Literatura

O Hobbit e um estudo de retórica: Como conversar com um Dragão?

“The world is made of words. And if you know the words that the world is made of, you can make of it whatever you wish.” – Terence McKenna

Quem tem conta no Twitter provavelmente se deparou recentemente com algumas cenas da jornalista Rachel Sheherazade no reality show da Record, “A Fazenda“. Pelo formato e proposta do programa, é de se imaginar que o conteúdo gere certos comportamentos nos participantes para inflamar e engajar a audiência a assistir o reality.

O que me chamou atenção, no entanto, não foi o programa em si, mas si o motivo (ou um dos motivos) pelos quais a Rachel vem ou vinha sendo bastante confrontada dentro da casa: aparentemente, ela “fala bem demais“.

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Bom, essa característica especial da Rachel, chamada oratória, parece a colocar como uma das favoritas a levar o prêmio do programa. Veja bem, o simples fato de falar bem coloca uma pessoa em uma posição superior às demais. Interessante, não é? É também interessante (e ao mesmo tempo lamentável) perceber que isso diz muito sobre a realidade do Brasil como um país em que a educação básica anda bem defasada.

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Fatos são fatos: o fator educacional no ensino básico brasileiro, atrelado à outras realidades, como desigualdade econômica, oportunidades, dentre outras coisas, é o que leva a situações como essa no programa “A Fazenda” que, de uma certa forma, lucra em cima disso. Mas voltando à Rachel e seu linguajar correto, toda essa confusão tem a ver também com retórica. A retórica, em poucas palavras, é a arte de falar bem. E ela é uma arma poderosa. Andei pensando sobre isso desde que me deparei com essas discussões sobre a Sheherazade e me lembrei que a retórica foi muito importante na jornada de Bilbo Bolseiro, tanto em seu encontro com Gollum, quanto em sua empreitada frente ao poderoso dragão Smaug, no clássico atemporal de Tolkien, “O Hobbit“. Embora este conto seja frequentemente lembrado por suas batalhas e grandes aventuras, ele também oferece uma exploração interessante sobre a arte da persuasão e da comunicação e tem potencial para dar um texto legal aqui para a Olhe Novamente. Smaug, além de forte e imponente, é dotado de inteligência e sabedoria nas palavras. Com isso, lanço a pergunta: Como conversar com um Dragão?

Bilbo x Smaug

No campo da literatura fantástica, poucas raças são tão icônicas e inesquecíveis quanto os Dragões. Particularmente, eu os adoro e acho que poucos Dragões são tão interessantes de se observar quanto Smaug. Embora os dragões na fantasia muitas vezes sirvam como criaturas temíveis ou como obstáculos a serem superados pelos heróis, muitas vezes eles são também carentes de profundidade e individualidade, o que não é o caso de Smaug. Esse dragão se diferencia por sua inteligência, personalidade distinta e excelente oratória. A sua habilidade de falar e sua propensão a se gabar de suas habilidades o transformam em ser verdadeiramente notável.

Dragões são geralmente a personificação do poder bruto e da destruição. Smaug, por outro lado, desafia essas convenções ao ser um personagem por si só, em vez de um mero artifício para a trama.

No centro dessa singularidade, está sua personalidade. Smaug é também marcado pela vaidade, arrogância e orgulho. Ele se vangloria de sua própria magnificência e se orgulha de seu poder e do vasto tesouro que guarda.

“Minha armadura é como dez escudos, meus dentes são espadas, minhas garras, lanças, o golpe de minha cauda, uma trovoada, minhas asas, um furacão, e o meu hálito, morte!” – Smaug, em “O Hobbit”.

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Já Bilbo é um Hobbit que, apesar do tamanho, possui muitas qualidades. Bilbo têm um tipo particular de retórica, o que sempre alavancou seu status dentre as outras pessoas na Terra-Média. É uma retórica simples, que se concentra em provar a sua própria moralidade e apresentar verdades sem muita elaboração. Essa na verdade é uma característica dos Hobbits como um todo.

No geral, os Hobbits tem essa posição de “estranhos”, já que poucos na Terra-Média conhecem sobre sua natureza. De uma certa forma, isso os livra das expectativas sociais que as classes mais conhecidas possuem, e eles conseguem tirar vantagem disso em vez de serem prejudicados. Como estranhos, trazem novas perspetivas às situações em que atuam e podem dar novas ideias e até mesmo encorajamento.

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Hobbits on The Cormallen Fields“, por Damako Art

O encontro de Bilbo com Smaug se dá em um contexto delicado para o pequeno Hobbit. Após sua jornada dentro da Montanha Solitária, guardada pelo grande Smaug, Bilbo e os anões precisam pensar em como sair dali. Mas, para que isso aconteça, precisam saber o que fazer em relação ao dragão. Bilbo então, talvez por falta de opções mais razoáveis, tem a brilhante ideia de ir, ele mesmo, dar uma checada em Smaug que, na teoria, estaria dormindo.

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Bilbo Bolseiro, “O Hobbit”

O problema é que as teorias sempre foram traiçoeiras na vida de Bilbo e, naquela vez, Smaug estava mais acordado do que nunca.

Conversa com Smaug

Apesar da “vantagem” de possuir o Um Anel (o que terei que pré-supor que você que está lendo isso já saiba do que se trata), Bilbo não estava completamente “invisível” perante Smaug. “Eu posso sentir seu cheiro, ladrão” – diz Smaug ao notar sua presença. O diálogo entre os dois é para mim um excelente exemplo da arte da retórica, pois Bilbo sabia que poderia ser comido a qualquer momento, mas utilizou algumas técnicas persuasivas para manter a conversa por tempo suficiente para conhecer mais sobre Smaug e escapar dali com vida.

A conversa começa com Bilbo abordando Smaug de maneira cortês e educada, com a cautela de quem sabe que está se metendo em encrenca. Ele chama o dragão de “magnífico” e usa uma linguagem extravagante para transmitir respeito e admiração. Essa abordagem inicial dá um tom de diplomacia e civilidade, e mostra a importância de iniciar uma conversa com um tom positivo.

“Verdadeiramente, canções e histórias ficam muitíssimo aquém da realidade, ó Smaug, a primeiríssima e maior das calamidades” – Bilbo para Smaug.

E a melhor estratégia que Bilbo encontrou frente àquela situação foi o uso da distração. Em vez de confrontar Smaug diretamente, Bilbo usou enigmas inteligentes e uma linguagem ambígua para desviar a atenção do dragão, mantendo Smaug envolvido em um desafio mental. Bilbo já tinha mostrado esse lado astudo de sua retórica em seu encontro com Gollum, mas seu debate com Smaug reforça seu poder de guiar sutilmente uma conversa em benefício próprio.

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Ao longo da conversa, Bilbo envolve o intelecto e a curiosidade de Smaug. Ele “reconhece” a sabedoria do dragão e expressa isso, o que acaba incentivando Smaug a deixar escapar certas informações. Além disso, Bilbo também toca no ego do dragão, elogiando sua força, inteligência e a grandeza de seu tesouro. Isso atinge tão bem a vaidade de Smaug que o mantém falando, o que Tolkien descreve, no próprio livro, como “o jeito certo de falar com dragões“.

Por mais que não fique 100% claro se Bilbo sabia ou não que os enigmas o ajudariam, eles possivelmente salvaram sua vida. Smaug certamente via a maioria das pessoas como simples insetos, mas Bilbo era, no mínimo, capaz de estimular seu cérebro, o que provavelmente o levou a uma reação muito mais calma com o Hobbit do que a maioria das outras pessoas. Iss é, claro, um ponto positivo para Bilbo, já que ele conseguiu encontrar uma maneira de não precisar entrar em combate e mais uma vez foi subestimado por seu tamanho, expondo novamente sua capacidade de tirar vantagem da falta de conhecimento geral e estereotipado que as pessoas tem sobre os Hobbits.

A Retórica em: Logos, Pathos e Ethos

Os termos Logos, Pathos e Ethos são atribuídos à Aristóteles. Ele usou esses três conceitos em suas explicações sobre retórica, ou a arte de influenciar o pensamento e a conduta de um público. Para Aristóteles, os três modos de persuasão referiam-se especificamente às três partes principais de um argumento: o orador (ethos), o próprio argumento (logos) e o público (pathos).

A conversa de Bilbo com Smaug em “O Hobbit” pode de certa forma ser analisada nesses termos, embora esses elementos possam não ser tão explicitamente definidos como em uma análise retórica formal.

“Logos” refere-se ao uso da lógica e da razão para persuadir alguém. Na conversa, Bilbo emprega o logos quando enfrenta Smaug em um debate e usa um raciocínio inteligente para enganar o dragão. Por exemplo, Bilbo deduz o ponto fraco de Smaug em sua escama e o convence a mostrá-la a ele, se aproveitando do fato de que Smaug não via qualquer ameaça no pequeno Hobbit e tinha o ego bastante aguçado.

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“Pathos” apela às emoções e sentimentos do público. Neste contexto, as interações de Bilbo com Smaug evocam esse elemento pois criam tensão e medo. A presença ameaçadora de Smaug e a situação perigosa de um Hobbit solitário frente a um poderoso dragão provocam uma forte resposta emocional nos leitores, gerando uma sensação de perigo e antecipação em quem está lendo.

“Ethos” é o apelo à credibilidade e ao caráter do orador. Embora Bilbo não seja inicialmente visto como alguém digno de crédito ou heróico por Smaug, suas ações e inteligência nas respostas gradualmente estabelecem seu ethos aos olhos do dragão. A habilidade de Bilbo de falar em enigmas com Smaug e escapar astuciosamente aumenta sua credibilidade como um adversário digno e inteligente.

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A retórica e simplicidade como arma dos Hobbits

A retórica dos Hobbits possui várias características distintas. A primeira delas está na simplicidade. Tolkien faz com que seus Hobbits falem de uma maneira muito mais simples, sinalizando a humildade de uma classe que reconhece estar envolvida com coisas que muitas vezes estão muito além da sua experiência, mas que ainda assim possuem algo a oferecer. Em segundo lugar, a retórica Hobbit cria um ethos particular com os seus apelos diretos à verdade e à moralidade. Os Hobbits frequentemente são retratados não apenas falando de forma simples, mas falando a verdade. O ethos dos hobbits é criado através de suas atitudes humildes (refletidas em sua simplicidade) e através de sua capacidade de provar sua boa posição moral ao seu público, o que é demonstrado através do uso da verdade e através de sua determinação em fazer a coisa certa, apesar da sua inexperiência e de seu status desconhecido na terra média. Um exemplo legal disso está em “O Senhor dos Anéis – A sociedade do anel“, onde Frodo, um Hobbit, se apresenta como essa figura humilde e, mesmo que não possua as habilidades de um grande guerreiro, ganha a confiança de seu grupo ao se dispor à levar o anel para Mordor.

Mesmo com tantos guerreiros formidáveis, foi Frodo, um Hobbit, quem tomou a iniciativa de carregar o anel até Mordor.

Este ethos humilde e moral é um contraste importante com a retórica complexa e muitas vezes desonesta que se pode ver em personagens não-hobbits, e a narrativa de Tolkien deixa claro que a veracidade do discurso de um hobbit é significativa não apenas porque é moralmente correta, mas sim porque ela é mais persuasiva do que a retórica falsa que os hobbits podem encontrar. Bilbo, por exemplo, sempre fala de forma simples e humilde, confiando na moralidade percebida pelo público e no foco na verdade de seus pontos de vista. Tolkien mostra que, quando combinadas de forma eficaz, estas características resultam num argumento ou estratégia retórica que é super adequada à tarefa que os hobbits têm: criar um impacto duradouro em ambientes, povos e culturas aos quais eles são vistos como estranhos.

Superando Dragões com as palavras

A conversa entre Bilbo e Smaug em “O Hobbit” é um exemplo notável de como a retórica dos Hobbits desempenha um papel crucial na história. Bilbo enfrenta um adversário formidável usando sua simplicidade e habilidade de entretenimento junto com uma estratégia retórica. Isso mostra como a retórica dos Hobbits é uma parte fundamental da construção de seus personagens e como eles usam suas palavras de forma eficaz para alcançar seus objetivos, mesmo em situações extraordinárias.

É uma lembrança de que, muitas vezes, a simplicidade e a honestidade podem ser armas poderosas em um diálogo, nos fazendo vencer até mesmo os mais temíveis e perspicazes Dragões.

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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Um forte abraço!

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Material de Referência

1 – Livro: “O Hobbit” (1937), J.R.R Tolkien

2 – School of Liberal Arts, “The Rhetorical Triangle: Understanding and Using Logos, Ethos, and Pathos” (https://www.lsu.edu/hss/english/files/university_writing_files/item35402.pdf)

3 – Brigham Young University, Samuel Bennett Watson, ““Chosen Instruments”: Tolkien’s Hobbits and the Rhetoric of the
Dispossessed” (https://scholarsarchive.byu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=9264&context=etd)

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