‘Como Eu Era Antes de Você’ Pelo Olhar de bell hooks: Amor Não É Sacrifício
No dia chuvoso e cinzento na Inglaterra que dá início a Como Eu Era Antes de Você, Louisa Clark entra na vida de Will Traynor com o brilho nos olhos de quem ainda não aprendeu o peso completo do amor. Ela viveu uma vida pequena e cuidadosa sob os céus nublados de uma vila sonolenta, abrigada na monotonia segura de cafés e castelos, sem saber até onde o mundo poderia alcançar. Em contraste, o mundo de Will já havia desmoronado. Um homem que antes vivia em busca de horizontes distantes, agora tem sua vida medida por distâncias que não pode mais percorrer, por dias passados dentro de casa. O encontro dos dois — desajeitado, doloroso, inesperado — acende algo estranho e desafiador. E assim começa uma história que, embora careça de magia no sentido tradicional, se move com o ritmo lento e encantado de algo transformador. Uma mulher com um guarda-roupa listrado como uma abelha e um homem preso a uma cadeira começam a redefinir os limites do possível, da dor e do amor, não através de feitiços, mas da estranha alquimia da conexão humana.

Como Eu Era Antes de Você é um filme de drama romântico de 2016 dirigido por Thea Sharrock em sua estreia como diretora e adaptado pela autora Jojo Moyes de seu romance de 2012 com o mesmo nome. Um filme que ensina muito sobre o amor. Hoje faremos um exercicio de tentar enxergar isso pelo olhar de bell hooks. Para quem nao sabe quem é, bell hooks (nascida Gloria Jean Watkins) foi uma autora afro-americana, feminista e ativista social. Sua escrita focava na interconectividade entre raça, classe e gênero e em como esses fatores têm a capacidade de produzir e perpetuar sistemas de opressão e dominação.

Mas ela também falava de amor. Em seu livro Tudo Sobre o Amor, bell hooks fala do amor como algo completo, difícil e profundamente sério — não apenas um sentimento, mas um ato de vontade. Ela nos convida a repensar o amor não como um acidente no qual caímos, mas como uma prática, uma escolha, um compromisso diário. hooks desmonta as divisões tradicionais que tanto prezamos: a diferença entre amar e cuidar, entre sentir e agir, entre o que acreditamos ser real e o que é verdadeiramente significativo.
“Começar sempre pensando no amor como uma ação, e não como um sentimento, é uma forma de quem usa essa palavra automaticamente assumir responsabilidade e comprometimento. Muitas vezes somos ensinados que não temos controle sobre nossos “sentimentos”. No entanto, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações, que a intenção e a vontade influenciam o que fazemos. Também aceitamos que nossas ações têm consequências. Pensar que ações moldam sentimentos é uma forma de nos livrarmos de suposições tradicionalmente aceitas, como a de que pais amam seus filhos automaticamente, ou que alguém simplesmente “se apaixona” sem exercer vontade ou escolha, ou ainda que existem coisas como “crimes passionais”, ou seja, ele a matou porque a amava demais. Se lembrássemos constantemente que o amor é o que o amor faz, não usaríamos essa palavra de maneira que desvaloriza e degrada seu significado.”
Em Como Eu Era Antes de Você, esse mesmo desmonte se torna visível, não através do realismo mágico, mas por meio da verdade emocional. Will e Lou vivem em um mundo regido pelas leis da medicina e da mortalidade, mas o que ocorre entre eles é algo mais difícil de explicar: a sensação de que o amor, mesmo condenado, pode ser libertador, que o cuidado pode ser transformador, que o luto, também, é uma forma de amar.
Veja, Lou começa o filme com medo da própria vida. Seu mundo é feito de ruas estreitas e expectativas ainda mais estreitas. Mas o amor, como nos diz hooks, exige crescimento: e Lou cresce. Através de Will, ela é desafiada a expandir os limites do seu conforto, a pensar além da vila que sempre conheceu. E, por meio de Lou, Will se lembra da ternura, da alegria que ainda permanece em estar vivo. Mas talvez hooks nos diria também que o amor não conserta tudo. O amor verdadeiro não nega a dor, pois ele preza pela honestidade. A decisão de Will de encerrar sua vida parte de um lugar de auto percepção de completude, de agência. Seu amor por Lou não muda sua escolha, e o amor de Lou por ele não é suficiente para mantê-lo vivo. Isso não é um fracasso do amor, mas uma constatacao de que ele possui seus limites. hooks escreve: “Amor e abuso não podem coexistir”. Ela talvez também dissesse que amor e apagamento — de si, da verdade, da autonomia – também não podem.
“Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o crescimento espiritual próprio e do outro, fica claro que não podemos afirmar que amamos se somos prejudiciais e abusivos. Amor e abuso não podem coexistir. Abuso e negligência são, por definição, o oposto de cuidado e zelo… Uma esmagadora maioria de nós vem de famílias disfuncionais, nas quais fomos ensinados que não éramos bons o suficiente, onde fomos envergonhados, abusados verbal e/ou fisicamente, e negligenciados emocionalmente — mesmo enquanto também éramos ensinados a acreditar que éramos amados. Para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar uma definição de amor que nos impediria de enxergar o amor como algo presente em nossas famílias. Muitos de nós precisam se agarrar a uma noção de amor que torne o abuso aceitável ou, ao menos, faça com que tudo o que aconteceu pareça não ter sido tão grave assim.”
Como Eu Era Antes de Você borra a linha entre o romântico e o trágico. Uma história de amor onde os amantes não terminam juntos? Parace contradição mas não é, é um reconhecimento da complexidade do amor. A relação deles se torna um espaço de transformação, não de salvação. Lou é transformada não porque Will a “salva”, mas porque ela se permite amar por completo e, por consequencia, sofrer por completo. Assim como hooks dizia, o luto não é o oposto do amor, mas sua continuação, e Lou carrega Will com ela para o mundo que ele implorou para que ela conhecesse.

Podemos chamar Como Eu Era Antes de Você de uma espécie de realismo emocional, onde nada abertamente mágico acontece, mas tudo parece levemente tocado pelo místico de alguma forma. Este filme trata o amor e sua capacidade de reorganizar quem somos, como algo absolutamente real. O amor, neste filme, não é algo que se conquista: é algo que se suporta, que se pratica – que se sobrevive.
Como Eu Era Antes de Você não oferece respostas fáceis. Nem se explica. Não suaviza a dor do luto nem ivalida a complexidade moral da decisão de Will. E ainda assim, insiste que até o amor que termina pode importar. Que mesmo o amor que não salva pode curar. Que, como diria hooks, o amor é “a vontade de nutrir o crescimento espiritual próprio e do outro”. E esse tipo de amor, o mais difícil eu diria, é o que torna essa história ao mesmo tempo devastadora e milagrosa.
Porque se apaixonar, especialmente do tipo que te transforma, te rompe, te muda, é algo que parece tão estranho e impossível quanto acordar sem memórias ou conversar com uma voz consciente no seu computador. Só que, em vez de alterar as regras do universo, altera você. Nada menos mágico por causa da realidade. Nada menos real por causa da magia.

“O amor é a vontade de estender a si mesmo com o propósito de nutrir o próprio ou o crescimento espiritual de outro… O amor é um ato de vontade — ou seja, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Não precisamos amar. Escolhemos amar.”
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