1984: A Novafala e a Linguagem como Ferramenta de Controle
É incrível como o tema “linguagem” se tornou um assunto meio que recorrente aqui na Olhe Novamente. Já falei sobre isso em alguns textos e estou sempre descobrindo coisas novas sobre o tema. Recentemente, encontrei algo bem interessante: uma teoria conhecida como “Hipótese Sapir-Whorf” ou relatividade linguística, que sugere que a língua que uma pessoa fala pode influenciar sua visão de mundo, seus pensamentos e até a forma como ela vivencia e compreende o mundo. Embora versões mais extremas dessa hipótese tenham sido questionadas e desacreditadas, algumas pesquisas mostram que a linguagem pode realmente moldar significativamente como entendemos o mundo ao nosso redor e até a nós mesmos. A hipótese leva o nome do antropólogo e linguista Edward Sapir e de seu aluno, Benjamin Lee Whorf. Eu, pessoalmente, considero essa hipótese muito válida, especialmente porque ela tem uma conexão direta com o que George Orwell criou em sua famosa distopia.
No livro 1984, Orwell explora a linguagem como instrumento de controle, exemplificado na criação da Novafala. Esse idioma fictício, imposto pelo regime autoritário de Oceania, limita o alcance do pensamento ao eliminar palavras ou alterar seus significados. Através da renomeação e da redução da diversidade linguística, Orwell ilustra como a linguagem pode restringir a percepção e moldar a realidade. À partir disso, será que podemos analisar esses temas sob a ótica das teorias sociais contemporâneas sobre linguagem? Acho que a resposta é sim. Além de compará-los às tendências linguísticas atuais, essa análise nos oferece uma perspectiva interessante sobre como a linguagem pode moldar nosso comportamento e a consciência coletiva.
A Realidade por Outro Nome
Na distopia de Orwell, palavras são frequentemente substituídas por eufemismos. Um campo de concentração ou “campo de trabalho forçado”, como descrito na obra, torna-se “Campofolia”, um termo que claramente obscurece a realidade cruel daquele lugar. Assim como na Hipótese de Sapir-Whorf, que sugere que a estrutura da linguagem pode moldar a cognição e a visão de mundo, o uso recorrente de um termo como Campofolia ao se referir à uma instituição severa, ameniza, e talvez até apaga, as associações negativas ligadas ao trabalho forçado ou à opressão.
Ludwig Josef Johann Wittgenstein, um filósofo austríaco que trabalhou com a filosofia da linguagem, certa vez disse o seguinte: “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”. Quando o Estado reduz o alcance emocional e conceitual da linguagem, ele limita como os cidadãos entendem e internalizam a verdadeira natureza de seu ambiente.
Podemos ver esse processo em temas reais e contemporâneos, como, por exemplo, a renomeação corporativa de práticas controversas. Na linguagem militar, a morte de civis é rebatizada como “dano colateral”, distanciando o interlocutor da realidade da perda humana. No mundo corporativo, termos como “readequação”, em vez de “demissões”, buscam minimizar o impacto negativo sobre os empregados e a percepção pública. Com o tempo, esses eufemismos podem alterar a forma como as pessoas percebem esses conceitos, diluindo o significado original e tornando a realidade por trás das palavras menos preocupante.
A Mudança para o Foco em Substantivos
Outra característica da Novafala é a transformação das palavras em estruturas fixas, centradas em substantivos. Por exemplo, o verbo “cortar” foi abolido, pois seu conceito já está embutido no substantivo “faca”, e a palavra “pensamento” foi substituída por “pensar”, que na história funciona tanto como verbo quanto como substantivo. Com essas mudanças, a Novafala não apenas reduz o vocabulário, mas também limita a flexibilidade e o poder associativo da linguagem. “Cortar” sugere uma força inovadora e até transformadora, enquanto “faca” restringe o conceito à imagem física do objeto, eliminando qualquer metáfora mais ampla.
Essa redução também ressoa com as mudanças de vocabulário que observamos hoje, com o foco em verbos específicos de plataformas. Se antigamente “enviávamos uma mensagem”, hoje “mandamos uma DM” ou um “inbox”, uma comunicação construída pelas plataformas que a intermediam. Esses termos limitam nosso entendimento mental da comunicação, a integrando em estruturas corporativas e privadas. Se, ao longo do tempo, nosso vocabulário para troca de mensagens ficar exclusivamente atrelado a plataformas específicas, é plausível pensar que o conceito de conexão interpessoal pode ser reduzido aos canais oferecidos por esses monopólios. Podemos passar a ver a comunicação como inseparável de certas marcas, diminuindo a possibilidade de pensá-la em termos puramente humanos.
A Influência Corporativa na Linguagem e nas Estruturas Sociais
No mundo digital atual, o vocabulário corporativo define cada vez mais nossas vidas sociais e profissionais. Em 2011, o Facebook anunciou uma mudança na plataforma, trocando “perfil” por “linha do tempo” (timeline), reformulando a representação estática da identidade como um fluxo de eventos da vida. Pode até parecer algo inofensivo, mas esse simples ato sutilmente altera como as pessoas podem ver sua presença online: menos como um registro de si mesmas e mais como uma narrativa em construção. Estamos em 2024 — como você se percebe nas redes? Quando empresas nomeiam ou renomeiam serviços, elas não estão apenas atualizando a terminologia, mas também direcionando a percepção do usuário sobre como ele existe dentro da plataforma. “Linha do tempo” sugere algo dinâmico, algo que flui em uma ordem específica. Sendo assim, os usuários passam a ver suas vidas como conteúdo dentro de um ecossistema maior, uma exibição construída com importância temporal.
Quer mais? O surgimento de termos como “dar um Google” ou “tirar uma Xerox” também mostra como a influência corporativa molda nosso entendimento de atividades cotidianas. Procurar informações ou fazer uma cópia tornou-se algo entrelaçado com identidades de marca, o que pode limitar nossa independência conceitual em relação a essas empresas. Trocamos termos genéricos por específicos de empresas sem notar que corremos o risco de ver certas ações como inseparáveis das marcas por trás delas. Como resultado, a corporação ocupa um lugar não apenas em nossas rotinas diárias, mas em nossa linguagem e pensamentos, posicionando-se como um componente essencial de nossa realidade.
Censura e o Controle Seletivo da Realidade
Em 1984, a Polícia das Ideias monitora constantemente os cidadãos para garantir a conformidade com a doutrina estatal, censurando e alterando informações para manter a pureza ideológica. No livro, ela utiliza psicologia e vigilância para identificar e eliminar membros da sociedade que pensam em desafiar a autoridade governante. Aplicando essa ideia aos tempos atuais, plataformas digitais podem exercer influência semelhante, embora de maneira mais sutil, através da moderação de conteúdo e censura. Algoritmos de redes sociais como Instagram e Google ocultam ou desfocam conteúdos considerados inadequados, frequentemente sem critérios claros ou consistentes sobre o que é “sensível”. Esse ocultamento seletivo de conteúdo muda nossa experiência, escondendo certas imagens, palavras e ideias.
As políticas de “pesquisa segura” e de moderação de conteúdo, embora voltadas à proteção dos usuários, podem reformular a compreensão coletiva ao filtrar sistematicamente tópicos específicos. Se certas realidades forem continuamente ocultadas e ninguém reagir, nossa consciência pública pode se reduzir, moldando nossa compreensão das realidades sociais e políticas. Conteúdos censurados relacionados a protestos políticos, violência ou outros temas controversos, por exemplo, podem diminuir nossa exposição a esses assuntos, levando a uma realidade mais despolitizada e alinhada a interesses corporativos ou políticos. É importante estarmos atentos ao que censuramos ou não – isso pode ser decisivo no nosso futuro.
Fica o Alerta….
A Novafala em 1984 de Orwell é um forte alerta sobre o potencial manipulador da linguagem, pois podemos ver através dela como a redução de vocabulário e o uso de eufemismos podem transformar uma sociedade. Na verdade, o livro inteiro é um alerta gigantesco e, embora 1984 seja uma ficção, os assuntos abordados no livro se mostram assustadoramente cada vez mais relevantes no contexto dos ambientes corporativos e das redes sociais de hoje. Seja na renomeação de palavras até a definição rígida de ações por verbos específicos de plataformas, a linguagem permanece uma ferramenta poderosa na formação da percepção.
Como Wittgenstein e Sapir-Whorf argumentaram, a linguagem não apenas descreve a realidade, ela a constrói. Estamos em um mundo cada vez mais mediado pela linguagem corporativa e influenciado pela moderação de conteúdo, e o potencial da linguagem para obscurecer ou distorcer a realidade é mais alto do que nunca. O livro de George Orwell é um lembrete de que proteger a diversidade linguística e a independência conceitual é essencial para preservar uma sociedade que reflita verdadeiramente sua complexa e multidimensional realidade.
P.S.: Sobre o vocabulário corporativo, há um episódio interessante do podcast Braincast que explora esse tema de maneira divertida. O episódio se chama “Copa de Buzzwords em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” e está disponível no Spotify. Fica a dica!
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