Cinema

A Pior Pessoa do Mundo e a Dolorosa Jornada da Autodescoberta

É escancarado o fato de que nos encontramos em uma geração presa nas teias da indecisão, lutando com as complexidades que a vida traz junto com a jornada de envelhecer, especialmente quando estamos por volta dos 30 anos. É como se o peso das expectativas aumentasse a cada ano que passa. As vozes insuportáveis da sociedade, da família e até das nossas próprias dúvidas internas acabam se tornando uma pressão enorme dentro da gente. Essa é uma fase da vida em que parece que tudo já deveria estar resolvido: uma identidade bem definida, um emprego legal e a maldita estabilidade financeira. Enfim, a famosa “crise dos 30” – ou qualquer que seja o nome que exista para isso.

No meio desse caos, é normal nos sentirmos presos em um labirinto de incertezas internas. Os sonhos da infância são comparados com a realidade da idade adulta e a gente nunca sabe se estamos realmente no caminho certo. É assustador em um nível, eu diria, lovecraftiano.

Os noruegueses possuem essa frase, “verdens verste menneske“. Se você sente que não está correspondendo às suas expectativas ou se fez algo que magoou alguém, mesmo que por acidente, você diz: “Sou a pior pessoa do mundo”. E isso inspirou uma história bem legal.

A Pior Pessoa do Mundo“, dirigido pelo norueguês Joachim Trier em 2021, é um filme que explora profundamente essa sensação de indecisão, complexidade e pressão em relação à vida por volta dos 30 anos. O filme se passa em Oslo, na Noruega, e acompanha a vida de Julie, uma jovem adulta que está lutando para encontrar seu lugar no mundo, explorando diferentes relacionamentos, carreiras e identidades em 12 capítulos.

Eu realmente achei muito interessante a forma como esse filme representa esse sentimento meio que de ansiedade que temos na transição dos 20 para os 30 anos. Esse é um período da vida em que as coisas se tornam menos “ilimitadas” e a gente percebe que as escolhas que fazemos têm sérias consequências a longo prazo. É também onde geralmente começamos a perceber que estamos envelhecendo. E tudo isso podemos enxergar em Julie e sua jornada.

Em Busca de Sentido e Satisfação

Julie é uma personagem oprimida por esses sentimentos estranhos dessa fase da vida, ela encarna essa insatisfação mas, ao mesmo tempo, não sabe como ficar satisfeita. Talvez por isso ela se entrega à Aksel, um cartunista com mais de 40 anos, com carreira reconhecida e uma vida estável. Julie enxerga em Aksel uma possibilidade de encontrar as respostas que tanto busca para as perguntas que ela nem sabe como formular. Ela está em uma fase de busca de identidade e autoconhecimento, e Aksel, com sua estabilidade, pode ser também um guia nesse processo. Não que não exista amor por parte de Julie, mas seu desejo de se auto encontrar junto com outra pessoa é evidente. E é perceptível que Aksel também sente um grande carinho por ela.

Obviamente, as respostas para as perguntas mais profundas sobre a nossa vida e a felicidade não podem ser encontradas exclusivamente em outra pessoa. Primeiramente, a relação entre Julie e Aksel é marcada pela diferença de idade e pelos estágios diferentes em que estão em suas vidas. Aksel deseja ser pai e já alcançou um certo nível de estabilidade em sua carreira e vida pessoal. Julie está em outra vibe, com dúvidas sobre sua identidade e sua própria carreira. Essas diferenças criam um conflito que torna difícil para que ela possa se sentir à vontade com seu relacionamento. Isso fica mais latente em uma resenha numa casa de verão, onde os amigos de Aksel conversam com ela sobre filhos, perguntam sobre seu trabalho, o que ela quer da vida. Cada pergunta é uma gota a mais de ansiedade antes de Julie transbordar.

Julie anseia por um refúgio, por um espaço onde ela não seja constantemente confrontada com essas perguntas que amplificam sua ansiedade. É esse desejo interno que a faz invadir uma festa de casamento em busca de sentir algo diferente e acabar conhecendo Eivind. Quando eles conversam pela primeira vez, Julie exerga nele esse lugar mágico. Eivind não faz perguntas. Ela não precisa pensar sobre quem ela é, sobre seus fracassos, sua insatisfação. Eivind não a desafia nem coloca pressão sobre nenhuma de suas decisões. Julie se sente livre. Seu encontro com Eivind oferece a ela uma pausa das complexidades e pressões da vida adulta, permitindo-lhe viver intensamente aquele presente. Esse encontro durou uma noite onde, apesar da tensão sexual absurda entre os dois, ambos concordaram em dizer que, “tecnicamente”, nada ali foi traição.

Quando Julie retorna à sua realidade, o contraste com o que acabou de viver fica ainda maior. Em seu aniversário de 30 anos, ela examina as paredes de sua mãe, que estão cheias de fotos de sua árvore genealógica. Aos 30 anos, segundo a narração do filme, a avó de Julie já tinha três filhos. Sua bisavó tinha seis. Sua tataravó tinha sete, dois dos quais já haviam morrido de tuberculose. Ela simplesmente não se vê encaixada nisso. Na real, Julie não se encaixa em muita coisa, como ela mesmo escreve em seu artigo publicado “sexo oral em tempos de #metoo“.

É interessante notar também como a sua relação com a própria família é meio distante. Na comemoração de seu aniversário, seu pai não pôde ir alegando dores nas costas. Cenas depois, a meia irmã de Julie revela por acaso que seu pai foi ao seu jogo de futebol, que ocorreu no dia do aniversário de Julie. Ele não poderia se importar menos com ela. Como se isso não bastasse, Julie pergunta se ele leu seu artigo e ele diz que não, pois não conseguiu abrir o link (oi?). O filme não deixa claro se ele realmente leu ou não, talvez tenha lido e optado por apagar aquilo de sua consciência. E acho que Julie sabe disso. Ela consegue ver através de seu pai, mas é incapaz de confrontá-lo. E para completar o constrangimento, Aksel tenta “ajudar” na situação dizendo coisas como: “Você tem que ler esse artigo. É realmente muito bom”. Segue então um show de desculpas esfarrapadas do pai de Julie até que Aksel sugere que ele os visite em Oslo e, novamente, mais desculpas para não ir. Ele nunca irá. Ele não tem respeito pela filha, e Julie sabe disso.

É claro que aquele encontro com Eivind representou um impacto muito grande na vida de Julie. É claro que essa sensação de viver algo intenso com alguém que a entenda e que a faça se sentir viva de verdade mexeu com ela. E é claro que ela voltaria correndo para os seus braços na primeira oportunidade. E o mundo literalmente para enquanto ela corre para saciar essa vontade.

Julie opta por terminar com Aksel e iniciar uma nova vida junto à Eivind, o cara que reascendeu alguma coisa dentro dela. Ela acredita que ela e Aksel foram vítimas de um momento errado. Eles se conheceram em diferentes fases da vida e por isso agora precisam de coisas diferentes.

Mas Eivind é a chave para sua felicidade ou é só mais uma das fugas que Julie faz de si mesmo? Como diria Dr House: “você sabe o que quer, mas foge do que precisa“.

Além da ‘metade da laranja’

Esse filme tinha tudo para ser um drama sobre relacionamentos ou sobre encontrar a pessoa perfeita. Sua “metade da laranja”. Isso porque Eivind é meio que esse cara. Ele é divertido, ousado, intrigante e também tem um relacionamento que não desperta tanta emoção nele. É como se, de verdade, fossem um feito para o outro. Mas esse filme é sobre alguém em uma jornada de autoconhecimento, e ele é muito bom em contar essa história. Então, eu retomo minha frase anterior: as respostas para as perguntas mais profundas sobre a nossa vida e a felicidade não podem ser encontradas exclusivamente em outra pessoa.

A nova história de Julie junto a Eivind me parece muito mais uma válvula de escape do que algo intimamente profundo. Não é de surpreender que eles concordem em não ter filhos. Eivind também tem seus problemas internos, seu pai ainda o vê como uma criança. Além disso, ele ainda segue a ex no Instagram. Por mais que eu ache que isso não seja um problema por si só, é compreensível a reação de Julie ao descobrir isso – “não quero ser a escolha sensível enquanto ela é a escolha sexy“. Mas também não acho que a resposta de Eivind tenha sido a mais inteligente: “não há nada de sensível em você“. Enfim…são só achismos.

Um momento importante na jornada de autodescoberta de Julie ocorre em um reencontro com os amigos de Eivind. Eles discutem como Julie é o centro das atenções enquanto dança, e ela gosta disso. No entanto, me parece que ela está muito mais buscando validação externa e vivendo em um ambiente que ela própria criou do que trabalhando para ser alguém mais autêntica.

Julie precisa passar um tempo consigo mesma para encontrar algo em que possa se orgulhar, em vez de depender da validação de outros, especialmente do círculo de amigos de Eivind. Ela tem um puta potencial para ser uma pessoa de grande valor para si mesma e para o mundo, mas parece estar se desviando desse caminho. Até que ela resolve experimentar alguns cogumelos alucinógenos que Eivind mantinha guardado em segredo. E isso deixa tudo ainda mais complexo.

Julie tem alucinações onde se vê velha, gorda e enrugada. O efeito dos cogumelos faz com que ela enxergue muitas pessoas se servindo de seu corpo em decomposição. Os cogumelos revelaram os anseios mais profundos de Julie.

Envelhecer faz parte, mas não é algo fácil de lidar. Talvez o primeiro passo seja aceitar que você não pode mais ficar ligado ao passado. As gerações mudam, as pessoas mudam e as mentalidades também mudam. O que era legal antes, talvez tenha se tornado antiquado hoje. E cara, tudo bem. A gente precisa saber aceitar quando não nos encaixamos mais em alguma coisa.

Eventualmente, Julie vê Aksel dando uma entrevista na TV, onde uma jovem o critica pelo teor de seu trabalho artístico, dizendo que ele usa de alguns elementos um tanto machistas para expressar sua opinião através da arte – “Estamos discutindo seu trabalho agora, então ninguém está censurando você. Como mulher, estou chateada. Estou ofendida, embora você não deva dizer isso”, diz a entrevistadora. Claro que isso fere o ego de Aksel como artista e eu até entendo sua chateação naquela situação, mas existe um claro gap geracional entre os dois, onde Aksel parece não entender seu erro em suas respostas, já que a jovem não está nem um pouco interessada em ouvi-lo, muito menos em entender o que ele quer dizer.

– “Eu quero que a arte seja uma forma de terapia onde posso expressar e trabalhar todos os meus pensamentos inaceitáveis, todos os meus impulsos mais sombrios”

– “Mas você está usando seu privilégio masculino para zombar de pessoas mais fracas que você. Dificilmente é arte ou mesmo humor.”

Talvez por empatia ou identificação, sei lá, mas o “cancelamento” de Aksel mexeu bastante com Julie. Ela para o que está fazendo e presta toda a atenção à entrevista, numa admiração diferente da de quando estava decidida a deixar Aksel por Eivind. É a primeira vez que vemos Julie sentir empatia real por outra pessoa.

O capítulo em que Julie finalmente “acorda” se chama “Primeira pessoa no singular”, e acho que esse nome faz muito sentido. Se trata do “eu” que Julie precisa cuidar. Como já disse antes, ela precisa de um tempo para si mesma, precisa entender o que se passa dentro dela e não buscar validações em outros homens ou em seu pai que não liga para quem ela é ou tem se tornado. Claro, existe também um aspecto importante narrativamente aqui, por escolha do diretor. Nós não sabemos muita coisa sobre quem é a Julie. Tipo, ela não tem, sei lá, uma amiga? Opiniões políticas ou algo do tipo? Alguma coisa que ela goste de fazer, qualquer coisa? Essa é uma escolha narrativa do diretor, talvez para nos fazer pensar sobre um setor específico de millennials que estão amadurecendo em um mundo de redes sociais, egocêntricos e que sentem que o mundo lhes deve algo (mesmo que não tenham feito nada de relevante na vida). Digo isso porquê eu faço parte dessa geração.

Mas nem sempre a gente “acorda” para a vida da melhor forma possível. Julie estava trabalhando na livraria quando recebeu a notícia de que Aksel está com câncer no pâncreas e é visível sua preocupação com ele. Tanto é que ela começa a se questionar sobre porquê ela escolheu Eivind ao invés de Aksel. Ela acaba discutindo com Eivind posteriormente, mas ela não o odeia: ela se odeia por não ter tido coragem de tentar consertar as coisas com Aksel, a quem ela traiu e trocou por um cara que é não necessariamente uma pessoa má – ele simplesmente está lá, mas não está, ou pelo menos não para ela. E Aksel, que sempre estave lá para ajudá-la, agora está morrendo.

As voltas que a vida dá

Uma coisa que aprendi vendo BoJack Horseman é que a vida sempre continua e a gente precisa fazer as pazes com o passado. Você vai sempre precisar enfrentar alguma coisa e imprevistos sempre vão acontecer. Às vezes essas coisas acontecem para nos mudar de patamar, basta a gente querer enxergar isso. Julie descobre que está grávida. Ironicamente, esso era um dos motivos pelos quais ela não estava contente com Aksel: Ele queria ter filhos, ela não, ou pelo menos não num futuro próximo. Além disso, ela e Eivind concordaram em não ter filhos, o que deixa essa situação ainda mais complicada. Sua vida parece estar perdendo o rumo de vez. Julie está enfrentando problemas que são bem sérios e não apenas motivados pelo ego ou vontade interna de se encontrar. Mas é como falei anteriormente: às vezes certas coisas acontecem para nos mudar de patamar. E elas mudam.

Julie tem problemas não resolvidos com Aksel, então faz uma visita a ele no hospital. Apesar de todos os sentimentos de insegurança dela em relação a ele no passado, Aksel sempre a aceitou como ela era e nunca a julgou realmente. A bússola moral de Julie finalmente funciona na direção certa e há dignidade, compaixão e respeito mútuo na forma como Julie e Aksel interagem no hospital. O tempo que passam juntos ali confirma como ambos se preocupam profundamente um com o outro e que é possível se comunicarem de uma forma aberta, honesta e sem julgamentos. Falam das suas diferenças que, em vez de serem uma fórmula para o desastre, poderiam ter sido um complemento um para o outro. E daí se ele for um pouco mais velho se ela pudesse fazê-lo se sentir jovem e nunca desistir? E daí se ela for menos “culta” se ele pudesse fazê-la sentir vontade de crescer?

Aksel também tem seus problemas, não só com o câncer. Ele se tornou um homem que só consegue olhar para trás, preso ao seu passado e, agora, sem perspectiva. Ele reflete sobre como ele ‘parou’ de absorver uma nova cultura à medida que envelhecia, como o próprio meio havia mudado e como ele é incapaz de se conectar emocionalmente com a arte como fazia quando tinha 20 anos. E isso tem muito a ver com sua entrevista na TV: A “cultura” em que ele fez seus quadrinhos já não existe mais, sua arte agora é interpretada de forma diferente por pessoas que não faziam parte daquela cultura quando ela foi feita. É pesado e triste ver como Aksel está ligado à isso e vai provavelmente morrer assim. Julie, por outro lado, tem reconhecimento e gratidão pelo que eles representam um para o outro. Embora Aksel só possa olhar para trás, a visita dela é um grande presente para ele, que poderá levar para o resto de sua breve existência. E ao revelar que está grávida e que não sabe se se sente bem ou mal com isso, Julie recebe uma resposta carregada de puro amor:

“Se tenho uma coisa que me arrependo é de nunca ter conseguido fazer você ver o quanto você é maravilhosa”

Eu poderia dizer que essa é uma daquelas frases transformadoras, não pela frase em si, mas pelo momento e contexto em que ela foi dita. Mas acho que o que realmente mudou a chave interna de Julie em sua conversa com Aksel foi o seguinte diálogo:

Aksel: “Você já o conhecia quando terminou comigo?
Julie: “Sim.
Aksel: “Por que você não me contou?
Julie: “Não sei. Eu não ousei.
Aksel: “E agora você está terminando com ele?
Julie: “Não, por que você diz isso?
Aksel: “Talvez porque você não parece feliz com o bebê…E é isso que você faz quando as coisas ficam difíceis”.

É poético e bonito que esse tenha sido o último encontro entre os dois. Julie retorna e revela a Eivind que está grávida. Ela pede um tempo para si mesma. Em outras palavras, ela realmente terminou com Eivind, como Aksel previu, mas desta vez não para encontrar validação em outra pessoa. Quando Julie diz que precisa de um tempo, aquilo é de verdade. Talvez pela primeira vez ela tenha tomado uma decisão da qual ela tem a total certeza.

A pior pessoa do mundo

Esse filme, como disse no começo, é gravado em Oslo, que é inclusive uma cidade próxima de onde moro atualmente, na Suécia. O clima é quase sempre frio por aqui mas, ao fim desse filme, você pode sentir o calor de Julie como uma nova pessoa. Aksel se foi e Julie sangra no chuveiro: ela tem um aborto espontâneo. No fim, ela não está grávida. Ela agora está livre. Este não era o momento de sua vida para se tornar mãe, e Eivind não era o pai que ela desejaria, sinceramente falando. Ter um filho é uma das maiores decisões que alguém pode tomar na vida. Aksel se foi, mas o que ela aprendeu sobre si mesma, em parte por causa dele, permanecerá com ela para sempre.

Julie finalmente não se sente mais como a pior pessoa do mundo. Ela vai ficar bem. Não porque o filme precisa de um final feliz, mas sim porque este é um filme que quer nos ensinar que podemos viver uma vida melhor se tivermos a coragem de reconhecer nossos erros e levantar a cabeça. Talvez não haja como explicar Julie, mas com certeza podemos olhar sua história mais de perto e com mais compaixão.

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