O Mito da Originalidade na Narrativa
Uma vez, fiz um post no Instagram da página chamado “Não há nada novo debaixo do sol”. Nele, tentei explicar de forma resumida — e, pensando agora, talvez até simples demais — como as narrativas, em geral, possuem uma estrutura similar entre si. E isso se baseia em conceitos já bastante antigos, propostos por diferentes estudiosos. O post é este aqui e, se você quiser, vale a pena dar uma lida — e deixar o like, claro!
No entanto, o motivo de eu ter trazido esse assunto novamente é que ele está diretamente ligado à “originalidade”, algo que quero discutir um pouco no texto de hoje. A ideia de que um filme pode ser verdadeiramente original sempre foi bastante contestada, principalmente em uma era em que cada grande lançamento é analisado obsessivamente em busca de influências, referências e repetições. O público e boa parte da crítica parecem ter um fascínio pelo conceito de autenticidade, embora raramente haja consenso sobre o que isso significa de fato. Alguns apontam a familiaridade estrutural como um sinal de falta de criatividade, enquanto outros valorizam mais a maneira como certas histórias se reinventam ao longo do tempo. Eu fico com esse último grupo.
Grandes cineastas sempre tiveram inspirações claras. Akira Kurosawa é um desses, e um exemplo emblemático. Kurosawa (1910–1998) foi um dos cineastas mais influentes da história do cinema, conhecido por sua maestria visual, narrativa épica e impacto duradouro na sétima arte. Diretor, roteirista e editor japonês, ele revolucionou o cinema com técnicas inovadoras, como o uso dinâmico da câmera e narrativas não lineares. Inspirado tanto pelo cinema clássico de Hollywood quanto pela literatura e história japonesas, Kurosawa deixou um legado que transcende culturas e épocas, sendo reconhecido como um dos maiores contadores de histórias do século XX.
Pode se dizer então que ele absorveu o cinema clássico de Hollywood e, em troca, influenciou profundamente cineastas ocidentais. “Trono Manchado de Sangue” (1957) e “Ran” (1985), por exemplo, dois filmes de Kurosawa, são variações estilísticas de Shakespeare. Em contra partida, “Os Sete Samurais” (1954) gerou inúmeras reinterpretações no ocidente, desde “Sete Homens e um Destino“ (1960) a até mesmo “Vida de Inseto” (1998). Se influência direta fosse sinônimo de falta de originalidade, poderíamos dizer que o cinema inteiro entraria em colapso, não é mesmo?
Outros diretores seguem prestando homenagem a suas referências o tempo todo. Peter Lord e Nick Park, em “A Fuga das Galinhas” (2000), brincam com “Fugindo do Inferno” (1963) em sua premissa de prisioneiros tentando escapar.
“Vamos fazer Fugindo do Inferno com galinhas! Fugindo do Inferno, especialmente naquela época, ainda era um filme muito querido. Era empolgante e memorável. No Reino Unido, era exibido na TV em todos os feriados. É um clássico. Aí você diz ‘com galinhas’. E então, indo ainda mais longe, uma granja se parece bastante com um campo de prisioneiros de guerra. De repente, você percebe que as galinhas são tão ridículas e que são notoriamente covardes. Então, você mistura heroísmo extremo com essas grandes covardes, e isso parece absurdo. ‘Fugindo do Inferno com galinhas’ eram cinco palavras que sugeriam empolgação, absurdo e comédia – e até mesmo indicavam o tipo de filme.” – Peter Lord.
Claramente uma homenagem cinematográfica, e não um roubo. Mas há uma linha tênue entre homenagem e mera imitação. Enquanto Quentin Tarantino enche seus filmes de acenos visuais e narrativos que dialogam com seu repertório cinematográfico, produções como “Battle Beyond the Stars” (1980) são réplicas oportunistas de Star Wars, sem adicionar qualquer substância própria.
Vale ressaltar também que a repetição de elementos não significa que duas obras contem a mesma história. “A Origem” (2010) e “Paprika” (2006) lidam com sonhos e realidades sobrepostas, mas seguem caminhos distintos – Paprika mergulha na fluidez da identidade, já A Origem constrói um thriller cerebral sobre controle e obsessão. Da mesma forma, “Matrix” (1999) e “Ghost in the Shell” (1995) compartilham um imaginário visual cyberpunk, só que Matrix usa essa estética para discutir realidades simuladas e livre-arbítrio de maneira própria.
Tudo isso nos leva a uma questão central: a narrativa, por natureza, é um ciclo contínuo de referências, não um exercício de criação do nada. Os contadores de histórias sempre reciclaram mitos, arquétipos e estruturas. O importante não é se um filme é “novo” no sentido absoluto, mas sim como ele reorganiza e ressignifica seus elementos. Isso vale para todas as artes, mas no cinema é ainda mais evidente, já que os filmes dialogam constantemente com referências culturais, gêneros e convenções.
Tarantino, Nolan, Miyazaki ou Scorsese — esses grandes nomes constroem suas obras a partir de inspirações, releituras e reinvenções. O que torna um filme memorável não é apenas sua “novidade”, mas como ele provoca emoções, desafia expectativas e ressignifica histórias já contadas. Uma vez ouvi uma frase do professor Philippe Leão mais ou menos assim: “Não é sobre contar a mesma história, mas sim sobre como contar aquela história novamente” – ou algo próximo disso, mas você me entendeu.
No fim, talvez a busca por originalidade absoluta, seja por parte de quem cria ou por parte de quem consome, possa ser um equívoco. Cada obra é um elo em uma corrente infinita de influência e reinvenção, e a força de um filme, ou de qualquer meio de história, reside não em sua ruptura total com o passado, mas em sua capacidade de criar algo vibrante e expressivo a partir do que veio antes. O cinema nunca foi sobre a pureza da criação — sempre foi sobre como contar histórias que, de alguma forma, já conhecemos, mas que ainda conseguem nos surpreender.
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Material de Referência
- Akira Kurosawa, “Ran”
- Akira Kurosawa, “Throne of Blood”
- ScreenRant, “The Magnificent Seven(s) & Seven Samurai: Similarities & Differences”
- Far Out, “Why Disney’s ‘A Bug’s Life’ is Akira Kurosawa’s ‘Seven Samurai’”
- befores & afters, “‘The Great Escape with chickens’: Aardman’s Peter Lord reflects on ‘Chicken Run’”