Artes

Johannes Vermeer e a Beleza da Ambiguidade

Ambiguidade.

Eu sempre enxerguei a arte como ambígua, onde algo pode ter significados diferentes para pessoas diferentes – “é o poder da interpretação”, como dizem por aí. De fato é. Às vezes o que é trágico para mim, pode significar felicidade para outros. E isso só é possível porque temos gostos diferentes, personalidades diferentes. Pensamos e nos expressamos de maneiras diferentes.

Mas essa subjetividade não significa que não exista uma resposta ou opinião que seja mais correta ou precisa do que outras. Significa apenas que não existe uma forma, digamos, 100% garantida, de determinar e verificar de forma objetiva essa opinião e formar um consenso único. Desculpa se ficou confuso.

O lance é que todos nós temos diferentes níveis de interpretação sobre uma arte, somos livres para formar nossas opiniões com base no livre arbítrio, na intuição e na compreensão pessoal. Além disso, o nosso estado emocional também dita como vemos a obra de arte no momento em que a vemos. Poderíamos reagir à mesma pintura, por exemplo, de maneira diferente em momentos diferentes: ver uma obra de arte quando está feliz e amá-la, ver a mesma obra algum tempo depois e odiá-la. Todos tem “aquele dia”.

É legal pensar nisso porque, bem, eu sempre entendi que a arte é um meio de expressão. Ela sempre quer te dizer alguma coisa. É uma forma de linguagem. Um dos maiores dons da humanidade é a linguagem, que se apresenta como música, um quadro, um filme, etc. Em vários formatos. Porém, por mais que sejamos seres dotados de linguagem, mesmo assim, muitas vezes nossa comunicação fica em aberto. Cheia de significados ocultos que, às vezes, nem mesmo o orador sabe dizer o que é. E existe também aqueles momentos onde o silêncio fala mais alto do que as palavras.

E vou te contar um segredo: existe uma beleza no que não foi dito. O silêncio cria lacunas e a maneira como alguém lê o silêncio é a maneira como ela vai preencher essas lacunas, de acordo com sua perspectiva. O silêncio cria narrativas, o silêncio é perigoso. A mesma pessoa pode ser salvadora para um indivíduo e destruidora para outro.

Existe essa pintura, uma das mais famosas do mundo, chamada “Moça com Brinco de Pérola”, de Johannes Vermeer. Tenho andado fascinado por esse quadro ultimamente. Não pelo traço em si, mas sim porque, para mim, Vermeer não pintou uma moça, ele pintou a ambiguidade, o silêncio, o não dito. E esse quadro, acima de tudo, nos desafia a questionar. Questionar o que foi, o que é e o que poderia ser.

A garota do quadro possui os lábios entreabertos, como se estivesse prestes a dizer alguma coisa, mas nunca ouviremos nenhum som de sua boca. Seu rosto é inocentemente expressivo, mas não podemos saber seus pensamentos. O que ela quer dizer? Ela está desejando algo? Está desejando alguém? Ela está sendo desejada? Seu olhar é cativante, mas nem sabemos ao certo se se trata de um retrato real ou de um estudo de personagem. Um tronie. Não sabemos quem é a moça do quadro, mas sentimos que a conhecemos porque ela nos olha com muita intimidade. Confundimos esse olhar com familiaridade. Assim como a Mona Lisa, o que nos resta é questionar a ambiguidade dos seus pensamentos.

No que ela está pensando?

Girl with a Pearl Earring (1665)

Essa é uma obra que cria lacunas e, portanto, abre portas para interpretações, criando narrativas. “Moça com Brinco de Pérola”, assim como muitas outras obras de Vermeer, deixa a conversa em aberto. E estamos conversando sobre ela a mais de 300 anos. Chega a ser até engraçado o quão impressionante é isso.

Existe algo de especial naquilo que não foi dito. Talvez possamos entender melhor isso através de Johannes Vermeer e sua relação com a ambiguidade. Suas obras possuem exatamente isso: um profundo silêncio e uma provocação intensa sobre o que está se passando ali.

O olhar artístico de Johannes Vermeer

Johannes Vermeer foi um pintor holandês do período barroco especializado em cenas interiores domésticas da vida da classe média. Como muitos dizem, “um pintor do dia a dia”. Durante sua vida, ele foi um pintor de sucesso moderado, reconhecido em Delft e Haia. No entanto, ele produziu relativamente poucas pinturas e não fez muito dinheiro com isso, deixando sua esposa e filhos endividados quando morreu. Somente 36 obras são conhecidas por pertencerem a Vermeer, um número talvez pequeno, mas que o transforma em um artista ainda mais raro. Suas obras estão hoje entre os maiores tesouros dos melhores museus do mundo. Vermeer sempre trabalhou devagar e com muito cuidado, e frequentemente usava pigmentos muito caros. Ele é particularmente conhecido por seu tratamento e uso magistral da luz em seus trabalhos. Nenhum outro artista holandês contemporâneo criou cenas com tanta luminosidade ou pureza de cor. Seu trabalho, no entanto, passou um bom tempo “nas sombras”.

Vermeer pintava o povo e o cenário da Holanda durante a Idade de Ouro Holandesa, um período em que o comércio, a ciência, as forças armadas e a arte no país estavam entre os mais aclamados do mundo. Mas após a sua morte em 1675, a sua obra, que foi comprada apenas por um ou dois colecionadores, caiu no esquecimento, onde permaneceu por mais de um século. Felizmente, Théophile Thoré-Bürger, que redescobriu o trabalho do artista em 1842, começou a restabelecer o legado de Vermeer ao lado de outros pintores holandeses da Idade de Ouro que se tornaram nomes conhecidos.

The Little Street (1657–1658)

Com o tempo, Vermeer passou a retratar figuras femininas em situações cotidianas, seja lendo ou escrevendo cartas, tocando instrumentos musicais ou mexendo com joias. Ele procurou maneiras de expressar um sentimento de harmonia interior na vida cotidiana, principalmente no interior de uma casa privada, local onde, geralmente, estavam as mulheres, destinadas a cuidar do lar e dos afazeres domésticos. Em pinturas como A Leiteira (1657-1658), Mulher com colar de pérolas (1662-1665) e Mulher de azul lendo uma carta (1663), ele utilizou as leis da perspectiva e a colocação de objetos individuais – cadeiras, mesas, paredes, mapas, molduras de janelas – para criar uma sensação natural de ordem. Os objetos cuidadosamente escolhidos por Vermeer nunca são colocados aleatoriamente: suas posições, proporções, cores e texturas funcionam sempre em harmonia com suas figuras. Existe uma luz radiante nas imagens. Vermeer retratava frequentemente a luz como vindo do lado de fora, pela janela.

A Leiteira (1657-1658)
Mulher com colar de pérolas (1662-1665)
Mulher de azul lendo uma carta (1663)

O curioso e fascinante em suas obras está, justamente, em sua ambiguidade. Vermeer nos convida a refletir sobre o que de fato se passa em suas representações, trazendo ideias filosóficas e abstratas. Através de sua arte, cheia de significados ocultos, imaginamos narrativas. O que estaria a mulher de Azul lendo em sua carta? As palavras a trazem dor ou alegria? Quem sabe algum outro sentimento?

Vermeer e beleza das coisas não ditas

À medida que a gente observa qualquer uma das 36 pinturas de Johannes Vermeer, vamos ficando mais e mais surpresos com os detalhes que ele representa. É como se houvesse algo novo à cada vez que você encara suas pinturas. Porém, quando olhamos mais de perto e de maneira mais lenta, percebemos que há sempre algo não dito ali, algo oculto e misterioso que só aparece quando olhamos por mais tempo. Algo ambíguo.

Um bom exemplo desta ambiguidade é uma de suas obras-primas, “Woman holding a Balance” (1662–1663). Essa é uma obra luminosa e bastante elegante, pintada com aquele mesmo sfumato que caracteriza as obras-primas de Leonardo Da Vinci, especialmente na Mona Lisa.

“Woman holding a Balance” (1662–1663)

Com um olhar rápido, o quadro parece simples: uma mulher, serena e tranquila, diante de uma mesa que contém uma caixa de joias enfeitada com pérolas enquanto ela pesa algo em sua balança de mão. Mas se olharmos com mais calma, se olharmos por mais tempo, o não dito vêm. Ela está pesando as joias? Pode parecer uma resposta óbvia, mas não se pode concluir isso somente olhando a imagem. Atrás da mulher vemos uma pintura que podemos reconhecer como O Julgamento Final – vemos Cristo, anjos, a Virgem Maria e, na parte inferior, contornos estilizados de humanos sombrios caindo para trás, atordoados e cegos no momento.

Então, será que em vez de pesar joias, a mulher está pesando almas humanas? Ou será que ela está equilibrando suas próprias experiências de vida em cada prato da balança? Se sim, o que ela percebeu sobre sua vida?

Adoro como a arte exige que a gente pare e reflita. E isso implica em abraçar a ambiguidade, a qual Vermeer transmite através de seu trabalho. Não podemos saber quais os pensamentos da mulher sobre sua tarefa, o que a motiva ou o que ela espera ganhar com aquilo. Só podemos vislumbrar seu processo e preencher as lacunas. À medida que em que alimentamos nossa própria curiosidade, nos tornamos mais atenciosos. Obras como essa são um estímulo à nossa imaginação.

A ambiguidade é o que eleva a arte de Vermeer para um nível maior. Numa mesma obra, podemos ver uma ambiguidade expressiva e narrativa. Expressiva como no sorriso de Mona Lisa, por exemplo. O enigma de sua expressão é o que atrai milhões de pessoas a ela, ano após ano. O que ela está pensando? E narrativa ao nos perguntamos qual a história daquela imagem, quais as relações estão por trás do que é retratado ali. Vermeer deixava isso muito aberto e sujeito à nossa interpretação. Por exemplo, em “Officer and Laughing Girl” (1657). É uma simples conversa? Um flerte? É uma incerteza narrativa muito gostosa de refletir sobre.

Officer and Laughing Girl (1657)

Grande parte da arte de Vermeer possui símbolos ou significados ocultos, normalmente representados nos quadros que ele pinta dentro de sua figura. Como na mulher com a balança, por exemplo. Outro quadro bem legal é o “The love letter” (1669-1670).

Ao olhar o quadro, imediatamente nos questionamos sobre o conteúdo da carta. Seriam boas notícias? Logo ao fundo, vemos duas pinturas, uma delas representando um barco navegando no mar. As pinturas parecem decorativas e realistas à primeira vista, mas revelam um significado oculto quando observadas de perto. Isto não significava que a arte só funciona para aqueles que podem ler os enigmas e as alegóricas, mas que as pinturas também tem um significado emocional.

The love letter (1669-1670)

A ausência e o desejo de reencontro são representadas por aquele barco. Como observaram os historiadores da arte, o barco da imagem está associado ao pretendente da moça, como um barco em um mar agitado, assim com o amor, em busca do porto seguro dos braços de sua amada.

Mas quem sabe ela nem seja casada ou comprometida? Seu rosto me parece surpreso. E se ela for a filha de algum comerciante rico ou algo semelhante, que acabou de receber uma carta de um homem que seus pais tenham escolhido como possível marido para ela? E se a janela aberta for seu desejo de conhecer o mundo lá de fora? A liberdade é o mais doce de todos os presentes.

Quando a arte tem esse nível de ambiguidade, significa que diferentes pessoas, em diferentes épocas, com costumes e padrões variados, poderão encará-la e ainda assim encontrar algo de valor. Afinal, é disso que se trata a arte, gerar reflexão e senso crítico que transcende o tempo.

Essa é a beleza da ambiguidade e das coisas não ditas. Elas nos colocam em contato com algo mais profundo, ou pelo menos mais significativo.

Abraçando as possibilidades

Saindo um pouquinho de Vermeer, acho que nós, como humanidade, temos uma tendência para o claro e familiar. O que faz sentido. Mas vejo benefícios em abraçarmos a ambiguidade. Isso nos dá a capacidade de gerar uma conversa contínua ao longo dos séculos, assim como as obras de Vermeer. Quando olhamos mais a fundo para a incerteza, percebemos a riqueza de interpretações que a arte nos oferece, e que são de certa forma um espelho de nossas próprias experiências e perspectivas também. Afinal, na ambiguidade, encontramos liberdade de imaginação e o poder de questionar, tornando cada observação algo único e pessoal. Criamos novas narrativas.

Além disso, a ambiguidade permite flexibilidade e inclusão. Quando não há fronteiras para a interpretação, qualquer interpretação é válida. Dessa forma, todos podem ter experiências e opiniões diferentes sobre a mesma coisa. Nem sempre isso é bom, mas muitas vezes isso serve para enriquecer.

No fim, essa incerteza e as possibilidades narrativas que temos sobre as obras de Vermeer provavelmente são só nossas. Um presente que ele deixou para o futuro. Um legado. Acredito que nenhuma de suas obras eram ambíguas para ele, só ele sabia o que ele estava pintando, o que ele sentia, o que ele queria expressar. Deixar em aberto talvez seja uma forma de dizer “hey, não quero te dizer o que pensar”. Ou talvez suas obras fossem sua forma de colocar para fora tudo o que atordoava sua mente.

Não dá para saber. É ambíguo demais. E quer saber? Isso é bonito também.

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