Ensaios

Ninguém sai ileso de ninguém

Por mais cuidadosos que sejamos, por mais blindados que nos sintamos, viver é um constante exercício de impacto. Entramos e saímos das vidas uns dos outros como quem atravessa uma ponte: às vezes com pressa, outras com reverência, mas quase sempre deixando alguma marca no caminho. O amor, o afeto, a raiva, o silêncio, a ausência. Tudo toca. Tudo altera.

Porque no fim das contas, ninguém sai ileso de ninguém.

A ideia de que somos inteiros, imunes, prontos, como se o outro pudesse nos encontrar em estado finalizado, é um equívoco moderno, alimentado por manuais de autossuficiência emocional e discursos de invulnerabilidade afetiva. Mas a verdade é mais crua e menos palatável: as pessoas nos atravessam. E doem. E curam. E deixam cacos e colam outros. Somos feitos disso, de encontros que desorganizam, de presenças que reorganizam.

Cada relação é uma arquitetura precária: construída sobre a memória, sustentada por desejos e ruindo lentamente sob o peso das expectativas. E mesmo que dure pouco, mesmo que se dissolva em silêncio ou grito, ela nos transforma. Uma frase mal dita. Um gesto de cuidado. Um abandono. Uma entrega. Nada passa por nós em branco. Cada pessoa que nos toca, mesmo sem intenção, reorganiza alguma coisa em nós. Às vezes, sem que a gente perceba, até que seja tarde demais.

Não se trata de romantizar o sofrimento ou endeusar o trauma. Trata-se de reconhecer que o outro existe em nós de maneiras que nem sempre podemos controlar. Há pessoas que deixaram em nós marcas invisíveis, mas profundas. Outras nos ensinaram o limite do que suportamos. Há quem nos tenha revelado nossa própria ternura. E há os que, sem saber, nos ensinaram o preço da negligência.

E, claro, também fazemos isso com os outros. Nossos silêncios, nossa pressa, nossa fragilidade, tudo isso atravessa o outro. Ninguém é inocente. Ninguém é invulnerável. Amar, odiar, cuidar ou ignorar: todas são formas de deixar uma impressão digital em alguém.

A grande ilusão talvez seja acreditar que o tempo resolve, apaga ou anula. O tempo só reorganiza a dor, ele não a cancela. A ausência não cura. O distanciamento não apaga. As pessoas permanecem em nós por muito mais tempo do que duraram fora de nós. Às vezes, um olhar de 5 segundos se aloja por anos. Às vezes, um amor de 10 anos desaparece sem deixar vestígios, mas até esse desaparecimento deixa uma ausência moldada com precisão.

No fim, resta encarar com honestidade: viver é ferir e ser ferido. É aprender a nomear cicatrizes e a reconhecer que até o amor mais gentil pode deixar hematomas. Mas também é compreender que, mesmo feridos, seguimos. Crescemos. Nos reconstituímos. E que, apesar disso (ou justamente por isso) ainda escolhemos continuar encontrando o outro.

Porque viver sem impacto seria não viver.

E ninguém, absolutamente ninguém, sai ileso de ninguém.

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