Ensaios

A Mitologia Grega e a Natureza da Fé

Os Gregos antigos realmente tinham fé em seus mitos?

Sempre que acesso minhas memórias de adolescente, lembro o quanto eu gostava de mitologia grega. Os mitos da Grécia Antiga são algumas das histórias mais fascinantes e duradouras da humanidade e sempre chamaram minha atenção. Segundo esses mitos, havia doze deuses que viviam no Monte Olimpo: Zeus, Poseidon, Hera, Deméter, Afrodite, Atena, Ártemis, Apolo, Ares, Hefesto, Hermes e Dionísio. Eles eram conhecidos como os “deuses olímpicos”, as divindades gregas mais importantes, adoradas em santuários e templos por toda a Grécia. As pessoas oravam a esses deuses, contavam suas histórias e construíam estátuas colossais de marfim e ouro em sua honra.

Fé Gregos Antigos

“Então Zeus não mais conteve seu poder; mas seu coração estava cheio de fúria, e ele mostrou toda sua força. Do Olimpo, veio imediatamente, lançando seu relâmpago: os raios voaram espessos e rápidos de sua mão forte, acompanhados por trovões e relâmpagos, girando uma chama impressionante. A terra vivificante estourou em chamas, e a vasta floresta crepitava com fogo por toda parte. Toda a terra fervia, assim como os riachos do Oceano e o mar infrutífero.”Hesíodo, “The Homeric Hymns and Homerica”

Existiam muitas histórias sobre esses deuses, que não apenas os relacionavam ao universo, mas também relatavam seus feitos específicos e seus relacionamentos entre si. Zeus liderou os deuses mais jovens em uma revolta contra os Titãs, derrubando seu pai Cronos e proclamando-se rei. Essa luta, conhecida como Titanomaquia, terminou com a vitória dos olímpicos, que baniram os Titãs ao Tártaro. Adoro ler sobre essas coisas.

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Outro conto narra como Zeus não podia ver uma mulher mortal dando mole por aí que ele já queria se envolver. Numa dessas, ele se apaixonou por Alcmena, uma mortal, com quem teve o famoso Hércules. Segundo o mito, o bebê Hércules era tão forte que, ao ser amamentado por Hera (que foi enganada para cuidar dele), mamou com tanta força que ela o rejeitou, fazendo seu leite espalhar-se pelos céus, criando assim a Via Láctea.

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“O Nascimento da Via Lactea” (1637), por Peter Paul Rubens

Esses mitos, desde Zeus lançando raios a rodo até as aventuras de Hércules ou da princesa Xena, sempre me fascinaram. No entanto, não é de mitos especificamente que quero falar hoje. Eu quero, na verdade, explorar um pouco o lado da fé que essas histórias possuem, partindo da seguinte pergunta: será que os gregos antigos realmente acreditavam em seus mitos? Eles realmente achavam que seus deuses viviam lá no topo do Monte Olimpo? Eu não sou o primeiro a perguntar isso, existem inclusive livros sobre o tema por aí, mas mesmo assim quero usar minha posição como dono absoluto desse site para jogar meus dois centavos no assunto – tal como Zeus (xD).

Ah! E tire seu cavalo da chuva: se você, leitor, acha que eu darei respostas definitivas aqui, está enganado. A resposta para esse tipo de pergunta é muito mais complexa do que um simples sim ou não, e eu não tenho a menor intenção de bater qualquer martelo aqui. Mas refletir sobre algo nunca é demais. E a “fé” grega pode ser uma ponte interessante para repensar a natureza da crença em si e considerar como as pessoas em diferentes épocas e culturas entendiam o mundo ao seu redor. Isso tem mais a cara da Olhe Novamente, não acha?

A realidade do Monte Olimpo

Uma curiosidade legal: O Monte Olimpo realmente existe! É uma montanha de verdade que fica no norte da Grécia, a mais alta do país, com cerca de 3.000 metros de altura. Na mitologia grega, esse lugar era o lar dos doze deuses olímpicos: Zeus, Poseidon, Hera e o resto da turma. Como disse antes, esses deuses eram os pontos focais de adoração, com templos e estátuas dedicados a eles em todo o mundo grego.

No entanto, apesar de sua existência física e comprovada, quando os gregos antigos subiram o Monte Olimpo, não encontraram deuses esperando por eles nem vivendo lá (quem poderia imaginar, né?). Mais tarde, arqueólogos descobriram restos de templos e oferendas nos arredores do monte, mostrando que a montanha era de fato considerada sagrada. O Santuário Olímpico de Zeus, por exemplo, em Dion, é um dos centros religiosos mais importantes de seu tempo, dedicado a Zeus, o pai dos deuses olímpicos. Localizado no parque arqueológico de Dion, no pé do Monte Olimpo, era o ponto focal da vida religiosa e política da região.

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Santuário de Zeus, em Dion.

Mas se não havia deuses vivendo de fato naquele lugar, por que os gregos continuaram a acreditar neles? Será que eles realmente esperavam encontrar Zeus lá em cima da montanha, lançando raios na Terra?

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A verdade é que, apesar de terem sim existido crenças genuínas nos deuses, para muitos gregos, essa crença não estava vinculada a evidências físicas ou presença literal. Eles adoravam os deuses e reverenciavam seus mitos de maneiras que não dependiam de “provas” de sua existência. Os mitos tinham um forte significado simbólico, forneciam orientação moral e ofereciam explicações tanto para o mundo natural quanto para o mundo social.

Os fatos não anulam a crença

Os gregos antigos tinham consciência de que seus mitos eram fantásticos em sua grande maioria. Bom, pelo menos alguns deles tinham. É o caso de Tucídides, um historiador grego do século V A.C. que escreveu a história da Guerra do Peloponeso, preservando a memória dos acontecimentos da guerra entre peloponésios e atenienses (desculpa te fazer ler esses nomes). Esse evento, que aconteceu durante seu tempo de vida em sua magnitude, segundo o próprio Tucídides, superava qualquer guerra até então ocorrida. Mas o interessante é que Tucídides rejeitava a ideia de envolver deuses em eventos históricos. Seu relato da Guerra do Peloponeso se concentrou em políticas humanas, estratégias militares e realidades geopolíticas. 

Em seu mundo histórico, dois caminhos se apresentam para a obtenção do conhecimento: o numinoso e o empírico. Pela via numinosa o conhecimento pode ser obtido pela interpelação dos recursos de natureza divina, como oráculos e profetas, ou através de uma relação particular com os deuses e o destino. Pela via empírica, o conhecimento é obtido pelos sinais empíricos, através da investigação e interpretação de indícios e provas. Este caminho, muito mais complexo e doloroso, é o caminho de Tucídides. Para ele, a interferência de deuses ou presságios divinos não tinham lugar na história séria.

Outros pensadores, como o filósofo Xenófanes, também criticaram abertamente os mitos. Xenófanes foi a primeira pessoa conhecida a utilizar a observação de fósseis como evidência para a teoria da história da Terra. Ele verificou a existência de fósseis de peixes e conchas em localidades distantes da costa marinha, chegando a conclusão de que tais locais, em outras épocas, estavam embaixo da água e foram fundo de mares. Xenófanes ainda tirou onda da representação antropomórfica dos deuses, apontando que “se os animais tivessem deuses, eles provavelmente os imaginariam em sua própria imagem”, assim como os etíopes viam seus deuses como negros e os trácios viam os seus como brancos. Suas críticas à religião, no entanto, não tinham como objetivo atacá-la, mas “dar ao divino uma pura e elevada ideia: o verdadeiro deus é único, com poder absoluto, clarividência perfeita, justiça infalível e que em pouco se assemelha aos deuses homéricos sempre a deambular pelo mundo sob o império das paixões. Ou seja: só existe um deus único, nada parecido com os homens, que é eterno, não-gerado, imóvel e puro.

Além destes, outros filósofos como Heráclito e Epicuro questionavam a natureza do divino ou rejeitavam explicações religiosas de imediato. Heráclito argumentava, por exemplo, que o universo era governado por uma ordem natural, não pelos caprichos dos deuses. Ainda assim, os mitos persistiram. Apesar dessas críticas filosóficas, a religião continuava sendo parte integrante da vida grega. Pessoas ainda adoravam os deuses, faziam sacrifícios e construíam templos, mesmo que nem todos tivessem crenças literais. Os rituais e mitos serviam mais do que apenas funções religiosas: eles também eram sobre comunidade, cultura e identidade. Ou seja, eles eram valorizados por razões que vão além da precisão dos fatos. O historiador romano Tito Lívio, por exemplo, começou sua história de Roma com o mito de Rômulo e Remo, reconhecendo que, embora a história pudesse não ser verdadeira, valia a pena preservá-la por seu significado cultural e moral. Lívio via que um dos seus deveres principais como um historiador da Roma primitiva era registrar fielmente as várias tradições e crenças, fossem elas verdadeiras ou falsas, e independente de se ele acreditava ou não nelas. É importante e um gesto legal reconhecer isso.

“Rômulo e Remo” (1615-1616), por Peter Paul Rubens

Crenças antigas x Entendimentos modernos

Uma maneira de compreender a crença da Grécia Antiga é imaginar a pureza da fé que poderia surgir em um mundo pré-moderno, onde todo fenômeno natural poderia ser interpretado como um sinal dos deuses. Viver em um mundo sem tecnologia moderna, onde os ciclos do dia e das estações ditavam sua sobrevivência, criaria um profundo senso de conexão com as forças divinas da natureza.

Talvez para entender ainda melhor isso, precisamos nos colocar neste mundo. Imagine você como uma pessoa solitária na Grécia antiga, cercada por paisagens selvagens, isolada, longe dos perigos da vida moderna (se é que você me entende). Numa situação assim, provavelmente não seria tão difícil ver algo de divino nas forças da natureza, certo? Como, por exemplo, o poder destrutivo das tempestades, a bênção de uma boa colheita ou o terror de um terremoto. Ok, hoje a gente pode sair para acampar e simular experiencias assim, mas já conhecemos boa parte do funcionamento da natureza e sabemos o motivo pelos quais certas coisas ocorrem, o que não é exatamente o caso das pessoas daquela época onde o mundo que eles viam era simplesmente o mundo como eles sempre o conheceram. Quando essas são todas as informações que você tem, como interpretar os acontecimentos naturais ao nosso redor?

A mitologia oferecia uma estrutura para entender o mundo e essas coisas que ocorriam. Os deuses eram vistos não apenas como uns caras distantes vivendo no topo de uma montanha e descendo de vez em quando atrás de mulheres casadas, mas como forças que poderiam impactar diretamente a vida cotidiana. Não interessa se Zeus mora de verdade ou não no Monte Olimpo, as pessoas acreditavam no poder dos deuses para influenciar eventos, recompensar a devoção ou punir seus erros. Como Harari sugere em seu livro “Sapiens: Uma breve história da humanidade”, boa parte de nossa evolução social se deve à nossa capacidade de criar ficções.

Para os povos antigos, a crença não era necessariamente sobre questionar se os deuses existiam ou onde viviam. Era sobre se envolver com o mundo como eles o conheciam, um mundo no qual os deuses estavam presentes em todos os aspectos da vida, do nascimento de uma criança à chegada da primavera. Esse tipo de crença não exigia prova ou interpretação literal. Era simples, honesto e vital.

Nos tempos modernos isso não é muito diferente. Muitas pessoas hoje aceitam teorias científicas como a evolução ou o Big Bang. Eu sou uma dessas pessoas. Mas a maioria de nós não estudou os registros fósseis em primeira mão ou conduziu experimentos para provar essas teorias. Confiamos nos especialistas e acreditamos na ciência com base no consenso e no que eles nos apresentam como evidência. Isso não é fé cega, longe de ser, mas sim uma forma de crença baseada na autoridade, assim como os gregos confiavam na autoridade da tradição mitológica para explicar seu mundo, nós confiamos na autoridade do método cientifico. Fez sentido?

A Natureza da Fé

No fim, a pergunta que levantei lá no início sobre se os gregos antigos “acreditavam” em seus mitos é menos sobre uma crença literal e mais sobre a natureza da fé, por assim dizer. Assim como a aceitação atual de fatos científicos, a crença nos deuses fazia parte da visão de mundo dos gregos, passada de geração em geração como uma forma de explicar esse mundo e seu lugar nele.

Os mitos, assim como a ciência, serviam a um propósito. Eles ajudavam as pessoas a entender o universo, guiavam valores morais e sociais e conectavam indivíduos à sua cultura. Os gregos não precisavam encontrar Zeus no Monte Olimpo para acreditar em seu poder, assim como não precisamos observar um buraco negro para acreditar em sua existência.

No final das contas, não devemos julgar crenças antigas com muita severidade ou assumir que superamos completamente as mitologias. Daqui a três mil anos, as gerações futuras podem olhar para trás, para nossas próprias crenças atuais, com a mesma curiosidade, imaginando como poderíamos ter tanta certeza sobre ideias que podem parecer, para elas, fantasias ou completamente equivocadas. Talvez deem risada da gente.

A crença, seja em deuses ou teorias científicas, é também parte do que nos torna humanos. É como aprendemos sobre os mistérios do universo, encontramos significado na vida e construímos as culturas que nos definem. Ou até mesmo a usamos como forca para seguir em frente em meio as difíceis situações do dia a dia. Os mitos antigos, como os da Grécia Antiga, podem parecer muito distantes do nosso mundo moderno, mas, de muitas maneiras, eles continuam a abordar as mesmas questões fundamentais que ainda fazemos hoje.

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Material de Referência

1 – Brasil Escola, Tucídides e a História da Guerra do Peloponeso

2 – Estudante de Filosofia, Xenófanes de Cólofon

3 – Wikipedia, Dion, Pieria

4 – HISTORIOGRAFIA GREGA: TUCÍDIDES E A GUERRA DO PELOPONESO, por Carla Gastaud

5 – Hesiod. The Homeric Hymns and Homerica with an English Translation, por Hugh G. Evelyn-White.

6 – LIVY, FOLKLORE, AND MAGIC: A REAPPRAISAL OF ROME’S FOUNDATIONAL MYTHOLOGY, por Jeremy Leonard Albrecht

7 – Brasil Escola, A origem mítica de Roma

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