Pegue um café, sente-se em um lugar legal e bora trocar uma ideia sobre samurais e Vagabond!
Já leu Vagabond? Eu sempre gostei muito de histórias de grandes guerreiros, mitologias, esse tipo de coisa. Talvez seja coisa de moleque ou um daqueles pensamentos que você constrói quando criança, não sei bem a influência ou origem desse gosto na real, mas sempre foi algo que me chamou a atenção. E provavelmente a classe de grandes guerreiros que eu mais gosto são os Samurais.
Ok, idealisticamente falando, todos sabem o que é um samurai ou pelo menos conseguem desenhar a imagem de um cabeça. “Grandes guerreiros com armaduras e espadas se matando em algum canto do Japão“. Não digo que essa é uma analogia errada por que, para várias coisas na vida, são os estereótipos que dão a definição. E às vezes está tudo bem. Mas acho que cabe uma breve introdução aqui.
Quem foram esses caras?
Os samurais foram uma classe de guerreiros do Japão feudal. Eles emergiram por volta dos século XII e duraram até o final dos anos 1800. Claro, existem outras versões para essas datas, mas esses dados não são o meu objetivo aqui nesse post. Essa classe surgiu durante um contexto político e de guerra civil importante no Japão. Inicialmente, eles eram contratados como guerreiros privados por donos de grandes terras, mas com o tempo foram ganhando poder e influência, se tornando inclusive uma classe dominante na sociedade japonesa.
Os samurais foram basicamente treinados em artes marciais, arco e flecha, espada e cavalaria. E também usavam armaduras, posavam de guerreiros mesmo. Daí vem essa construção de Samurai que a gente tem na cabeça. Não é atôa.
Mas o mais legal é que eles não eram simplesmente guerreiros brutos e habilidosos na Katana. Além do estilão (com roupas e estilo de cabelo próprio da classe), os samurais também dedicavam um bom tempo à educação e à cultura. Praticavam caligrafia, poesia, arte e seguiam um puta código de etiqueta e conduta, criado por eles mesmos e de nome Bushido.
O legado dos Samurais
Embora essa “Era Samurai” tenha se encerrado ali por volta dos anos 1800, quando o governo japonês começou a se modernizar e centralizar o poder, seu legado continua influenciando a cultura e sociedade japonesa até hoje. E eu continuo amando ler e descobrir coisas sobre eles.
Bom, como qualquer história real da humanidade, os Samurais tiveram também suas cachorradas. Participações em eventos controversos, atitudes questionáveis em relação a seu próprio código, enfim, são vários os problemas que podemos encontrar ao longo da história desses guerreiros. Mas vamos focar nas coisas boas, as quais são minha intenção nessa falação toda aqui.
Ainda que eles não existam mais já faz tempo, existem muitas lições que podem ser aprendidas a partir de seu estilo e conceito de vida:
- Disciplina: Eles eram muito disciplinados, em vários aspectos. Seguiam um treinamento rigoroso e eram conhecidos por um alto padrão de comportamento.
- Honra: Esse era um conceito central no estilo de vida dos samurais. Eles eram totalmente leais a seus lordes, defendiam sua honra e mantinham sua dignidade, mesmo diante das adversidades mais difíceis ou até mesmo da morte.
- Respeito: Os samurais mostravam muito respeito por seus superiores, mas também por seus inimigos e oponentes. Eles entendiam que todos os indivíduos merecem ser tratados com dignidade.
- Coragem: Também eram conhecidos pela bravura e força de vontade diante de seus medos. Lutavam pelo que acreditavam correto, independente da situação.
- Perseverança: Os samurais sempre mostraram muita perseverança e determinação. Esses caras não desistiam nunca, não importasse a dificuldade da tarefa ou quanto tempo fosse levar para alcançar seus objetivos.
- Humildade: Apesar de suas habilidades e status naquela época, os samurais eram (ou buscavam ser) humildes e evitavam ostentações. Eles entendiam que a verdadeira força vem da paz interior e da capacidade de se manter calmo e centrado, mesmo diante dos desafios.
Como eu já mencionei, muita coisa escrota também rolou nesse período, afinal, estamos falando de seres humanos. Mas é fascinante, ao menos para mim, a mentalidade dessa classe como guerreiros. E existiu um samurai que não só elevou tudo o que a classe representa, como também se tornou o mais importante personagem desse estilo de guerreiros.
O maior samurai de todos os tempos
O maior guerreiro dessa classe com certeza foi Miyamoto Musashi. Estima-se que ele viveu entre os seculos 16 e 17. Musashi é o símbolo do Bushido até hoje. Ele começou jovem na espada e aos poucos foi desenvolvendo seu próprio estilo de luta até chegar na sua forma final, onde ele manejava duas espadas ao mesmo tempo em suas lutas. O cara era foda. É dito ainda que ele lutou cerca de 60 duelos, ganhando a maioria, sendo o mais famoso contra Sasaki Kojiro, onde ele venceu usando sua esperteza e seu estilo único de luta.
O Musashi, como todo grande samurai, também se dedicou a arte e a filosofia. Escreveu várias coisas sobre estratégia, artes marciais e, inclusive, possui um livro: “O livro dos cinco anéis“, o qual é um clássico ate hoje.
Enfim, ele foi um samurai extraordinário e deixou um legado bem legal. E é também a principal inspiração do mangaka Takehiko Inoue em sua talvez mais grandiosa obra.
Vagabond
Agora sim o puro suco! Vagabond é uma série em Mangá, não finalizada, escrita e ilustrada pelo Inoue. Sou grande fã desse cara por esse e outros trabalhos, talvez eu fale mais sobre ele depois.
A história é baseada no Musashi e na sua jornada como Samurai. Durante todo o enredo ele passa por diversas transformações, desde a juventude até se tornar um disciplinado e poderoso guerreiro. E enfrenta, claro, muitas batalhas.
Ao longo de toda a história, Musashi confronta seus próprios demônios, incluindo seu passado violento e sua busca por significado na vida. É um personagem complexo e rico em camadas, divido entre sua fome por poder e seu profundo desejo de entender o mundo ao seu redor. O mangá é incrível, o meu favorito da vida e explora todos os temas de samurais, como honra, lealdade, autodescobrimento, etc.
Mas é o lado filosófico de Vagabond e de toda a estrutura que constrói Musashi que me chama mais atenção. Vagabond é muito complexo e aborda muitas coisas, as quais eu inclusive trouxe para a minha vida. Eu sempre quis colocar algumas dessas coisas para fora, então espero que esse post me satisfaça nisso. Toda a jornada do Musashi se passa através de um profundo estudo de autoconhecimento, violência, compreensão e significado da vida. Eu não sou uma pessoa religiosa, então essas questões sempre estiveram fortemente presentes na minha cabeça. Talvez por isso eu tenha me identificado tanto com essa obra. E espero que os pontos que vou abordar aqui tragam algo de positivo para quem ler também.
Autoconhecimento
“Você vê o quão infinito você é?”
Se autoconhecer é talvez uma das coisas mais importantes, principalmente na geração atual. E isso sempre foi uma questão importante para mim também. Nossa transformação como ser humano passa por isso. E autoconhecimento é um dos temas centrais em Vagabond. Musashi sempre buscou sentido para a vida e para suas próprias atitudes e isso se deu por via de uma autoexploração e transformação profundas. No início, o Musashi era apenas um jovem selvagem, tomado por desejo de poder e gloria. Mas tudo mudou quando seu futuro mestre, Takuan, entrou na sua vida.
Takuan ensina a Musashi, que antes se chamava Takezo, que as verdadeiras batalhas são as internas, e essas servem para entendermos nosso lugar no mundo e buscar mais preenchimentos na nossa existência, aprendendo a apreciar mais as coisas simples da vida e as conexões humanas. A medida que vai se conhecendo, Musashi enfrenta suas fraquezas e medos. Luta contra seu passado, seus sentimentos de culpa e a vergonha de quem foi para, finalmente, encontrar paz e aceitação.
Conflitos Internos
“Se você estiver nadando no oceano, nunca perceberá o quão vasto ele é”
A complexidade do Musashi está principalmente no seu dilema interior e na sua vontade profunda e espiritual em vários sentidos de trazer mais luz para si mesmo e para seus passos. Apesar de habilidoso com a katana, as atitudes de Musashi o causavam um certo sofrimento. Suas motivações, seu dilema amoroso, seu ego e medo de falhar, tudo isso colaborou para a construção de um personagem em constante questionamento consigo mesmo e com inúmeras camadas de desenvolvimento.
Ao olhar mais para dentro de si mesmo, Musashi vê além das limitações que ele mesmo construiu e de sua mentalidade única para ser o mais forte. Ele realmente compreende tudo ao seu redor, aceita seus medos e os superam. E este é seu primeiro passo. Porque mesmo que suas percepções fiquem nubladas pela ideia de “vitória”, ele alcançou um senso de grandeza e visão que superou em muito o que ele era antes.
Como já mencionei, Vagabond não é um mangá 100% finalizado, então muitos de seus conflitos também não estão completamente respondidos. Musashi está sempre confrontando seus demônios e talvez isso faça parte do processo de crescimento de qualquer pessoa. O caminho para a paz interior, para o autoconhecimento, é muito difícil. Mas é necessário percorrê-lo se quisermos sermos de fato mais felizes.
A busca pela perfeição
“O que significa ser invencível?”
A busca pela perfeição foi talvez o fator primário de motivação do Musashi. O anseio pelo domínio total da espada, a fome de luta, de enfrentar um adversário mais forte e, principalmente, a vontade de se tornar invencível.
Musashi estava cego para todos, exceto para si mesmo. Era tomado por ambição e até um certo egoísmo. Ocorre que, ao longo da vida, encontramos pessoas com outras experiências, perspectivas e muitas vezes mais fortes que a gente. E não estou falando de força física. É justamente o contato com essas pessoas, com essas visões diferentes de vida, que fez o Musashi finalmente entender o significado de “invencível”.
Ao longo de sua jornada, Musashi entende o valor da disciplina, do foco e da perseverança. E também desenvolve seu estilo de luta próprio. Esses fatores, aliados a sua natural habilidade de lutar, o transformam em um samurai totalmente fora da curva, bem acima da média e um dos mais temidos do Japão. E isso diz muita coisa sobre sua busca desenfreada por ser perfeito. O verdadeiro sucesso passa pelo crescimento pessoal, e pelo confronto com o ego e medos internos. Nesse sentido, o valor do sucesso não está no objetivo final em si. Não é sobre se tornar invencível, não é sobre perfeição. É, na verdade, sobre o caminho até la, e tudo o que se constrói nessa caminhada. Essa é a jornada de uma vida inteira e requer muita força de vontade para encarar suas próprias limitações.
O custo da Violencia
“Então você quer morrer com honra? Você está sendo egoísta. Cada pessoa que você matou tinha sua própria vida. Quer essa vida tenha sido abençoada ou não… todo mundo nasce neste mundo… eles crescem… algumas pessoas têm família… algumas estão sozinhas neste mundo…alguns têm filhos pequenos…alguns estão noivos…alguns têm animais de estimação…algumas pessoas têm grandes esperanças e grandes sonhos…outras não têm nenhuma ambição e você acabou com tudo por elas, Takezo. Você as matou.“
Por mais que se tire muitos conceitos filosóficos de Vagabond, o mangá é bem violento, refletindo como foram os dias de Musashi como um samurai. E ele precisa enfrentar inclusive a própria violência em si. O enredo de Vagabond se da em um contexto de sociedade bem violenta. Como pano de fundo, temos um mundo onde é preciso usar da violência para se defender ou defender quem se ama. O custo disso é muito claro quando observamos a dor que tudo isso causa, tanto nos indivíduos, quanto na sociedade como um todo. E a sede de poder de Musashi o coloca diante da forma mais crua disso tudo, onde ele praticamente personifica a violência em si.
Daria para fazer um outro post somente sobre a violencia em Vagabond e na trajetória de Musashi. Esse é o aspecto mais pesado da trama, é fundamental para a evolução do personagem e tem seu marco na batalha de Yoshioka. Essa passagem não só é o ponto mais alto de Vagabond como também é o ponto de virada de toda a história do Musashi. Ela se passa na escola de espadachins Yoshioka e é um confronto brutal e sanguíneo, onde Musashi demonstrou o quão poderoso ele havia se tornado. Musashi lutou contra cerca de 70 homens e tirou a vida da maioria. Graficamente falando, o que o Takehiko faz no arco Yoshioka é coisa de outro mundo. Ele é um gênio.
Esse é um ponto-chave da história pois, além de ter um impacto importante na reputação do Musashi e na sua relação com as pessoas ao redor dele, o próprio passa a refletir sobre a violência no caminho que ele percorre, gerando novos conflitos internos para o personagem. A começar, questionando o real sentido de uma vida baseada em sangue e dor. E isso é algo que ele aprendeu por experiência própria, mas que também já havia sido alertado pelo seu próprio mestre no passado.
A relação de Musashi com a violência é bem complexa e tem várias camadas. E embora seu caminho crie situações de atos assim, ele acaba reconhecendo os impactos disso na sua vida e na vida de todos ao seu redor. Musashi sai desse evento como um homem quebrado, física e emocionalmente. Passa a meditar mais, se torna mais introspectivo e reflexivo. E passa a criar conexões mais profundas com pessoas importantes para ele.
O sentido da vida
“Sorria mais”
Os últimos capítulos de Vagabond são os mais importantes para mim. Agora vemos um Musashi totalmente afastado de qualquer ganância, violência ou egoismo. Com um tempo junto a um grupo de fazendeiros, ele se depara com a vida em sua forma mais simples, junto à homens, não guerreiros. Com a bondade e não com a violência. E acho que ali, Musashi se tornou de fato uma pessoa forte, pois foi onde ele se tornou uma pessoa melhor também. Musashi de despe de tudo o que carregou na vida e retorna ao vazio. Ele se entrega ao infinito.
Dentro do vazio, dentro do infinito, tudo existe. Ele pode fazer qualquer coisa, ele não é limitado, as palavras não existem. Aqueles que vivem para si mesmo, como Musashi um dia viveu, são limitados. Aqueles que ajudam os outros, que vêem o infinito que existe também dentro das outras pessoas e realmente usam tudo o que podem fazer algo de bom ao invéz de se dedicarem a reduzi-las, essas pessoas são verdadeiramente livres.
Musashi se tornou um homem gentil, finalmente. E talvez seja esse o nosso verdadeiro propósito na vida: Nos tornar a melhor versão de nós mesmos.
Vagabond e um universo dentro da gente
Em sua obra “O livro dos cinco anéis”, o próprio Musashi mostra como nossa força vem de dentro, e não por vias externas.
“Não existe nada fora de você que pode te tornar melhor, mais forte, mais rico, mais rápido ou mais esperto. Tudo esta dentro. Tudo existe. Não busque nada fora de si mesmo”
Vagabond reflete esse conceito na trajetória de Musashi e, quem leu a obra, com certeza reflete sobre isso também. Todos temos nosso próprio propósito, nosso próprio caminho e todos temos um universo de coisas dentro da gente. Vamos cair, mas, se levantarmos a cabeça e, principalmente, se formos mais gentis, vamos alcançar o nosso próprio sentido e felicidade na vida. Ao superarmos o orgulho e o ego e entendermos nosso papel em relação aos outros, nos tornamos verdadeiramente fortes.
Esse é o maior legado de Vagabond e eu espero carregar esse conceito comigo para sempre. E, quem sabe, um dia eu me torne alguém mais gentil também.
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Material de Referência
1 – Britannica: “Samurai – Meaning, History and Facts” (https://www.britannica.com/topic/samurai)
2 – invaluable: “The history of the Bushido code: Principles of the Samurai Culture” (https://www.invaluable.com/blog/history-of-the-bushido-code/)
3 – Livro: “Musashi” (1939), de Eiji Yoshikawa
4 – Livro: “O livro dos cinco anéis” (~ 1645), de Miyamoto Musashi
5 – Vagabond, de Takehiko Inoue – Mangá, volumes: 1 – 37
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