Ensaios

Por Que os Super-Heróis Não Mudam o Mundo?

“O progresso nunca é permanente, estará sempre ameaçado, deve ser redobrado, reafirmado e reimaginado se quiser sobreviver”.

Zadie Smith escreveu isso em seu texto incrível sobre otimismo e desânimo — o qual eu recomendo demais a leitura. Gosto dessa frase, pois ela sintetiza uma ideia que parecemos esquecer às vezes: progresso é algo contínuo. Assim como as mudanças, sejam elas substanciais ou não. E essa é uma linha de raciocínio importante para o que quero escrever hoje sobre os super-heróis, o que talvez será mais mexer em um vespeiro, mas é uma discussão que eu gostaria de colocar aqui na Olhe Novamente, até porque um dos objetivos deste site é trazer outros pontos de vista e diferentes perspectivas sobre a arte em suas mais variadas formas.

Heróis e histórias em quadrinhos também são arte. Eu gosto, tenho coleções e reconheço o fator inspirador que essas histórias trazem. Um certo conforto e acolhimento, algo que, de verdade, pode melhorar muito o seu dia. O texto de hoje, no entanto, parte de uma pergunta: Super-heróis salvam o mundo, mas por que eles não mudam o mundo?

Poder Individual e a Ilusão da Mudança Estrutural

Existe um contraponto nessa coisa de herói, da forma como o conhecemos hoje. É que eles habitam um mundo onde suas habilidades extraordinárias poderiam catalisar um progresso radical. Tipo assim, estamos falando se seres que voam, soltam raios pelos olhos e muitas vezes mudam o estado da matéria. No entanto, a própria natureza de sua existência parece presa a ciclos de vitórias temporárias. Bom, uma das coisas que sustentam esse contraponto é que super-heróis operam dentro das estruturas de suas sociedades imperfeitas, mas raramente desafiam os sistemas que perpetuam a injustiça e sustentam essas estruturas. Não existe uma utopia universal pela qual eles lutem — cada “dia salvo” apenas restaura um status quo construído sobre compromissos nunca ditos.

Hannah Arendt explorou algo nesse sentido em suas reflexões sobre poder e mudança. Para Arendt, o poder é inerentemente coletivo e depende da colaboração e do consenso entre as pessoas. Ele surge e se sustenta quando indivíduos se unem em ação comum, partilhando um objetivo ou propósito. O poder, sendo assim, não é uma propriedade individual, mas um fenômeno do grupo, e desaparece se o grupo se desintegra. Isso contrasta com as visões tradicionais que frequentemente associam poder ao domínio, à força ou à autoridade individual.

“O poder corresponde à capacidade humana não apenas de agir, mas de agir em conjunto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; ele pertence a um grupo e permanece existindo apenas enquanto o grupo se mantém unido.”

A figura do super-herói, assim como a de atores políticos, costuma contradizer essa ideia de poder coletivo. Veja, nas histórias, os super-heróis são retratados como salvadores isolados, com habilidades únicas que os colocam acima das demais pessoas. Apesar de muitas vezes lutarem contra vilões e ameaças, esses heróis acabam reforçando a ideia de que mudanças ou soluções dependem de indivíduos extraordinários, e não de ações conjuntas ou transformações estruturais. Isso sustenta as mesmas hierarquias de poder que os heróis poderiam, em tese, combater e reforça uma visão limitada de mudança social.

O Mito do Individualismo e a Vilania dos Sistemas

Em sua busca para derrotar supervilões, os super-heróis acabam muitas vezes ignorando uma verdade cotidiana: a vilania dos sistemas. Heróis podem impedir uma invasão alienígena, acabar com uma corporação corrupta ou impedir que uma inteligência artificial crie uma rebelião global, mas esses costumam ser eventos singulares, que muitas vezes deixam intacta a máquina social, política e econômica, que é o que normalmente gera todas essas crises que eles combatem. Uma cidade inteira é salva da destruição, mas, no fim do dia, as desigualdades, preconceitos e injustiças dessa cidade permanecem inalteradas.

É interessante ver como esse dilema é trabalhado dentro de algumas histórias do universo dos quadrinhos. Em Watchmen, Alan Moore e Dave Gibbons exploram as contradições corrosivas das intervenções dos super-heróis. Um de seus personagens, Dr. Manhattan, que é basicamente uma figura divina, em sua onipotência e desapego, opta por se afastar dos assuntos e problemas humanos, considerando-os insolúveis ou irrelevantes para sua perspectiva divina. O personagem representa, assim, a alienação que pode ocorrer quando o poder absoluto se desconecta das necessidades humanas. Por outro lado, outro personagem, Ozymandias, tenta impor sua própria visão de progresso por meio de ações extremas, que incluem engano e violência. Sua abordagem levanta questões éticas: vale a pena sacrificar vidas ou valores para alcançar um “bem maior”? E quem decide o que é progresso?

Watchmen traz uma questão interessante sobre se os super-heróis realmente ajudam a resolver problemas ou se são parte de uma mitologia que reforça o status quo. Sua falha em mudar o mundo não se dá por falta de poder, mas por falta de visão. Eles são avatares do individualismo, suas histórias giram em torno de perda pessoal, vingança ou redenção. Os super-heróis, em sua solidão imponente, refletem uma profunda ambivalência cultural: ansiamos por mudança, mas tememos a revolução que ela exige.

Luta Coletiva contra a Opressão Sistêmica

Nesse cenário de contradições e limitações, histórias como V de Vingança, criada por Alan Moore e David Lloyd, oferecem perspectivas distintas, embora também cheias de complexidade, sobre o papel do herói na mudança do mundo. Enquanto os super-heróis tradicionais refletem uma luta solitária, muitas vezes sem conexão com as causas reais da injustiça, V surge como um exemplo radical de ação que desafia diretamente o sistema que mantém a opressão. Ele não é apenas um herói que luta contra vilões individuais, mas um agente de transformação estrutural, que vê a própria estrutura de poder como algo que deve ser destruído e reconstruído. Sua luta está em desmantelar as instituições que perpetuam o controle, a desigualdade e a repressão.

V de Vingança é um reflexo do que Hannah Arendt chama de poder coletivo, pois sua revolução depende do engajamento de todos. V sabe que a mudança verdadeira exige a ação e o consenso de uma comunidade. Sua estratégia não é baseada em atos de heroísmo individual, mas na incitação de uma revolta coletiva contra uma tirania opressiva. Isso se alinha com a ideia de que o poder está em um grupo unido, e não em um único indivíduo que detém habilidades extraordinárias.

No entanto, V também enfrenta dilemas éticos e práticos. Sua abordagem, assim como a de Ozymandias, envolve ações extremas, como o uso da violência para alcançar seus objetivos. Isso levanta a questão moral sobre os meios e fins da revolução: até que ponto a destruição de um sistema é justificável se ela resulta em dor, sacrifício e mortes? Mas ao contrário de Ozymandias, que age com uma visão paternalista e autoritária do que seria “o bem maior”, V busca empoderar o povo a decidir seu próprio destino, mesmo que isso signifique abrir mão de um controle centralizado e imediato.

Além disso, a jornada de V também toca na ambivalência cultural dita antes — o desejo de mudança, mas o medo da revolução que ela exige. O próprio personagem é uma figura ambígua, que mistura vingança pessoal com um propósito maior de destruição do sistema, mas sua humanidade é constantemente questionada ao longo da trama. Ele é, de certa forma, o antídoto para o herói solitário que luta por redenção pessoal. Sua visão de mudança é radical e violenta, mas também profundamente conectada à luta por justiça social, algo que muitos heróis tradicionais falham em abordar de maneira estruturada.

Saindo da Catarse

Por que, então, histórias de super-heróis, de forma geral, persistem em sua estagnação? Talvez porque essas histórias, em essência, não tratem de mudança, mas de catarse. Elas oferecem a garantia de que o mal pode ser derrotado e a ordem restaurada sem que enfrentemos a dura verdade da nossa cumplicidade. Essas histórias nos dão o luxo de torcer da arquibancada, em vez de nos juntarmos à luta para derrubar sistemas opressivos e reconstruí-los.

A ideia de um “salvador” é muitas vezes um reflexo de um desejo por soluções rápidas e fáceis, mas a realidade é bem mais complexa. Super-heróis, em suas histórias, poderiam ser mais eficazes se se envolvessem nas questões locais e cotidianas, mostrando como a colaboração e o esforço conjunto podem gerar resultados duradouros e reais. Em vez de resolver tudo com socos e poderes sobrenaturais, talvez seja hora de ver heróis ajudando a construir uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humana.

No entanto, essa mudança de paradigma também implica em uma evolução nas narrativas e nos próprios personagens. Os super-heróis precisariam deixar de ser figuras onipotentes e se tornar agentes de transformação através do diálogo, do envolvimento em causas sociais e da cooperação com outros, criando uma rede de apoio e transformando as realidades em que estão inseridos. Isso poderia tornar suas histórias mais conectadas com o mundo real, refletindo os desafios diários que enfrentamos e como podemos superá-los juntos.

Se os super-heróis realmente quiserem mudar o mundo, suas histórias precisam evoluir. Eles devem lidar não apenas com ameaças grandiosas, mas com as injustiças cotidianas que corroem a humanidade. Devem superar o mito do salvador solitário e abraçar o trabalho coletivo, bagunçado e imperfeito do progresso. Até lá, os super-heróis permanecerão presos em seu próprio paradoxo, empunhando um poder extraordinário, mas deixando o mundo muito parecido com o que encontraram.

A chave está em desafiar o status quo e explorar novas formas de poder, que não sejam apenas físicas ou extraordinárias, mas também empáticas e inclusivas. O que você acha dessa abordagem? Você já viu algum exemplo de super-heróis que tentam fazer isso em suas histórias?

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Material de Referência

1 – “Sobre otimismo e desânimo”, por Zadie Smith – traduzido por Janaína Azevedo Lopes

2 – “Poder e Política no pensamento de Hannah Arendt”, Revista Partes

3 – “Watchmen”, Alan Moore e Dave Gibbons

4 –“V de Vingança”, Alan Moore e David Lloyd

5 – “10 Ways DC Heroes Could Save The World (But Don’t)”, CBR.com

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