O sentir em Neon Genesis Evangelion: Quando a trama não é o mais importante
Já assistiu Neon Genesis Evangelion? Bom, acho que se você se identifica com o nicho desse site, talvez você ao menos já tenha ouvido falar desse anime. Sabe, quando pensamos nele, a primeira coisa que geralmente vem à mente é sua trama: densa, lenta, difícil de acompanhar e principalmente de entender. Um sentimento extremamente válido, pois Evangelion é uma história com temas apocalípticos, organizações misteriosas e simbolismo religioso, e isso torna muito fácil de se perder no meio do universo de sua história, especialmente porque ela possui esse ritmo bem peculiar, onde muitas pessoas acabam tendo aquela sensação de “nada acontece”.
No entanto, reduzir essa obra à sua trama seria ignorar o que realmente a torna legal e diferente. Mais do que o desenrolar dos eventos ou a mecânica de seu mundo, Evangelion é uma experiência profundamente íntima e emocional, feita mais para ser sentida e menos para ser apenas compreendida.
Antes de mais nada, uma rápida introdução ao anime, para você que deseja seguir no texto, mas está meio perdido. E para isso, vou usar a introdução que o próprio autor, Hideaki Anno, nos da em uma de suas declarações sobre a obra:
O ano: 2015. Um mundo onde, quinze anos antes, mais da metade da população humana pereceu. Um mundo que foi milagrosamente revivido: sua economia, a produção, circulação, consumo de bens materiais, de modo que mesmo as prateleiras das lojas de conveniência estão cheias. Um mundo onde as pessoas se acostumaram à ressurreição – mas ainda sentem que o fim do mundo está destinado a vir. Um mundo onde o número de crianças, os futuros líderes do mundo, é pequeno. Um mundo onde o Japão viu a Tóquio original destruída, descartada e esquecida, e construiu uma nova capital na Prefeitura de Nagano. Eles construíram uma nova capital, Tóquio-2, então a deixaram para ser uma isca – então construíram outra nova capital, Tóquio-3, e tentaram torná-la segura de ataques. Um mundo onde algum inimigo completamente desconhecido chamado “Anjos” vem para devastar as cidades.
Ok, talvez você não veja nada de muito especial nisso. O que torna a série tão diferentona então? Bom, é exatamente sua narrativa, complexa e não convencional que torna Evangelion uma obra altamente influente e debatida até hoje. No cerne dessa história está uma jornada psicológica centrada em seus personagens, especialmente no protagonista Shinji Ikari. O essencial da série não está em desvendar sua trama, mas sim em criar certa empatia com as lutas internas de seus personagens. Evangelion tem um ritmo que muitas vezes pode ser chato, usando de pausas e momentos atmosféricos lentos para enfatizar essa profundidade emocional, mas são esses momentos que dão ao espectador o espaço necessário para sentir as mentes dos personagens.
A Natureza Íntima de Evangelion
Desde o primeiro episódio, fica claro que Evangelion não é só mais um anime de mecha. Embora as cenas de batalha entre as unidades EVA e os Anjos sejam visualmente interessantes e significativas dentro do tema, elas não são o verdadeiro coração da trama. A verdadeira luta ocorre internamente, na psique dos personagens. Evangelion trata menos da guerra contra ameaças extraterrestres e mais das guerras pessoais que os personagens travam dentro de si: seja o medo de rejeição de Shinji, a necessidade desesperada de validação de Asuka ou a culpa e solidão não resolvidas de Misato.
O anime parece a todo o tempo evitar um ritmo convencional e clareza narrativa, frequentemente se demorando em cenas lentas e aparentemente sem acontecimentos. Esses momentos, como o Shinji olhando para o teto, Asuka sentada em silêncio, ou um EVA deitado imóvel após uma batalha, não são descartáveis. Eles oferecem uma reflexão sobre os estados emocionais daqueles personagens. Hideaki Anno usa essas pausas para dar enfase ao peso psicológico que os personagens carregam e nos convidar a entrar em suas mentes.
Uma das maneiras mais interessantes que encontrei de entender isso é ver Evangelion como um reflexo do estado interno de seu protagonista, Shinji Ikari, onde o tom e o mundo da série mudam em paralelo com seu desenvolvimento emocional. Essa dinâmica cria três “arcos” distintos, cada um correspondente a uma fase diferente da jornada psicológica de Shinji.
1. O Início: Frio, Distante, Oprimido e Inseguro
Nos primeiros episódios, Shinji é jogado em uma situação que ele não entende nem se sente pronto para lidar. Tendo que pilotar a Unidade EVA-01 para lutar contra seres que ele nem sequer conhece, ele sente o peso das expectativas do mundo sobre ele. São episódios que refletem seu distanciamento emocional, sua relação com seu pai, sua insegurança e a pressão gigante que ele enfrenta, tamanha é sua responsabilidade. O mundo ao seu redor parece frio, desconhecido e isolado, assim como seu próprio estado mental. O ritmo lento, inquieto e com muitos momentos de silêncio, intensificando esse senso de distância que Shinji sente dos outros e de seu papel.
“E nesse mundo, um garoto de 14 anos se encolhe diante do contato humano. E ele tenta viver em um mundo fechado onde seu comportamento o condena, e ele abandonou a tentativa de se entender. Um jovem covarde que sente que seu pai o abandonou, e então ele se convenceu de que é uma pessoa completamente desnecessária, tanto que ele não consegue nem cometer suicídio.” – Hideaki Anno
2. Confiança e Conflito: A Energia Caótica da Adolescência
À medida que a série avança, Shinji se torna mais confiante em suas habilidades, e essa mudança se reflete no tom da série. A introdução de Asuka na história injeta uma explosão de energia nos episódios. Sua personalidade vibrante e abrasiva força Shinji a confrontar suas próprias emoções e inseguranças. Os episódios se tornam mais animados e grandiosos, com momentos de humor, tensão adolescente e curiosidade sexual surgindo. Essa é uma fase bem interessante e reflete um surgimento importante de identidade em Shinji durante um período de puberdade e adolescência. Ele começa a se abrir para os outros, mas essa abertura também gera conflito, confusão e tensão à medida que as relações interpessoais dos personagens se tornam cada vez mais complexas.
3. Deterioração e Desespero: O Colapso Psicológico
Após o encontro traumático de Shinji com Leliel e a experiência horrível de ser forçado a matar um amigo, a série toma um rumo mais sombrio e perturbador. O psicológico de Shinji começa a se desfazer, e o tom da série muda de acordo com isso. O mundo de Evangelion fica mais perigoso e fragmentado, como um espelho ao colapso interno do protagonista. A própria realidade começa a se distorcer à medida que o anime se afasta dos conflitos externos e mergulha ainda mais profundamente nesse campo abstrato e psicológico. Eu diria que Evangelion fica ainda mais esquisito. Os episódios finais então retratam a desintegração total do senso de identidade de Shinji, com a narrativa se dissolvendo em uma exploração surreal de seus medos, desejos e desesperos mais íntimos.
De forma parecida, temos Rei Ayanami. A Rei também é um reflexo da busca por identidade e propósito. Desde o início, ela é retratada como alguém distante e apática, uma figura que parece quase desprovida de emoções ou de um senso de individualidade. No entanto, essa aparente frieza não é por escolha, mas sim pelo fato de que Rei é, em muitos sentidos, uma criação artificial, um clone destinado a servir a um propósito maior, manipulado por Gendo e SEELE. Sua existência, que está ligada à instrumentalização humana e ao destino da humanidade, reforça a questão do que significa ser um indivíduo e como a identidade é moldada não apenas por quem somos, mas também pelas nossas relações com os outros. Rei luta com sua própria natureza, já que ela não é inteiramente humana e isso a isola, a impedindo de criar conexões significativas.
Conforme a série avança, vemos pequenos momentos onde Rei começa a questionar seu propósito e a perceber suas próprias emoções, especialmente em sua relação com Shinji. Embora ela inicialmente se veja como descartável, uma ferramenta sem valor, sua progressiva autoconsciência revela o desejo por significado além de seu papel programado. Rei, assim como Shinji, busca encontrar um lugar no mundo, mas seu desafio é ainda mais profundo, já que sua própria existência é construída para ser sacrificável. Sua evolução na série vai de encontro com a exploração do que significa ser humano em Evangelion, e como mesmo aqueles que acreditam ser substituíveis ou insignificantes carregam o desejo básico de serem compreendidos e aceitos. Rei, portanto, simboliza a luta pela identidade em um nível fundamental: ela não apenas quer entender quem ela é, mas também provar que sua existência tem valor além de qualquer papel que lhe foi imposto.
Procurar sentir em vez de entender
Acho que uma das razões pelas quais Neon Genesis Evangelion continua sendo tão discutido e debatido é sua recusa em fornecer respostas fáceis. Quer dizer, acho não, tenho certeza. E eu gosto disso. A trama da série é visivelmente difícil de seguir e isso é intencional. Temos camadas de simbolismo religioso, diálogos difíceis de interpretar e entender e muitas perguntas sem resposta. Mas se prender a esses detalhes é perder o ponto central. Evangelion não é um quebra-cabeça a ser resolvido, mas uma experiência emocional a ser vivida e acho que é isso o que a série nos propõe a fazer. Se voltarmos à declaração de Hideaki Anno que falei lá no início, dá para perceber que o autor colocou muito de si mesmo em sua história.
“Dizem: “Viver é mudar”. Comecei esta produção com o desejo de que, uma vez concluída, o mundo e os heróis mudassem. Esse era meu “verdadeiro” desejo. Tentei incluir tudo de mim em Neon Genesis Evangelion – eu mesmo, um homem quebrado que não conseguiu fazer nada por quatro anos. Um homem que fugiu por quatro anos, um que simplesmente não estava morto. Então um pensamento, “Você não pode fugir”, veio a mim, e reiniciei esta produção. É uma produção em que meu único pensamento era gravar meus sentimentos no filme. Sei que meu comportamento foi irrefletido, problemático e arrogante. Mas tentei. Não sei qual será o resultado.”
Portanto, como narrativa, o maior triunfo de Evangelion está na capacidade de fazer os espectadores sentirem o peso das emoções dos personagens, como solidão, medo e vulnerabilidade. Coisas que o próprio autor colocou ali. Não se trata de entender a origem dos Anjos ou os verdadeiros planos da SEELE. Se trata de ressoar com a luta de Shinji para se conectar com os outros, coisa que muitos de nós enfrentamos. É sobre a batalha de Asuka por autoafirmação e também sobre a busca de Misato por significado. Estas são experiências profundamente humanas, e Evangelion as captura de forma crua e sem filtros.
Considero Neon Genesis Evangelion uma obra-prima, especialmente pela sua disposição em explorar a condição humana em toda a sua confusão, dor, mas beleza também. É uma história que exige ser sentida mais do que compreendida e nela vemos um reflexo de nossos próprios medos, inseguranças e desejos de conexão. E é essa ressonância emocional, extremamente íntima, que fez de Evangelion uma experiência tão interessante e transformadora.
De certa forma, é uma história que nos incentiva a olharmos para nós mesmos de maneira sincera, olhando mais para dentro, para além das aparências superficiais. Uma reflexão sobre nossa verdadeira essência. E quando fazemos isso, podemos encontrar aspectos inesperados ou desagradáveis sobre nós mesmos, o que faz parte, mas é importante manter a serenidade e aceitar esse processo com coragem e tranquilidade. E você, já assistiu ou leu a história de Neon Genesis Evangelion?
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