidade orgânico, eles fazem download dele.

O resultado é uma geração de meninos condicionados a ver o mundo através de uma lente de conflito, ensinados a acreditar que a força se mede pela dominação, que a fraqueza é imperdoável e que a conexão — genuína, vulnerável, real — é uma ameaça.
Se falharmos em intervir, corremos o risco de criar uma geração de meninos que enxergam o mundo como seu inimigo – e a si mesmos como vítimas.
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Toda vez que tento me lembrar de alguma cena de Adolescência, a primeira coisa que me vem na mente é o choro do pai de Jamie. Seu filho só tem 13 anos.

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Essa masculinidade tóxica faz parte da cultura há anos, não é só de agora. Devemos lembrar que até hoje mulheres são espancadas, violentadas e mortas, na maioria das vezes por seus parceiros de vida! Namorados, maridos, amantes, e por aí vai. O “machismo” ainda impera na sociedade, isso é um fato. Só que agora, com a tecnologia avançada trouxe isso para um outro nível! O que “passava” de pai para filho (criação, valores, etc), agora está na palma da mão e sem controle, o que na verdade nunca existiu, mas era em pequenos núcleos, agora qualquer um faz o que quer, posta o que quiser, fala o que bem entende e fica por isso mesmo, e acaba encontrando os adolescentes, que são inseguros por natureza dessa fase, que de alguma forma se identificam, e fazem o normal que é não dividir esses sentimentos, pensamentos, etc, com os pais, professores, ninguém, nem com irmãos.
O buraco é muito grande!
Na mosca, Paula! Obrigado pelo comentário 🙂
Um forte abraço!