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Como nos tornamos pessoas melhores?

Olha, eu não sou muito ligado à fé nem à muitas questões relacionadas à isso, mas eu tenho comigo que um dos nossos objetivos nessa nossa curta passagem pela “existência” seja ser uma pessoa boa. É claro que ser bom ou mal é uma questão relativa às vezes, mas eu entendo que ser uma boa pessoa requer consistentemente tomar as escolhas certas e fazer as coisas certas, mesmo quando é difícil ou inconveniente. Envolve às vezes colocar as necessidades dos outros antes das suas, ser honesto, respeitoso e assumir a responsabilidade por suas ações.

Porém (porque tudo tem um porém), é bastante desafiador ser uma “boa pessoa” porque somos todos humanos e estamos propensos a cometer erros. O que é normal. A gente lida todo dia com nossas próprias falhas, preconceitos e emoções, e isso dificulta agir sempre de forma alinhada com nossos valores. Além disso, estamos sempre enfrentando pressões da sociedade, dos amigos, da família e de outros fatores externos que também nos dificultam de tomar sempre a melhor atitude. E temos também aquele famoso fantasminha que às vezes vem nos assombrar: O nosso passado.

Nossas vivências passadas e a nossa educação tem um impacto significativo nesse processo de nos tornarmos alguém melhor. A forma como fomos criados, as pessoas com quem interagimos e as experiências pelas quais passamos moldam nossas crenças, nossos valores e comportamentos. Por exemplo, se crescemos em uma família onde a desonestidade é aceita ou encorajada, vamos ter dificuldade em sermos verdadeiros quando adultos. Da mesma forma, se fomos criados em um ambiente onde a agressão e a violência são comuns, vai ser difícil controlarmos nossos próprios impulsos e reagir de maneira não violenta.

Não sei se estou sendo muito claro, mas, enfim, esse passado também afeta bastante nossa autoestima e saúde mental, o que, por sua vez, pode influenciar nossa capacidade de ser uma boa pessoa. Traumas, abusos, negligências… tudo isso acaba dificultando essa trajetória, bem como nossas conexões. É foda.

Apesar de tudo isso, eu boto muita fé na possibilidade de mudança. Mesmo com os desafios, é possível superar os efeitos negativos do nosso passado e se tornar alguém melhor, mas pode ser bem complicado se isso não for feito de maneira saudável. Aliás, nem sempre a gente supera certos traumas lá de trás. Algumas coisas são um processo, e acho que BoJack Horseman ilustra isso de uma maneira bem legal.

Eu já vinha pensando no que escrever sobre essa série que, para mim, é uma das melhores já produzidas pela Netflix. Mas acho que olhar pelo ponto de vista de como o BoJack foi se transformando ao longo do show dá um texto legal e, quem sabe, bonito também.

Como BoJack lida com o passado?

“Quando eu era criança, costumava ver você na TV, e você sabe que não tive a melhor família. As coisas não estavam tão boas para mim. Mas, por meia hora, toda semana, eu conseguia assistir a esse programa sobre quatro pessoas que não tinham ninguém, que se juntavam e se tornavam uma família, e por meia hora, toda semana, eu tinha um lar, e isso me ajudava a sobreviver.”

Antes de qualquer coisa, eu super concordo que o BoJack definitivamente não é uma boa pessoa. Mas seu seriado nos traz muitos, mas muitos aprendizados. Bom, vamos primeiro de contexto né?

BoJack Horseman é uma série animada da Netflix que segue a vida de seu personagem de igual nome, BoJack Horseman, um ex-ator narcisista, rico e que estrelou uma sitcom dos anos 90. Nesse “universo” onde a série se passa, coexistem animais antropomórficos e humanos, e o seriado usa humor e sátira para abordar questões sérias, incluindo doenças mentais, indústria do entretenimento, temas sociais e, principalmente, as complexidades das relações humanas. Ao longo da série, Bojack luta contra o vício, a depressão e seu comportamento autodestrutivo. A série também explora as consequências de suas ações passadas e a possibilidade de redenção.

O passado de BoJack é uma parte significativa da narrativa, é fundamental para a construção do personagem e ajuda a explicar um pouco seu comportamento e dilemas atuais.

BoJack cresceu em uma família disfuncional com pais emocionalmente distantes e uma mãe negligente. Sua mãe em especial, Beatrice, era emocionalmente abusiva e frequentemente criticava Bojack, o que contribuía para sua baixa autoestima.

Quando ainda era mais jovem, BoJack se mudou para Hollywood para seguir sua carreira de ator e acabou conseguindo o papel principal em uma sitcom dos anos 90 chamada “Horsin ‘Around“. O show foi um sucesso e rendeu fama e uma fortuna para BoJack, permitindo a vida que ele leva hoje em dia. Mas esse sucesso foi aos poucos se esvaziando e BoJack foi ficando cada vez mais isolado e infeliz. O que acompanhamos então é um BoJack que lida com seu passado de uma maneira muito complexa e destrutiva, causando danos não somente a si mesmo, mas a todos ao seu redor. Tudo isso ao mesmo tempo em que ele tenta reviver a relevância que um dia teve como um sucedido ator. E talvez essa busca vazia justifique uma das principais características de BoJack, que é a de sistematicamente achar que a vida ocorre da mesma forma como em uma sitcom.

Acho que deu para desenhar um pouco quem é o BoJack e como sua personalidade foi construída, mas é importante ressaltar que o BoJack do presente não é um pobre coitado devido à isso e, muito menos, uma boa pessoa. BoJack é na real um tremendo de um filha da puta.

O ex ator busca constantemente a validação de outras pessoas, esperando que isso preencha o vazio deixado por seus pais distantes e emocionalmente abusivos. O problema é que isso, na maioria das vezes, o leva a se envolver em um comportamento manipulador e egoísta (tipo sabotar a ópera de rock de seu amigo Todd para se vingar dele por não ter ficado impressionado com a casa de sua infância). Isso além do uso de álcool, drogas e sexo vazio, acreditando que isso o ajudará a esquecer suas dores e traumas. E essas ações, obviamente, tem consequências negativas, tanto para ele quanto para as pessoas ao seu redor. Por exemplo, seu comportamento egocêntrico e inconsequente contribui para a deterioração de seu relacionamento com Diane e também acaba levando à morte de Sarah Lynn, ex companheira de cena no passado.

Além disso, Bojack também tenta procurar sua mãe e tentar se reconciliar com ela. No entanto, isso acaba trazendo mais dor para ele, pois BoJack percebe que sua mãe nunca será capaz de lhe dar o amor e o apoio que ele tanto deseja.

Essas tentativas de lidar com seu passado muitas vezes só o levam a se comportar mal e a fazer péssimas escolhas, além de fomentar o ódio que BoJack sente de si mesmo. Ainda que eu entenda os motivos que o levam a usar certos mecanismos, fica claro que a longo prazo nada disso funciona já que ele parece não enxergar que a mudança precisa começar nele mesmo.

A síndrome de impostor e a busca desenfreada por validação

“Resolva. Porque senão você vai ficar mais velho e mais duro, e mais sozinho. E você vai fazer tudo que puder para preencher esse buraco, com amigos, sua carreira e sexo sem sentido, mas o buraco não é preenchido. Um dia, você vai olhar em volta e perceber que todo mundo te ama, mas ninguém gosta de você. E esse é o sentimento mais solitário do mundo.”

Eu sinceramente acredito que o processo de melhorar como pessoa passa muito pela autenticidade. E não só no sentido de “ser quem você é e fodas“, mas no sentido de entender quem você é e buscar melhorar a partir disso, sem falsas imagens. É incrível como BoJack falha miseravelmente nesse sentido.

Fingir ser quem não é passa por problemas de aceitação, autoestima, medo de rejeição e por aí vai. Hoje isso está bastante agravado com as redes sociais e eu falei um pouquinho disso nesse texto aqui. Mas vamos voltar ao assunto principal.

BoJack não é alguém que necessariamente finge ser outra pessoa. Ele, na verdade, foge de quem ele é, ignorando seus defeitos, traumas e complexidades e agindo de maneira inconsequente. E o fato de ele ser muito rico impulsiona ainda mais isso, pois suas atitudes muitas vezes não têm consequências para ele.

Essa falsa identidade esta fortemente ligada a seu desejo constante de ser validado como alguém relevante. Financeiramente, ele é essa pessoa: vive em Hollywood, tem tudo do bom e do melhor. A fama e a fortuna de Bojack estão intimamente ligadas à sua busca por validação. Ele usa seu status de ator famoso para ter acesso a eventos e pessoas importantes e ser visto como alguém influente. No entanto, o que ocorre é que ele está sendo constantemente exposto na mídia, e isso é bastante desgastante para sua saúde mental.

Ver BoJack lidando com tudo isso é muito desconfortante.

“Me diz que sou bom”

Talvez o maior impacto disso esteja nas relações que ele tenta construir. BoJack anseia por amor e conexão, e muitas vezes luta para formar conexões significativas com as pessoas. Mas essa luta por aprovação casada com seu comportamento egoísta e narcisista, muitas vezes afasta as pessoas e o deixa ainda mais isolado e sozinho.

Esse ciclo de reprimir emoções negativas, envolver-se em comportamentos destrutivos e sentir-se ainda pior é um padrão comum na vida de BoJack. É somente quando ele começa a confrontar seus problemas subjacentes e trabalhar com suas emoções que ele é capaz de fazer um progresso significativo em direção ao crescimento pessoal.

Reconhecer e dar os primeiros passos

“Vou dizer: Olá. Eu sou BoJack Horseman. Obviamente, você sabe quem eu sou, porque sou muito famoso e também porque ligamos antes. E estou aqui porque preciso de ajuda.”

Existem tantas coisas e tantas discussões que eu gostaria de ter sobre BoJack Horseman que dariam incontáveis textos. Mas essa caminhada de um certo autoconhecimento que o personagem teve durante sua trajetória sempre me pegou mais forte. E não é a forma como terminou, porque BoJack não necessariamente termina a série como alguém construído, mas, sim, como alguém em construção. Acredito que assim seja nosso processo na vida: vamos nos descobrindo e nos construindo… até não dar mais. Porque mesmo quando achamos que chegamos no pico de nossa virtude e de nossa felicidade, a vida continua, e com ela, vem novos desafios. E isso é algo que o próprio BoJack já tinha entendido.

Na reta final dessa maravilhosa série, a gente vê o BoJack finalmente começar a confrontar seus demônios e trabalhar para se tornar uma pessoa melhor. E não é um processo fácil, mas ele toma decisões-chave para qualquer mudança, sendo a principal: BoJack reconhece o dano que causou.

Ele finalmente começa a assumir a responsabilidade por suas ações passadas e pelo que causou às pessoas em sua vida. Ele se desculpa com sua melhor amiga, Diane, por sua briga e reconhece o impacto negativo que teve na vida dela. E em um dos momentos mais bonitos da série inteira, eles têm uma conversa sincera onde expressam seus sentimentos um pelo outro. BoJack também faz as pazes com sua ex-namorada, a Princess Carolyn, e reconhece que não pode desfazer o passado, mas pode se esforçar para ser melhor no futuro. Além de também buscar ajuda e apoio profissional. Não é um processo tranquilo, seu passado cobra o preço e até a cadeia o BoJack chega a encarar.

O show em si ensina muito sobre crescimento pessoal, aceitação e possibilidade de mudança. Embora os personagens tenham enfrentado sua parcela de lutas e dores, a série valoriza bastante a importância do perdão, da responsabilidade e de encontrar esperança para seguir em frente.

Vai ficando mais fácil

Todo o arco evolutivo do BoJack meio que sintetiza algumas lições atemporais que refletem nossa busca de crescimento pessoal e mudança positiva. E para tal, é necessário abraçar o poder da consistência, confiando no processo, perseverando nos desafios e praticando a autodisciplina, liberando nosso potencial para transformar a nós mesmos e nossas vidas. Cada dia oferece uma oportunidade de crescimento e, com o esforço diário, podemos gradualmente alcançar nossas aspirações e encontrar satisfação ao longo do caminho.

Vai ficando mais fácil. 🙂

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