CinemaEnsaios

Como Greta Gerwig subverte a Manic Pixie Dream Girl

Quando lançado, em 2023, o filme Barbie explodiu as redes sociais, com destaque forte no Brasil. Por semanas seguidas, só se falou disso. O filme, estrelado por Margot Robbie e Ryan Gosling e dirigido por Greta Gerwig trouxe reflexões importantes sobre o papel feminino na sociedade atual, além de dar luz a outros temas relevantes, como o modelo de patriarcado que segue vivo hoje em dia. Barbie teve muito sucesso em sua proposta e conseguiu levar essas e outras discussões bem à frente, o que é muito legal e muito importante também.

As pautas abordadas no filme Barbie tomaram conta de blogs e páginas de cinema, levando uma reflexão legal a bastante gente.

O roteiro de Barbie foi brilhantemente pensado por Greta Gerwig, que consegue entregar um filme fiel às raízes da boneca mais famosa do mundo, com críticas relevantes e, ao mesmo tempo, bastante divertido. E dentre várias outras leituras possíveis de seus personagens, a Greta nos entrega um Ken que não consegue se ver fora da aura e do entorno da Barbie. Durante a narrativa do filme, vemos que o Ken precisa da Barbie para ser uma pessoa melhor e mais relevante. Existem várias análises e reviews sobre Barbie por aí na internet, com olhares bem legais que valem a pena de serem conferidos. Eu recomendo bastante o canal do PH Santos no Youtube. Mas voltando ao assunto do Ken, essa sua necessidade da Barbie para que ele possa crescer me faz lembrar de outra coisa. E hoje eu não pretendo falar especificamente sobre Barbie, mas quero resgatar um pouco o conceito de Manic Pixie Dream Girl (MPDG). Ou, caso o leitor não conheça, apresentar do que se trata esse termo.

Ken precisa da Barbie para não ser só…o Ken.

Manic Pixie Dream Girl

Existem varias listas de filmes com a tematica MPDG

Imagine que você está assistindo a um filme ou alguma outra história e há uma personagem especial que é muito, muito peculiar e legal. A principal função dessa personagem, feminina, é fazer com que o personagem principal, geralmente um homem, se sinta realmente feliz e realizado. Essas mulheres costumam ser fora do padrão, independentes, com forte personalidade. Dançam na chuva, são engraçadas e dizem coisas inteligentes. Essas personagens são como uma amiga mágica que ajuda o personagem principal a se divertir e aprender coisas novas sobre a vida. Elas o ajudam a evoluir. Mas seus próprios sonhos, objetivos e medos não são explorados na narrativa, pois essa personagem, a qual chamamos de Manic Pixie Dream Girl, só existe para ser um trampolim para a ascensão de algum adulto em construção que deu a sorte de encontrá-la.

Esse termo foi cunhado por um crítico chamado Nathan Rabin em sua crítica sobre o filme Elizabethtown, de 2005, para descrever a personagem interpretada por Kirsten Dunst. Desde então, esse tipo de personagem passou a ser analisado em vários outros filmes e narrativas. Rabin afirmou que a MPDG é “aquela criatura cinematográfica cintilante e superficial que só existe na imaginação febril dos escritores para ensinar jovens homens profundos, cismados e sentimentais a aproveitar a vida e seus infinitos mistérios e aventuras“.

Bom, dentre todas as representações que exemplificam o termo MPDG, talvez a Summer, do filme “500 dias com ela“, seja a mais fácil de explicar, já que ela se encaixa quase que perfeitamente nesse conceito.

Summer é como uma fada brilhante e enérgica que entra na vida de Tom. Tom, por sua vez, está meio triste e inseguro em relação à vida, mas quando Summer entra em cena, tudo muda. Ela tem uma maneira única e interessante de ver o mundo e faz coisas inesperadas e emocionantes. Summer traz novidades e emoções novas para a vida de Tom e fala sobre ideias incomuns que fazem ele pensar de forma diferente. Ela é como uma explosão de cor e alegria na vida dele. Todas essas qualidades fazem com que Tom se apaixone por ela instantaneamente.

Convenhamos, é meio difícil não se apaixonar pela Zooey Deschanel

E aí vem a parte importante: vemos o filme pelas lentes de Tom, então a história e os sentimentos de Summer não são tão explorados. Não sabemos por que ela faz as coisas que faz ou o que ela realmente pensa e sente de verdade. Não sabemos quais são suas ambições, seus medos e nem mesmo o seu real sentimento por Tom é de fato explicado, tanto que muitas pessoas a tratam como a vilã da história. Mas a real é que ela está lá especificamente para ajudar Tom a crescer e mudar, quase como uma ajudante mágica.

E assim, como uma Manic Pixie Dream Girl, Summer é uma personagem de uma história que é super peculiar e serve como esse trampolim para que o personagem principal se sinta mais feliz e vivo. Mas ela não têm a chance de ser uma pessoa plena e complexa, com seus próprios pensamentos e emoções. Ou, pelo menos, não tem a chance de mostrar isso dentro da narrativa, permitindo diversas interpretações, muitas vezes injustas, sobre a personagem.

Sendo assim, podemos elencar 3 grandes problemas surgidos com a MPDG:

Falta de profundidade: As personagens femininas são privadas de complexidade e autonomia, servindo apenas como catalisadoras para os arcos e o crescimento dos protagonistas masculinos.

Objetificação: As MPDGs são valorizadas por suas excentricidades e peculiaridades, que muitas vezes são “domadas” ou apagadas assim que cumprem seu propósito de “consertar” o protagonista masculino.

Retrocesso feminista: Reforçam tradições narrativas sexistas em que as mulheres existem principalmente em relação aos homens, limitando representações femininas autênticas no cinema.

Essas representações unidimensionais refletem atitudes culturais mais amplas que veem as mulheres como acessórios das jornadas masculinas, em vez de protagonistas de suas próprias histórias.

Outros exemplos de personagem são Natalie Portman como Sam em Hora de Voltar (2004), cuja função narrativa é despertar o protagonista para novas experiências e emoções e Kate Winslet como Clementine em O Brilho Eterno de uma mente sem lembranças, cuja excentricidade serve de catalisador para o crescimento emocional do personagem principal, ainda que possua nuances que a tornam uma das versões mais complexas do arquétipo.

Essas personagens compartilham traços em comum: são excêntricas, impossivelmente otimistas, existem para transformar os protagonistas masculinos e carecem de arcos de crescimento pessoal que transcendam sua relação com os homens.

Greta Gerwig e a subversão da MPDG

Todo esse arquétipo da MPDG tem a ver, obviamente, com o feminismo. Isso porque ele destaca questões como papéis estereotipados, objetificação e falta de autenticidade para personagens femininas na mídia. O feminismo procura desafiar estas limitações, defendendo representações mais complexas, poderosas e autênticas das mulheres nas histórias, indo além dos papéis que giram exclusivamente em torno de personagens masculinos e do seu crescimento. Nesse aspecto, temos visto nos últimos anos contribuições importantíssimas vindo de uma diretora em ascensão, a própria e incrível Greta Gerwig.

Greta, além de também ser uma extraordinária atriz, tem essa capacidade incrível de criar personagens femininas complexas, dirigir histórias autênticas de amadurecimento e colaborar com outras mulheres do setor. Seus filmes como “Lady Bird” e “Little Women” mostram experiências femininas diferentes, mas reais. E isso com certeza inspira mudanças positivas e progresso dentro do feminismo.

Greta Gerwig é uma vitória feminina dentro do cinema.

Em 2012, juntamente com o diretor e marido Noah Baumbach, Greta Gerwin estrelou o filme “Frances Ha“, que desafia muitas expectativas e quebra conceito de MPDG apresentando um retrato mais autêntico e maduro de sua personagem principal.

Frances Ha apresenta Frances, uma jovem de 27 anos em Nova York que sonha em se tornar dançarina profissional, e é interpretada com maestria pela própria Greta Gerwig. À primeira vista, até parece reproduzir a estética da Manic Pixie Dream Girl: uma personalidade excêntrica e desajeitada, escolhas de vida pouco convencionais, um estilo visual em preto e branco que remete ao cinema clássico e momentos lúdicos, como correr pelas ruas ao som de David Bowie. No entanto, o filme subverte o estereótipo ao construir uma personagem com falhas, medos e ambições próprias, cuja trajetória não gira em torno da validação masculina. A narrativa foca na complexidade das amizades femininas e no amadurecimento pessoal de Frances, mostrando que seu crescimento e identidade são independentes de um interesse romântico.

Ao contrário das tradicionais Manic Pixie Dream Girls, Frances não é apenas uma companheira na história de outro cara. Ela ocupa o centro de sua própria narrativa, e nós, como público, testemunhamos suas lutas, sucessos e autodescoberta. Baumbach e Gerwig colocam humanidade em Frances, mostrando seus momentos de vulnerabilidade, seus confrontos com a realidade e sua jornada para definir sua própria identidade. Este é um filme que diz muito sobre amadurecimento e essa tratativa não unidimensional em uma personagem com tantas camadas e próprias ambições desafia qualquer arquétipo e acrescenta profundidade à narrativa do filme. Frances Há é um filme muito bonito.

Frances não é um trampolim, mas uma protagonista por si só. O que também não a impede de falar sobre amor e relacionamentos.

“É isso que eu quero em um relacionamento, o que meio que explica porque estou solteira agora. É difícil de explicar. É uma coisa quando você tá com alguém e você ama a pessoa e vocês sabem disso. Vocês estão juntos, mas é uma festa, sabe? Os dois estão conversando com pessoas diferentes. Você tá lá sorrindo e olha para o outro lado da sala e vocês trocam olhares. Mas não porque são possessivos ou que seja algo sexual, mas apenas porque aquela é a pessoa da sua vida. E isso é engraçado e triste, mas só porque esta vida vai terminar. E  é esse mundo secreto que existe bem ali em público, mas imperceptível, que ninguém vai ficar sabendo. É tipo como dizem, uma outra dimensão que existe ao nosso redor, mas não temos a habilidade de notar. Sabe? É isso. É isso que quero de um relacionamento.”

E, claro, o toque pessoal da Gerwig acrescenta ainda mais autenticidade, o que resulta nessa abordagem mais diferenciada e fornece um retrato compreensível do crescimento de uma jovem. O próprio sucesso de Gerwig como atriz, escritora e diretora contribui para aumentar a visibilidade e a representação das mulheres em papéis importantes na indústria cinematográfica. Suas conquistas com certeza inspiram outras mulheres a seguir carreiras no cinema e contribuir com suas próprias perspectivas.

Os ingredientes de Greta para uma boa personagem feminina

Lady Bird: Reclamando a narrativa

Com seu grande avanço como diretora em 2017, Gerwig cria em Christine “Lady Bird” uma personagem que:

Ecoa a estética MPDG
Cabelo rosa, espírito rebelde e aspirações artísticas.

Transcende o tropo
Profundidade emocional completa, relacionamentos complexos e desafios autênticos de amadurecimento.

Foca na perspectiva feminina
A autodescoberta e a dinâmica mãe-filha têm prioridade sobre relacionamentos românticos.

A jornada de Lady Bird é definida por seu próprio desejo de identidade e significado, não pelo modo como ela transforma os homens ao seu redor.

Laços mãe-filha nos filmes de Gerwig

Amor profundo
Gerwig retrata o amor profundo, muitas vezes não verbalizado, entre mães e filhas, que molda a identidade.

Conflito honesto
Em vez de relacionamentos idealizados, ela mostra tensões autênticas, falhas de comunicação e verdades dolorosas.

Crescimento mútuo
Mães e filhas evoluem, adquirindo compreensão e compaixão por meio de suas lutas.

Autonomia feminina
Os relacionamentos entre mulheres têm prioridade sobre suas relações com os homens.

Ao focar nesses vínculos complexos, Gerwig cria narrativas feministas que ressoam profundamente com o público, oferecendo representações raramente vistas da experiência feminina na tela.

Em Lady Bird, por exemplo, o relacionamento entre Christine e sua mãe, Marion (interpretada por Laurie Metcalf), forma o núcleo emocional do filme, retratando tanto a tensão quanto a conexão profunda que definem muitos vínculos mãe-filha.

O impacto feminista de Gerwig no cinema

Protagonistas femininas multidimensionais: Cria personagens femininas com sonhos, falhas, contradições e autonomia, indo além de servir a narrativas masculinas.

Desafiando normas da indústria: Rompe com as tradições narrativas centradas no homem em Hollywood, ao colocar experiências femininas autênticas no centro das histórias.

Ampliando a representação: Abre espaço para narrativas femininas diversas e complexas, que ressoam com públicos ávidos por retratos autênticos.

“Sempre me interessam os relacionamentos entre mulheres. Sempre me interesso por como as mulheres se relacionam entre si, seja em relações familiares ou de amizade. Isso é um território tão pouco explorado no cinema.” – Greta Gerwig

O futuro além da MPDG e as mulheres por trás das câmeras

O sucesso recorde de Barbie nas bilheterias evidencia a grande demanda do público por narrativas feministas. Os filmes de Gerwig têm inspirado novas histórias em que as mulheres lideram suas próprias jornadas complexas, em vez de servirem como meros acessórios das tramas masculinas. Além disso, há um movimento crescente para superar estereótipos limitantes, como a MPDG, valorizando a excentricidade e a individualidade feminina autêntica. À medida que Gerwig continua a criar cinema inovador, ela abre caminho para uma nova geração de cineastas contar histórias em que as mulheres são as heroínas de suas próprias vidas.

Além disso, Gerwig representa uma nova onda de diretoras que trazem perspectivas femininas autênticas para o cinema mainstream. Ao controlar a narrativa por trás das câmeras, essas cineastas garantem que os personagens femininos sejam retratados com profundidade, autonomia e autenticidade.

Greta Gerwig

Desafiando os mitos românticos e abrindo as portas para um novo futuro

Voltando um pouco ao início do texto, a visão de Greta Gerwig sobre os papéis femininos no cinema se reflete na autodescoberta de Ken fora da Barbie. Barbie é também uma história que incentiva a independência e a felicidade além dos relacionamentos românticos, muitas vezes a gente esquece esse aspecto. Uma mulher pode ser a dona de seu próprio destino, assim como um homem pode também ser responsável por si mesmo, sem a necessidade de uma mulher para ser seu suporte. E são narrativas assim que podem nos levar a realmente examinar os papéis das mulheres na sociedade e da fantasia masculina. Talvez a abordagem humorística de Barbie dificulte a mensagem de ser mais direta, mas acredito que é necessário instigar um pensamento mais crítico também, o papel do cinema é também gerar incomodo.

Fato é: O sucesso de Greta Gerwig é a mão que se estende para salvar de vez muitas das Manic Pixie Dream Girls que poderiam ainda vir a existir. Basta olharmos novamente.

***********************

Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Se curtir, considere também se inscrever no site para receber os textos sempre que eles forem publicados. 🙂

Um forte abraço!

Inscreva-se na Olhe Novamente!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *