Ensaios

O Lugar da Deficiência em Samurai de Olhos Azuis

O primeiro texto de 2024 na Olhe Novamente foi sobre “Samurai de Olhos Azuis”. Foi uma recomendação, na verdade. Essa série animada foi lançada pela Netflix no final do ano passado e, além de ter uma ótima história, Samurai de Olhos Azuis é muito, mas muito bonito!! Eu passaria horas só vendo o design artístico e as belas fotografias que essa animação tem. Recomendo demais! Mas hoje, um outro olhar que eu gostaria de colocar em evidência é a maneira como a série representa a deficiência, ou pessoas com algum tipo de limitação. Em Samurai de Olhos Azuis, esse retrato vem inicialmente através do personagem Ringo, que não possui as mãos e que tem grandes sonhos. Mas não é só ele que possui algum tipo de deficiência na história.

É legal perceber também como a série, por si só, sai quebrando estereótipos de diferentes tipos. Veja, sua personagem principal, Mizu, vive uma vida marginalizada devido à cor de seus olhos e sua origem. Além disso, em um meio extremamente masculinizado como é o meio Samurai, ela literalmente se veste como um homem para ir atrás do que quer. No primeiro texto sobre a série aqui no site tentei explorar mais esse lado. Hoje isso não é o ponto principal, mas é importante ressaltar em qual lugar a série se posiciona.

Até o momento em que escrevo esse texto, a série só possui uma temporada onde, apesar da deixa, ainda há muito a se explorar, especialmente em relação a Ringo, já que essa primeira parte focou bastante na personagem principal e em seu arco, o que faz total sentido. Então hoje eu quero trazer um olhar, não só para o Ringo, mas aprofundando também em outras representações que temos na série e qual o lugar disso na narrativa. Para isso, talvez seja melhor começar falando sobre a relação entre deficiência e as narrativas e representações que temos hoje na mídia.

Podemos olhar para a deficiência nos campos físicos e mentais. É uma condição que limita os movimentos, sentidos ou atividades consideradas normais de uma pessoa, e a sua representação é vista com certa frequência em filmes, na televisão e na literatura. A partir disso, algumas questões precisam ser consideradas sempre que essa condição é representada de alguma forma, especialmente quanto a função da deficiência nos personagens e como ela contribui para a narrativa da obra.

Ok, mas por que isso é importante?

O Retrato da Deficiência Dentro de Uma História

Bom, antes de mais nada, acho que é necessário entender que palavras podem ser fatais. A maneira como falamos ou descrevemos alguém pode mudar totalmente a maneira como essa pessoa é percebida e como ela percebe o mundo. Por isso é extremamente importante avaliarmos como as pessoas são representadas, especialmente na cultura pop, um meio que têm sido cada vez mais infestado de gente mal intencionada. A representação da deficiência em personagens influencia muito a visão da sociedade sobre os indivíduos com deficiência na nossa vida cotidiana. Portanto, se a gente tiver representações mais precisas e justas dentro daquilo que consumimos, o estigma em torno da deficiência pode ser reduzido.

E olha, talvez a gente não perceba isso logo de cara, mas a representação de experiências de deficiência, tanto física quanto mental, ocorrem na nossa cara o tempo todo. Lembra da Dory em “Procurando Nemo”? Muitas vezes, os enredos desses personagens giram em torno da resolução ou “conserto” de sua deficiência e, inevitavelmente, a deficiência acaba servindo como uma ferramenta para a narrativa, e não como uma forma muito mais complexa de estar e viver no mundo atual. A deficiência passa a exigir um contexto, ou seja, se um corpo não é normal, temos que saber como e por quê.

Por conta disso, a deficiência se transforma em uma metáfora, em algo que deve ser explicado, compreendido e, por fim, superado. Novamente: isso está na nossa cara. É aquela história: “Ele é cego por uma razão” ou “Isso é consequência de alguma ação no passado”. Somos constantemente ensinados de que a deficiência simboliza uma falha moral do herói/personagem. E essa representação pode muitas vezes agravar as experiências reais das pessoas que vivem com condições especiais.

Procurando Nemo (2003)

Mas para não dizer que eu não falei das flores, existem histórias com representações mais inclusivas. Por exemplo, em Como Treinar o Seu Dragão (2010), ainda que a deficiência do protagonista também funcione como um obstáculo que precisa ser superado de certa maneira, ela possui significados mais amplos e à parte. Soluço, o personagem principal adolescente de uma vila viking, é diferente dos outros moradores devido a sua fraqueza. O pai de Soluço o considera inelegível para ser um guerreiro e lutar contra os dragões, seus principais inimigos. Porém, esta deficiência torna-se uma fonte de sua empatia com um dragão que perde uma parte da cauda e é incapaz de voar. A empatia motiva Soluço a encontrar outra maneira de enfrentar os dragões – não cometendo violência, mas treinando-os para criar parceria e companheirismo. Soluço acaba se tornando também deficiente ao perder um dos pés, e isso o torna mais parecido ainda com seu amigo dragão. A deficiência aqui ajuda a definir a personalidade do personagem principal e estabelece laços de amizade e empatia entre os dois, abrindo caminho para Soluço descobrir um novo relacionamento não só com o dragão Banguela, mas com todos os dragões.

Como Treinar o Seu Dragão (2010)

Dito isso, como podemos enxergar a relação entre narrativa e deficiência em Samurai de Olhos Azuis? Bom, acho que para isso o caminho mais legal seja por meio de um olhar para seus personagens. A série conta com 4 destacáveis.

Ringo

Ringo é o personagem que mais chama a atenção em relação à deficiência na narrativa. Ele é simpático, sempre alegre e muito gentil. Porém, ele sofre de uma notável ansiedade em fazer as coisas e fala sem parar, o que pode ser bem irritante às vezes. Ringo tem deficiência física – ele não tem ambas as mãos. Mas ele não vê isso como um impedimento. É a sua engenhosidade e alta energia que lhe dão o impulso necessário para sobreviver e ir atrás do que acredita. Talvez seja isso o que fez Mizu o aceitar como aprendiz.

Ainda que a princípio Mizu não demonstre muito interesse em Ringo, ele é aceito por ela muito também porque Mizu o trata como uma pessoa normal e não como uma pessoa com deficiência. E não é que isso seja ignorado na série, acredito que a personagem enxerga suas limitações, mas ela não transforma isso em um bloqueio e nem em algo que precisa ser consertado. Essa personalidade de Mizu em relação a Ringo é preciosíssima e a relação entre eles é, além de engraçada, muito bonita, com Ringo inclusive a tirando de situações mortais. Embora o jovem aprendiz queira aprender com as habilidades extraordinárias de Mizu, acredito que sua jornada e seu sentimento de intimidade com a personagem principal será seu principal prêmio, uma vez que ele aprenderá verdadeiramente sobre a amizade, a confiança e a lealdade.

Sua história também traz reflexões sobre o preconceito e a marginalização de pessoas com deficiência. Ringo nasceu sem mãos, uma deficiência que poderia ter resultado em sua morte ainda criança devido ao estigma de azar no folclore japonês. Ele cresceu ajudando o pai em seu restaurante, pai este que batia nele por fazer muitas perguntas e constantemente o repreendia na frente dos clientes quando tentava ensinar alguma coisa a Ringo.

Apesar de sua educação dura e das limitações impostas pela falta de mãos, Ringo tornou-se um jovem forte e esperto. Ele adaptou próteses nas pontas dos braços, usando-as para aprender sozinho a realizar uma variedade de tarefas, incluindo (mas não se limitando a) costurar, cozinhar e escrever com pincel. Seu sonho era aprender a se tornar um samurai, mas sua falta de mãos (e, consequentemente, de habilidade suficiente com a espada) tornava isso virtualmente impossível, e as pessoas riam quando ele expressava esse desejo. Ringo, no entanto, se recusou a deixar que isso o desanimasse, e se concentrou em outros caminhos dentro das quatro classes sociais (Samurai, Agricultor, Artesão ou Comerciante), não se importando com o que ele seria capaz de se tornar, desde que fosse ótimo nisso.

Kinuyo

Kinuyo é uma jovem que nasceu surda e muda. Como resultado disso, seu pai foi incrivelmente abusivo com ela e ela acabou sendo vendida para o bordel de Madame Kaji depois que ele ficou exausto de espancá-la. Madame Kaji fez isso não porque Kinuyo seria uma boa aquisição ao seu negócio, mas porque sentia pena da garota por não ter outras opções, se tornando um divisor de águas na vida Kinuyo e a ensinando a linguagem de sinais. Isso acabou as aproximando muito. Kinuyo, apesar de trabalhar num bordel, desejava nunca mais ser tocada por um homem. Madame Kaji respeitou esse desejo, prometendo que ela nunca mais seria abusada, limitando-a apenas a servir e às hospitalidades básicas no bordel.

O destino de Kinuyo, no entanto, é trágico, já que o magnata e senhor da cidade, Hamata, tomou conhecimento da garota e exigiu-a como forma de punir e demonstrar poder contra Madame Kaji, que não pôde fazer nada devido ao poder e influência de Hamata. Sua história encontra um desfecho quando Mizu oferece seus serviços de assassina a Madame Kaji em troca de informações, argumentando que a cortesã pode ter inimigos que ela gostaria de remover. Quando Kaji conta sua história com Kinuyo, Mizu presume que ela deseja que Hamata morra para que Kinuyo possa ser liberta. No entanto, os planos da Madame são outros, pois Hamata e seu exército da yakuza, cientes do amor de Kaji por Kinuyo, saberia que ela estava por trás disso e queimaria seu bordel, além de matar todas as outras prostitutas em retaliação. Madame Kaji então deseja que Mizu mate Kinuyo e faça com que pareça um acidente, vendo isso como a única maneira de libertar a garota de sua existência atormentada. Mizu concorda, e Kaji diz a ela para fazer o sinal “Eu te amo” para Kinuyo antes de matá-la, pois a jovem reconheceria a mensagem e isso acalmaria sua mente.

Coube a Mizu executar e dar fim ao sofrimento de Kinuyo, em um dos arcos mais tristes da série.

A história de Kinuyo ressoa em um ponto importante em relação a pessoas com deficiência: o abuso de sua condição. Quer um exemplo? A Hotline é uma organização que combate a violência doméstica, promovendo ferramentas e suporte para pessoas nesse tipo de situação. Seus estudos mostram que pessoas com deficiência têm maior probabilidade de sofrer abusos do que pessoas sem deficiência. O abuso tem como premissa o poder e o controle, e as pessoas com deficiência enfrentam frequentemente barreiras específicas no acesso à ajuda, o que as tornam mais vulneráveis ainda. A deficiência abrange uma gama muito grande de identidades e comunidades, e as formas como elas se cruzam com a violência doméstica podem aparecer em diferentes maneiras. A história de Kinuyo e sua relação com Madame Kaji, apesar de trágica, pode abrir os olhos e gerar conscientização a respeito do tratamento doméstico em relação a pessoas com diferentes limitações, sejam físicas ou mentais.

Kinuyo é uma personagem que foi completamente destituída de seu livre arbítrio, tendo suas escolhas feitas por outras pessoas. Seu pai abusivo a deixou com medo de não ser compreendida. Madame Kaji tentou protegê-la das maldades do mundo, mas Kinuyo também não escolheu morrer. Existe uma reflexão muito forte nesse arco.

Mestre Eiji

Mestre Eiji passou toda a sua vida como fabricante de espadas em uma cabana não muito longe de Kohama, onde Mizu cresceu. Em algum momento de sua vida ele ficou permanentemente cego devido a um acidente com fogo. Não se sabe muito sobre sua infância. Mais tarde em sua vida, ele aceitou Mizu como seu aprendiz. Ele a cria como se fosse sua filha, fazendo dela seus olhos. Apesar de sua deficiência, ele é conhecido como um lendário fabricante de espadas, devido à qualidade de seu trabalho.

Quando pensamos em pessoas com deficiência na visão, um estereótipo que é como de ser apresentado é o do cego com percepção sensorial superdesenvolvida. Ou seja, muitas obras estão repletas de personagens com sentidos auditivos e de olfato extraordinários. Um bom exemplo disso está em Demolidor, onde a audição do personagem principal é extraordinariamente desenvolvida. Existem representações também em outros filmes, como em Perfume de Mulher (1992), com o personagem do Al Pacino apresentado a mesma característica.

Em Demolidor, a cegueira é “compensada” com uma super audição.

Isso não é uma crítica às outras obras – não me entenda mal. Sou fã do Demolidor! Mas são escolhas narrativas e é importante enxergarmos como determinadas representações ressoam na sociedade.

Voltando ao Mestre Eiji, é interessante antes de mais nada observar que ele é, apesar de sua limitação, capaz de levar uma vida comparável à das pessoas que enxergam. É claro que existe uma liberdade criativa em torno de qualquer ficção, mas existe um cuidado ao redor da representação desse personagem em Samurai de Olhos Azuis. Além disso, as pessoas com deficiência ainda são vistas como um fardo para as suas famílias, sempre necessitando dos cuidados ou supervisão de uma pessoa com visão. Na série, Mestre Eiji nunca deixa seu trabalho de lado mesmo com sua limitação e ainda por cima aceita tomar conta de Mizu e criá-la com dignidade.

Mestre Eiji e a jovem Mizu

De uma maneira geral, em representações desse tipo a ênfase é geralmente colocada na deficiência em si, e não na personalidade geral da pessoa com deficiência visual. Da mesma forma, é raro encontrar personagens cegos representados como pessoas que fazem tarefas domésticas, fazem compras ou viajam. Ou seja, capazes de lidar com coisas cotidianas que são comuns a todas as pessoas. A representação dessas pessoas na figura de Mestre Eiji, ainda que tenha espaço para melhorar, é honesta e refrescante dentro do que se propõe.

Takayoshi

Takayoshi é o segundo filho do Shogun Ito e se casou com a bela Akemi. No entanto, ele possui algo com o qual precisa lidar: Takayoshi é gago e sua mãe o proíbe de falar com mulheres para evitar ser ridicularizado. Seu profundo silêncio, combinado com sua habilidade letal em kyudo (tiro com arco) e a morte de sua primeira esposa após um casamento infeliz, levou a rumores na corte de que ele é um tirano frio, indiferente e abusivo. O que também é resultado do fato de sua mãe ter dado linha em qualquer mulher que fosse ‘incompatível’ com ele, a fim de manter a imagem familiar de perfeita dignidade. Em particular, ele não é severo, mas é bem tímido e de natureza gentil. Takayoshi é simplesmente inibido por uma leve gagueira, que desaparece quando está perto de pessoas que lhe permitem relaxar (ou quando recita poesia).

Particularmente eu achei incrível a forma como esse personagem é desenvolvido na série. Infelizmente ainda existem muitas opiniões negativas e estereotipadas em relação à gaguez e às pessoas que gaguejam – percepções que não são fundamentadas na realidade. Alguns estudos traçam o perfil de pessoas gagas como inseguras, tímidas, introvertidas, nervosas e com medo. Todas essas características estão em Takayoshi de uma certa maneira. Ainda assim, a série ensina muito através desse personagem.

Apesar dos esforços de sua detestável mãe, Takayoshi possui um coração bom e seu caminho se entrelaça com o caminho da personagem Akemi. Essa, por sua vez, possui uma personalidade muito mais firme e forte naquilo que quer, mas inicialmente não compreende a personalidade fria de Takayoshi. Após um episódio bem delicado e triste envolvendo pássaros, Akemi o confronta furiosamente em particular, presumindo que ele a estava provocando. Isso faz com que Takayoshi finalmente crie coragem para se explicar, revelando pela primeira vez que é gago e provando que seu gesto de desculpas era genuíno. Akemi o compreende, e explica que não ele precisa ter vergonha de sua gagueira perto dela, nem apressar sua fala – ela o comparou a um tutor de infância dela com gagueira semelhante, por quem ela tinha uma queda. O resultado dessa interação e da posterior consumação de seu casamento com Akemi, faz com que Takayoshi desenvolva um relacionamento mais caloroso com sua esposa e comece a falar em voz alta com mais frequência, sem vergonha de quem é. É uma bela lição de inclusão e respeito.

Olhe Novamente para as Metáforas

A linguagem é importante e a forma como representamos grupos, especialmente aqueles em minorias, é tão importante quanto. É muito comum vermos a deficiência como metáfora nas histórias, retratando-a como algo a ser superado ou “corrigido”, mas também com a sugestão errada de que a experiência humana de verdade é baseada em um corpo ou mente reconhecidamente “normal”. Às vezes isso passa despercebido, pois, quem não é afetado pelo que está na tela ou nas páginas do que lê, raramente entende como aquilo pode ressoar de diferentes maneiras. Digo isso, pois eu mesmo me esforço para sempre tentar entender como determinadas representações podem nos impactar no mundo real, apesar de falhar nisso muitas vezes.

Samurai de Olhos Azuis não é perfeita, mas trata o tema com bastante cuidado, honestidade e variedade – nesse texto apresentei 4 personagens com deficiências e contextos diferentes, que mostram claramente como as limitações afetam os personagens e suas perspectivas. A série também não retrata a deficiência como traços indesejáveis ​​ou infantilizando os personagens com elas. É importante valorizarmos narrativas assim sempre que possível – aquelas que não veem as limitações físicas ou mentais de alguém apenas como um artifício para o enredo. Dessa forma, podemos enxergar e aplicar novas alternativas de incorporação, ampliando a representatividade de diferentes classes e gêneros. Não dá e nem vamos nunca conseguir viver sem metáforas, mas podemos dar mais atenção em quais estamos escolhemos e como elas moldam o nosso mundo e as pessoas ao nosso redor, especialmente os diretamente afetados.

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Material de Referência

1 – Olhe Novamente, “Samurai de Olhos Azuis: A excelente surpresa de 2023!” (https://olhenovamente.com.br/samurai-de-olhos-azuis/)

2 – Journal of Medical Evidence, “Influence of Cinema on Public Perception of Disability”

3 – The Hotline, “Abuse in Disability Communities” (https://www.thehotline.org/resources/abuse-in-disability-communities/)

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