
Junji Ito é hipnotizante
Quando penso em terror hoje em dia, Junji Ito sempre me vem na cabeça de maneira quase que imediata. Não somente porque ele é muito bom nesse tema, mas porque o Ito trabalha o horror de uma forma que gosto bastante: aquela que desgraça nossa cabeça. Algo mais lovecraftiano. Li alguns bons textos explorando isso, então quero trazer um pouco disso aqui pro site também. O que exatamente torna suas obras tão profundamente perturbadoras e, paradoxalmente, irresistíveis?
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A Estética do Detalhamento Obsessivo
O que, obviamente, logo de cara distingue o trabalho de Junji Ito é sua abordagem meticulosa ao desenho. Cada página é um exercício de paciência artística, onde linhas finas e precisas constroem mundos complexos e sufocantes. Seu estilo, ao invés de buscar a simplificação típica de muitos mangás, abraça a densidade visual como ferramenta narrativa. As texturas são renderizadas com atenção quase científica; você pode sentir a aspereza da pele descamando, a viscosidade de fluidos inexplicáveis, a rigidez de cabelos que desafiam a gravidade natural.

Essa obsessão pelo detalhe não é meramente decorativa. Ela serve para ancorar o fantástico no real, criando uma ponte cognitiva que torna o impossível terrivelmente plausível. Quando vemos as espirais de Uzumaki ou as distorções corporais de Gyo, o nível de especificidade visual força nosso cérebro a processar essas imagens como algo que poderia existir. O horror de Ito funciona porque parece documentado, não imaginado.
Monstros Engenhosamente Desenhados
As criações de Ito não são monstros no sentido tradicional, elas são conceitos metamorfoseados em carne. Tomie, a garota que não pode morrer e se multiplica infinitamente, não é apenas uma criatura sobrenatural, ela é a manifestação visual de obsessão e vaidade destrutiva. Da mesma forma, as espirais hipnóticas de Uzumaki não são simplesmente padrões geométricos, são também a representação de ciclos viciosos, compulsões que se enrolam sobre si mesmas até consumir tudo. Cada “monstro” em seu repertório é simultaneamente repulsivo e fascinante porque carrega um significado conceitual embutido em sua forma.
O que torna esses designs particularmente eficazes é como Ito subverte expectativas biológicas. Seus monstros muitas vezes começam com algo familiar, como um rosto humano ou uma forma corporal reconhecível. Ele então os distorce através de lógicas internas impossíveis. Pessoas se esticam em comprimentos inumanos, rostos se multiplicam em configurações geométricas perturbadoras, corpos se fundem ou se fragmentam de maneiras que violam nossa compreensão de integridade física. Essa abordagem se aproxima bastante do conceito de “vale da estranheza”: quanto mais próximo do humano, mais perturbador o desvio se torna.

E se os monstros de Ito são conceitos com forma, seu body horror humanóide é onde o terror se torna profundamente pessoal. Aqui, ele explora a vulnerabilidade fundamental de existir em um corpo, essa máquina biológica que pode trair, transformar-se e finalmente escapar do nosso controle. As pessoas em suas histórias não se tornam monstros, elas são reveladas como sempre tendo sido matéria moldável, aguardando o catalisador certo para desfazer sua ilusão de solidez.
Considere as vítimas de Uzumaki que gradualmente têm seus corpos retorcidos em espirais vivas, ou os jovens de “O Enigma da Falha de Amigara” que são irresistivelmente atraídos para buracos perfeitamente moldados em suas formas. Ou seja, o horror não está apenas na transformação física, mas no inevitável: personagens sabem o que está acontecendo, compreendem a futilidade de resistir, mas são impotentes para impedir. Esta é a angústia existencial visualizada que diz que somos observadores aprisionados em corpos que podem se tornar nossas prisões mais grotescas.

O que separa o body horror de Ito de outros é essa ênfase na consciência, principalmente durante a transformação. Suas vítimas raramente perdem a razão completamente, elas permanecem lucidamente conscientes enquanto seus corpos traem toda noção de normalidade. Isso acaba criando uma crueldade narrativa: o leitor não pode se distanciar dizendo “eles enlouqueceram”. Não, eles estão conscientes, e nós estamos conscientes com eles, forçados a imaginar como seria experimentar nossos próprios corpos tornando-se alienígenas para nós. É por isso que o horror corporal de Junji Ito é tão intenso: ele te obriga a participar mentalmente da metamorfose.

Narrativas Bizarras: Onde a Lógica Se Desfaz
As histórias de Junji Ito operam sob uma lógica de sonho (ou, mais precisamente, de pesadelo). Elas começam com premissas que soam absurdas quando resumidas: uma cidade obcecada por espirais, peixes mecânicos que invadem o continente com pernas aracnídeas, pessoas encontrando buracos em montanhas perfeitamente moldados em suas silhuetas. No papel, essas ideias parecem ridículas. Mas na execução de Ito, elas se tornam inexoravelmente aterrorizantes porque ele as trata com absoluta seriedade.
Isso, por si só, é uma construção narrativa genial: ele estabelece uma regra impossível e então explora suas consequências com um rigor quase científico. Em Uzumaki, por exemplo, uma vez que aceitamos que espirais exercem alguma influência maligna, testemunhamos uma cascata lógica de eventos cada vez mais perturbadores. Cada capítulo intensifica a manifestação do conceito central, criando uma progressão que parece simultaneamente inevitável e imprevisível. Não há explicações convenientes, nem resoluções que restaurem a normalidade, somente a aceitação gradual de que este é o novo normal, e é horripilante.
Ito não usa o absurdo apenas como um truque chamativo, e sim como uma ferramenta de reflexão. Suas ideias estranhas obrigam personagens e leitores a repensar o que entendem como real, lógico e natural. Se até as leis da física podem ser quebradas por uma simples espiral, que outras certezas ainda são confiáveis?

Humanidade e Fatalismo Cósmico
Vestido de “horror sobrenatural” (o que de fato é), o trabalho de Junji Ito reflete consistentemente sobre questões filosóficas profundas. Suas histórias interrogam a natureza da humanidade: o que nos torna humanos, e quão frágil é essa identidade? Personagens em suas narrativas muitas vezes enfrentam escolhas que revelam aspectos sombrios da psique humana: egoísmo, obsessão, crueldade casual. Tomie explora como a beleza pode corromper e transformar admiradores em monstros de ciúme e possessividade. Uzumaki mostra como comunidades inteiras podem sucumbir à loucura coletiva quando confrontadas com o inexplicável.
Mas talvez o tema mais persistente em Ito seja o fatalismo cósmico. Esse conceito é uma filosofia (ou conceito literário) que descreve a ideia de que forças cósmicas/universais são tão vastas, indiferentes ou poderosas que a ação humana é irrelevante. Em outras palavras, não importa o que façamos: o destino ou a ordem do universo está além do nosso controle. Suas divindades e entidades sobrenaturais não são malignas no sentido tradicional, elas simplesmente são, operando sob lógicas que transcendem a compreensão humana. Os humanos são irrelevantes, exceto como material para suas manifestações. Esta é uma filosofia bem próxima ao horror cósmico de Lovecraft, mas enquanto o horror lovecraftiano enfatizava a loucura da compreensão, Ito enfatiza a inevitabilidade da subjugação. Nas histórias de Ito, o horror verdadeiro não é a transformação ou destruição, mas sim a compreensão de que nunca tivemos controle para início de conversa. Somos apenas testemunhas conscientes de nossa própria irrelevância.

Qual o segredo de Junji Ito, então?
Por que o trabalho de Junji Ito deixa uma impressão tão permanentemente desconfortante? Por que, apesar de – ou talvez por causa de – sua natureza profundamente perturbadora, continuamos retornando? Observe que, como leitores, experienciamos sensações parecidas com as de seus personagens. E a resposta talvez esteja justamente na síntese perfeita de todos os elementos discutidos: a estética obsessivamente detalhada que torna o impossível tangível, os designs monstruosos que carregam peso conceitual, as narrativas bizarras que desafiam expectativas e os temas que conversam com dilemas existenciais profundos e reais.
Seu trabalho funciona como um espelho distorcido da condição humana. Vemos nossas próprias obsessões refletidas nas espirais, nossos medos de perda de controle corporal no body horror, nossa insignificância cósmica nas divindades indiferentes. O horror de Ito é catártico: ele nos permite confrontar terrores primais em um espaço seguro, processando ansiedades através de metáforas visuais extremas.

Há também um elemento de beleza macabra que não pode ser ignorado. As páginas de Ito são objetivamente lindas, desde sua composição até o fluxo de linhas e a densidade visual. Existe prazer estético em observar seu trabalho, mesmo quando o conteúdo é repulsivo. Essa tensão entre atração e repulsão cria uma experiência única: somos simultaneamente enojados e fascinados, querendo desviar o olhar, mas incapazes de fazê-lo.
Enfim, o trabalho de Ito nos oferece algo raro: horror genuíno, lembrando-nos do que preferiríamos ignorar: que somos frágeis, que o universo é indiferente e que o horror mais profundo talvez seja simplesmente estar consciente disso tudo. E ainda assim, inexplicavelmente, voltamos para mais, porque em seu mundo macabro encontramos algo precioso: a permissão para sentir o peso total de existir.
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