Jordan Peele e Afrofuturismo: Reimaginando a Experiência Negra no Cinema
Jordan Peele é um dos cineastas mais influentes dessa geração e um dos meus favoritos. Como cineasta, ele tem usado sua plataforma para explorar questões raciais, de identidade e poder, especialmente nos Estados Unidos, mas, claro, isso se expande de forma muito mais ampla. Embora seu trabalho abranja vários gêneros, é comum o uso de elementos do Afrofuturismo em seus filmes, combinado evidentemente com sua maestria no horror psicológico e no comentário social, o que o diferencia como uma figura transformadora no cinema moderno. Seus filmes são sempre comentados por sua originalidade, não apenas pelos enredos de gênero, mas também pela exploração profunda da experiência negra sob a ótica da ficção.
O que é o Afrofuturismo?
Bom, antes de qualquer coisa, acho que vale a pena pontuar um pouco da história africana e da escravidão, entendendo o que é a diáspora africana. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, o termo diáspora tem a ver com dispersão e refere-se ao deslocamento, forçado ou não, de um povo pelo mundo. Foi largamente utilizado para nomear os processos de “dispersão” dos judeus entre os séculos VI a.C. (cativeiro na Babilônia) e o século XX (perseguições na Europa). Além da diáspora judaica, outros processos diaspóricos são importantes para a compreensão das relações históricas e sociais entre os povos ao longo do tempo. Nesse sentido, é importante para nós, enquanto brasileiros e latino-americanos, destacar a diáspora africana.
A diáspora africana é o nome dado a um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nesses fluxos forçados, embarcavam nos tumbeiros (navios negreiros) modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar a construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que, durante todo o período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas, dos quais cerca de 5 milhões tiveram como destino o Brasil.
Entendendo esse conceito, o Afrofuturismo define-se como um movimento cultural e artístico que combina ficção científica, história, fantasia e a cultura da diáspora africana para imaginar futuros alternativos para os negros. O termo foi cunhado pelo crítico cultural Mark Dery no início dos anos 1990, mas o próprio gênero existe há muito mais tempo nas obras de escritores como W.E.B. Du Bois, Sun Ra, Octavia Butler e outros, que usaram a ficção especulativa para desafiar as narrativas dominantes sobre raça, identidade e tecnologia. O Afrofuturismo oferece uma visão alternativa, onde as pessoas negras não são limitadas pelos legados traumáticos da escravidão, do colonialismo ou do racismo, mas são livres para explorar possibilidades futuristas que refletem sua riqueza cultural, resistência e potencial.
Em seu núcleo, o Afrofuturismo rejeita a marginalização das pessoas negras nas narrativas mainstream, criando novos espaços para que as experiências negras prosperem. Ele usa gêneros especulativos, como ficção científica e fantasia, para construir histórias nas quais os personagens negros não apenas sobrevivem, mas prosperam em mundos imaginativos, enfrentando desafios e superando obstáculos que lhes foram anteriormente negados na mídia tradicional.
Jordan Peele e a Reinterpretação da Experiência Negra
O trabalho de Jordan Peele não está estritamente restrito aos parâmetros do Afrofuturismo, mas incorpora muitos dos principais temas do movimento, como a retomada da identidade negra, o uso da ficção especulativa para criticar as estruturas sociais e a exploração de como as pessoas negras ocupam espaços que historicamente as excluíram ou oprimiram. Seus filmes utilizam consistentemente elementos de gênero, principalmente o horror psicológico, o suspense e a ficção científica, para justamente confrontar as tensões raciais e oferecer uma reinterpretação radical de como os personagens negros interagem com o presente e com o futuro. A ideia deste texto é explorar essas características em sua filmografia.
Corra! (“Get Out”), 2017
A estreia de Jordan Peele no cinema ocorreu com o filme Corra!. Se você nunca assistiu, recomendo que procure ver o mais rápido possível, pois é uma obra-prima! Um dos meus filmes favoritos, com toda certeza. Corra é uma mistura excelente de horror psicológico e comentário social, explorando os efeitos do racismo e as consequências do liberalismo branco. Nessa história, acompanhamos Chris, um homem negro, que, ao visitar a família de sua namorada branca, acaba descobrindo um plano sinistro para roubar os corpos de pessoas negras e usar suas consciências — o seu, inclusive. Embora o filme se passe em um cenário contemporâneo, sua premissa especulativa, junto com a exploração da exploração racial, alinha-se aos temas do Afrofuturismo, que envolvem confrontar o passado e imaginar futuros alternativos para as pessoas negras.
De muitas maneiras, Corra! pode ser visto como uma narrativa afrofuturista porque pega elementos de ficção científica, como lavagem cerebral, e os aplica a um contexto racial real, imaginando um futuro onde os corpos negros são mercantilizados e subjugados. Portanto, o filme critica a desumanização das pessoas negras na sociedade, levantando questões sobre como os sistemas de poder exploram os corpos negros para seu próprio benefício.
Nós (“Us”), 2019
Em seu segundo filme, Nós, Peele vai mais fundo nas consequências psicológicas e sociais da identidade racial, usando o gênero de horror para explorar a dualidade da natureza humana. O filme se passa em uma família negra que é aterrorizada por uma versão doppelgänger de si mesma — os “Tethered”. Um doppelgänger, caso você esteja se perguntando, é como um gêmeo que não é realmente seu gêmeo. É alguém que parece exatamente com você, mas não é da sua família. Imagine encontrar alguém que tem o mesmo rosto que você, mas é um estranho – isso é um doppelgänger. Assim como em Corra!, Nós brinca com temas de divisão social, mas também expande o conceito do Afrofuturismo ao incorporar ideias sobre identidade pessoal e coletiva, sobrevivência e as forças opressivas que criam hierarquias sociais.
Os Tethered podem ser vistos como as partes reprimidas e negligenciadas da sociedade, uma metáfora para a maneira como os grupos marginalizados, particularmente os negros, muitas vezes são forçados a viver às sombras da ordem social dominante. O horror do filme surge da percepção de que essas versões oprimidas de nós mesmos estão sempre à espreita, esperando a oportunidade para se erguer. O que acontece quando os marginalizados, os invisíveis, exigem reconhecimento e igualdade? É o que o filme questiona.
Nós é muito bom! O filme situa a história nesse futuro especulativo, onde os Tethered foram criados e abandonados pelo governo. Jordan Peele toca em ideias do Afrofuturismo sobre uma sociedade na qual a experiência negra fica às margens — o assustador é que isso não é ficção. É uma narrativa interessante sobre as maneiras como as pessoas negras foram historicamente silenciadas, mas agora reivindicam seu poder.
Não! Não Olhe! (“Nope”), 2022
O filme mais recente de Jordan Peele, Nope (vou usar o nome original), leva os limites do gênero ainda mais longe, misturando ficção científica, horror e faroeste de uma maneira que desafia as formas cinematográficas tradicionais. A história segue um irmão e uma irmã negros, OJ e Emerald, que administram um rancho de cavalos e se envolvem no mistério de um OVNI que aparece no céu acima de sua casa. Embora Nópe incorpore elementos de invasão alienígena, o filme também usa o conceito de espetáculo, particularmente a experiência negra em Hollywood, como um dispositivo narrativo central.
Em Nope, Jordan Peele critica a exploração dos corpos negros na indústria do entretenimento. Os esforços dos personagens para capturar imagens do OVNI podem ser vistos como uma metáfora para a maneira como as pessoas negras foram historicamente exploradas em função de entretenimento, com suas histórias muitas vezes usadas em benefício de outras pessoas e interesses. O filme também explora a relação entre trauma e espetáculo, posicionando os personagens como participantes e observadores de suas próprias histórias, assim como os afro-americanos historicamente foram objetificados e mercantilizados na mídia mainstream.
Não é como se Nope fosse explicitamente sobre Afrofuturismo, mas é um filme que abraça os temas do movimento ao questionar tanto o passado quanto o futuro. O OVNI em Nope é uma força de outro mundo, algo que, pensando no estilo afrofuturista, interrompe o status quo, forçando os personagens (e a audiência) a refletirem sobre seu lugar em um universo que muitas vezes os exclui.
Afrofuturismo e o Legado de Jordan Peele
Se você gosta de estudar ou acompanhar a filmografia de diretores específicos, Jordan Peele é uma ótima escolha. Especialmente porque ele é um diretor moderno, que consegue dialogar bem com uma nova geração. Sobre o Afrofuturismo, esse é um tema interessante de se conhecer, e os filmes de Jordan Peele contribuem de forma significativa tanto para o tema quanto para a cultura pop. Pelo seu uso de filmes de gênero que centralizam personagens e perspectivas negras, Jordan Peele está ajudando a redefinir a maneira como as pessoas negras são representadas na ficção especulativa. Cinema é para isso também. De muitas formas, seu trabalho ecoa o objetivo do movimento afrofuturista de criar um futuro onde as pessoas negras não apenas sobrevivem, mas prosperam, onde elas estão no controle de suas próprias narrativas, não mais relegadas às margens ou definidas por seu trauma histórico.
Acredito que existam muitas possibilidades ainda para explorar o Afrofuturismo no cinema, usando a ficção especulativa não apenas para entreter, mas também para engajar questões políticas, culturais e sociais que refletem a experiência negra. Reimaginar o futuro de maneiras que representam de forma honesta as complexidades da identidade negra é abrir um espaço para que o Afrofuturismo floresça no cinema mainstream, oferecendo novas e radicais formas de pensar sobre raça, poder e o futuro. Jordan Peele tem potencial e reconhecimento para tal.
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