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O Cinema e a Filosofia do Conflito

Geralmente quando a gente pensa sobre os elementos essenciais do cinema, o conflito é raramente a primeira coisa que vem na cabeça. Bom, ao menos eu tenho essa sensação. A maioria das pessoas, principalmente aquelas que não estudam cinema a fundo, reconhece primeiramente e de forma quase instintiva a linguagem visual do filme: os personagens, os cenários, a fotografia e o arco narrativo. Outras pessoas podem citar o enredo ou a sequência de eventos que vão moldando a história como a estrutura primordial necessária para todos os grandes filmes. Ok, acredito que esses componentes sejam, de fato, essenciais para criar um cinema impactante, cada um importante para a construção de histórias que ressoam com o público. Mas qual o lugar do conflito dentre esses elementos cinematográficos?

Na verdade, talvez seja mais interessante olhar diferente para esse tema mudando um pouco a pergunta para: o que há no conflito que eleva a narrativa, principalmente em um meio tão visual como o cinema? Mais justa, né? Mas ao fazer essa pergunta, devemos considerar não apenas por que uma história precisa de conflito, mas por que o público o busca (ou o buscaria). O cinema, como arte, indústria, etc e blablabla, está especialmente posicionado para nos confrontar com o material bruto da existência humana: emoção, luta e resolução. Isso faz com que a gente se envolva com os filmes como parte de uma experiência compartilhada. Partindo dessa perspectiva, a pergunta “Por que o conflito?” fica mais legal de ser explorada.

Impulso Narrativo, Dimensão Audiovisual e Reflexão Humana

Bom, antes de mais nada, vamos tentar definir o conceito dentro desse contexto cinematográfico. Como na literatura, o conflito no cinema carrega conotações de luta, resistência ou oposição, ou seja, forças que impulsionam a narrativa. No entanto, o conflito nem sempre precisa se manifestar como violência ou antagonismo explícito, ele pode ser interno, sutil e emocional, refletindo a condição humana de inúmeras maneiras. Numa pesquisa rápida na internet sobre a definição de conflito no contexto cinematográfico, encontrei uma resposta interessante:

“O conflito é uma luta entre forças opostas que impulsiona a narrativa no filme. Essa tensão pode ser interna, dentro de um personagem, ou externa, entre personagens ou grupos, e serve como um elemento crucial na formação do enredo e dos arcos dos personagens. A resolução de conflitos muitas vezes leva ao desenvolvimento do personagem e à exploração temática, tornando-se um aspecto fundamental da narrativa.”Fonte

Em curtas palavras, o conflito impulsiona a história e envolve o público no drama que se desenrola.

Essa definição está alinhada a uma tradição literária mais ampla, mas no cinema, o conflito assume uma qualidade dinâmica de uma maneira singular devido às próprias características de um modelo áudio-visual mesmo. Por exemplo, ao contrário da palavra escrita, o filme pode externalizar o conflito por meio de som, movimento e imagens. O vislumbre de incerteza no rosto de um personagem, a tensão crescente da trilha sonora a medida que o tubarão se aproxima ou o contraste de luz e sombra, todos esses elementos amplificam a tensão e trazem o conflito à vida de forma visceral e só são possíveis de nos atingir no nível em que atingem graças ao áudio-visual.

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Às vezes o conflito é categorizado em arquétipos: personagem x personagem, personagem x sociedade, personagem x natureza e personagem x si mesmo. Essas categorias, no entanto, não são modelos rígidos, mas estruturas flexíveis que os cineastas usam para explorar narrativas mais profundas. Por exemplo, um único filme pode entrelaçar perfeitamente vários tipos de conflito, criando camadas de significado e complexidade emocional. Veja “O Poderoso Chefão”, onde a lealdade familiar entra em choque com a moralidade pessoal, ou “Parasita”, onde o conflito de classes ocorre tanto no âmbito físico quanto no psicológico. A capacidade do cinema para a narrativa visual permite que esses conflitos ressoem em um nível primal, evocando empatia, tensão e catarse no público.

Porém, apesar de definir o conflito no cinema parecer instrutivo (ou intuitivo?), isso não é suficiente. Que tal examinar também seus fundamentos filosóficos e sua habilidade de jogar luz em verdades universais sobre a natureza humana?

A Filosofia do Conflito

O conflito sempre foi um tema presente na filosofia, sendo abordado de diversas maneiras ao longo da história. Os filósofos pré-socráticos, por exemplo, exploraram a ideia de que a realidade é composta por oposições e tensões. Heráclito de Éfeso, em particular, afirmou que o conflito é essencial para a harmonia do universo, resumido em sua máxima: “A guerra é o pai de todas as coisas”.

“A guerra é o pai de todos e o rei de todos; e a alguns ela manifestou como deuses, a outros como homens; a alguns fez escravos, a outros livres.”

No contexto da filosofia moral e política, o conflito é frequentemente analisado em termos de disputas éticas, sociais e políticas. Friedrich Nietzsche criticou a moralidade tradicional, argumentando que ela reprime os instintos humanos e cria um conflito interno. Ele via Sócrates como um símbolo dessa moralidade racionalista que, segundo ele, sufocava a vitalidade humana.

Já no cinema, essas ideias filosóficas têm terreno fértil para expressão, uma vez que os cineastas lidam com temas de luta existencial, ambiguidade moral e a busca por identidade. O impacto sensorial do cinema permite que os diretores explorem essas ideias abstratas de maneiras acessíveis e profundas. Por exemplo, Thomas Hobbes, um conhecido filósofo inglês, descreve o que ele chama de “estado de natureza” algo onde a vida é caracterizada por um conflito incessante. Em sua famosa obra Leviatã, Hobbes descreve o estado natural da humanidade como uma guerra perpétua — uma luta pela sobrevivência contra ameaças externas e impulsos internos. O cinema também reflete essa visão, retratando personagens presos em ambientes hostis ou lutando contra seus próprios instintos mais sombrios. “Mad Max: Estrada da Fúria” e “Apocalypse Now” são exemplos interessantes que retratam essa luta, mergulhando os espectadores em mundos onde o conflito não é apenas inevitável, mas essencial para a sobrevivência dos personagens.

Hobbes também diz que estruturas sociais existem para suprimir os instintos mais primitivos da humanidade e manter a ordem. Essa tensão entre liberdade individual e controle coletivo é também um tema interessante no cinema e acho que ela é muito bem explorada, por exemplo, em “Matrix”, um filme que chama o público para refletir sobre sua própria relação com a autoridade, a rebeldia e o profundo desejo humano de autonomia. Por meio do conflito, o cinema questiona os limites da moralidade e o custo de manter a ordem, desafiando os espectadores a confrontar verdades não tão agradáveis sobre si mesmos e sobre o mundo.

Existem Narrativas Sem Conflito?

Lembra que falei que o conflito nem sempre precisa se manifestar como violência ou antagonismo explícito? Quero agora voltar nesse ponto, pois uma coisa legal é que nem todos os cineastas e teóricos concordam com a necessidade do conflito na narrativa. O que me surpreende de certa forma. Alguns argumentam que o cinema pode prosperar sem o conflito tradicional, baseando-se em estruturas narrativas alternativas para envolver o público. “Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles” é um exemplo icônico de narrativa que explora o tempo e a repetição. O filme acompanha os rituais diários de uma dona de casa, destacando o tédio e a opressão da rotina, sem eventos dramáticos óbvios, “rejeitando” a ideia de que o drama precisa ser impulsionado por conflitos explícitos. Em Jeanne Dielman, a tensão é construída de forma quase invisível, através de pequenas mudanças na rotina da protagonista. O filme sugere que o mundano e o repetitivo também podem ser profundamente significativos e que há uma narrativa no próprio ato de existir.

Outro exemplo são os filmes de Hayao Miyazaki, que frequentemente utilizam essa estrutura, evitando antagonistas convencionais em favor de uma narrativa mais gentil e contemplativa. Em “Meu Amigo Totoro”, por exemplo, o enredo se desenrola sem um conflito central, concentrando-se na beleza silenciosa da vida cotidiana e no encanto da infância. O filme é impregnado de um senso conhecido como “mono no aware”, a apreciação da transitoriedade e da beleza das coisas simples e, apesar da ausência de um conflito central, “Meu Amigo Totoro” é profundamente emocional. É uma história que transmite conforto, segurança e nostalgia, mostrando como, de certa forma, o cinema pode trazer respostas emocionais sem a tensão de forças opostas.

No entanto, ainda assim, mesmo nessas narrativas mais “leves”, pode-se dizer que o conflito não desaparece completamente, mas assume formas mais sutis. O contraste entre o comum e o extraordinário, a tensão entre tradição e modernidade, esses elementos ainda estão lá e criam uma espécie de dissonância interna que impulsiona a história. Essas narrativas mostram que o conflito não precisa ser sinônimo de confronto explícito ou antagonismo direto. Em vez disso, ele pode ser algo mais íntimo, filosófico ou existencial. Ou seja, embora possa não se alinhar às definições tradicionais de conflito, esses elementos destacam a adaptabilidade do conceito e sua capacidade de assumir novas formas em diferentes contextos culturais.

Espelho da Condição Humana

Enfim, acho que isso responde à pergunta inicial sobre o lugar e o papel do conflito nos filmes e suas narrativas, mas se o conflito é central para o cinema, o que então ele revela sobre a experiência humana? Bem, em sua essência, ele serve como um espelho, que reflete nossas lutas, aspirações e medos. O conflito permite que os cineastas explorem a profundidade das emoções humanas e das nossas escolhas morais, oferecendo ao público a oportunidade de se ver nos personagens na tela e de se ver dentro do conflito representado ali – os desejos que os movem, as barreiras que eles enfrentam e também as escolhas definem aqueles personagens.

Se formos olhar para mais filmes, em “A Vida é Bela”, vamos ver que o conflito entre a crueldade da guerra e o desejo de proteger a inocência de uma criança reflete a capacidade humana de encontrar beleza em meio à maldade e crueldade. “Encontros e Desencontros”, de Sofia Coppola, um filme lindo, apresenta um conflito interno — o vazio existencial dos protagonistas — como catalisador para momentos de conexão humana e autoentendimento. Isso ilustra como grandes diretores utilizam o conflito para criar histórias que ressoam entre culturas e gerações. Seja nas batalhas de Star Wars ou até mesmo no silêncio delicioso de Encontros e Desencontros, o conflito é o motor que acaba impulsionando a narrativa, desafiando os personagens a crescerem e o público a refletir. Dessa forma, o cinema se afirma ainda mais como uma ferramenta para compreender a nós mesmos e o mundo ao nosso redor.

Portanto, o conflito no cinema não é só mais um dispositivo narrativo, mas uma investigação filosófica, através da qual aprendemos a lidar com a natureza da existência, da moralidade e com a eterna questão do que significa ser humano. Pelas lentes do conflito, vemos o cinema não apenas como um reflexo da vida, mas como uma parte primordial da conversa contínua sobre quem somos e quem desejamos ser.

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Material de Referência

  1. Portal Terra, “Um enigmático pensador grego, chamado de ‘o obscuro’, explica a disparada das guerras no mundo hoje”
  2. educa.fcc.org.br/, “A DISPUTA DE NIETZSCHE COM SÓCRATES E SEUS EFEITOS PARA A EDUCAÇÃO”
  3. Wikipedia, “Heraclitus”
  4. Film School Rejects, “A Conversation about Miyazaki’s My Neighbor Totoro”

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