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Anarquia em V de Vingança: Um Estudo de Rebelião e Libertação

anarquia

substantivo feminino

  • 1. sistema político baseado na negação do princípio da autoridade.
  • 2. estado de um povo que, de fato ou virtualmente, não tem mais governo.

Confesso que, apesar de sempre me esforçar para ser alguém minimamente politizado, o conceito de anarquia sempre foi meio estranho para mim. E acho que isso faz sentido, pois muitas vezes a anarquia tende a soar muito como caos. Não deixa de ser, de certa forma. No campo da ciência política e das relações internacionais, a anarquia se refere à ausência de uma autoridade superior que possa resolver seus conflitos ou impor certos direitos. O termo em si remonta à palavra grega antiga anarchos, que significa “sem autoridade”, e encapsula a ideia de um mundo sem um corpo governante ou governo estabelecido.

William Godwin

No pensamento moderno, o conceito filosófico de anarquismo veio de William Godwin, considerado o cara que desenvolveu o pensamento anarquista moderno na Inglaterra. Godwin argumentou que o governo inerentemente prejudica a sociedade ao promover dependência e ignorância. Ele acreditava que, à medida que a razão se espalhasse entre as massas, o governo naturalmente se tornaria desnecessário e desapareceria. Apesar de rejeitar a legitimidade do estado, Godwin se opôs a táticas revolucionárias, favorecendo uma evolução pacífica em direção à mudança. Ele criticou instituições sociais como lei, direitos de propriedade e casamento, vendo-as como restrições à capacidade dos indivíduos de exercer plenamente a razão e alcançar uma organização social mutuamente benéfica.

Bom, apesar de Godwin se opor a táticas, digamos, mais violentas, o anarquismo é marcado por revoluções que estão longe de serem pacíficas. O anarquismo moderno tem suas raízes no iluminismo, em ideias seculares e humanísticas. Os pensadores iluministas, influenciados por descobertas científicas, acreditavam que a razão humana poderia libertar a sociedade. Figuras-chave como Jean-Jacques Rousseau, que defendia a liberdade e a bondade inata da humanidade, moldaram as ideias anarquistas. Rousseau criticou o estado como inerentemente opressivo. A Revolução Francesa, por exemplo, foi uma grande influência no anarquismo, com eventos como a Tomada da Bastilha inspirando anarquistas posteriores. 

A Tomada da Bastilha

Esse lance de anarquia vai de encontro também com a história de Alan Moore, V de Vingança. Antes de mais nada, é interessante observar a própria posição política de Moore nesse sentido, já que o próprio se considera um anarquista. Portanto, V de Vingança é também um estudo interessante das visões de seu autor.

“Como anarquista, acredito que o poder deve ser dado ao povo, às pessoas cujas vidas isso está realmente afetando. Não é mais bom o suficiente ter um grupo de pessoas controlando nossos destinos. A única razão pela qual elas têm o poder é porque controlam a moeda. Elas não têm autoridade moral e, de fato, mostram o oposto da autoridade moral.”

Ok, mas como seu posicionamento se reflete em sua história?

Como de costume, uma breve introdução para você que de repente nunca ouviu falar nisso. V de Vingança é uma distopia ambientada em uma Grã-Bretanha fascista e pós-apocalíptica governada por um governo totalitário. Acompanhamos V, um enigmático justiceiro anarquista, que busca derrubar o regime e inspirar o público a se levantar contra a tirania.

A verdadeira identidade de V, no entanto, nunca é revelada. Sabe-se que ele já foi um prisioneiro em um campo de concentração administrado pelo governo chamado “Larkhill”, onde desertores políticos, homossexuais e outros “indesejáveis” ​​eram presos e submetidos a experimentos horríveis. Esses experimentos lhe deram força, inteligência e resistência aprimoradas, mas o deixaram desfigurado. 

A HQ também foi adaptada para filme em 2005, numa produção dirigida por James McTeigue e escrita pelos Wachowskis. É um filme até fiel ao enredo principal e eu particularmente gosto bastante da adaptação, mas ele muda um pouco o tom e os temas e isso pode não agradar todo mundo. Embora a mensagem anti-totalitária ainda esteja lá, ele coloca mais ênfase em mensagens políticas mais amplas, como a luta entre liberdade e medo, e críticas à política contemporânea dos EUA (por exemplo, vigilância e controle do governo pós-11 de setembro). E apesar da postura anarquista de Alan Moore, autor da fonte original, sinto que o filme foca mais em ideais liberais tradicionais de democracia e liberdades civis do que em um movimento revolucionário como na HQ. Novamente, essas coisas também estão no filme, mas me refiro aqui às diferenças de tom. De qualquer forma, o tema de anarquia atravessa tanto filme quanto HQ, e é isso o que quero explorar hoje.

Em V de Vingança, a anarquia não é simplesmente uma rejeição da autoridade. Quer dizer, ela nunca foi simplesmente isso, mas nessa história ela é retratada como uma força revolucionária para libertação e justiça. V de Vingança se passa em um futuro distópico onde um regime fascista, o Partido Norsefire, governa a Grã-Bretanha através do medo e da opressão. Nosso querido protagonista, V, personifica essa força revolucionária e os ideais de anarquia em sua busca para derrubar tal regime. V usa uma máscara de Guy Fawkes, um militar católico inglês que pretendia colocar em prática “A Conspiração da Pólvora” em 5 de novembro de 1605. Ele planejou explodir o Parlamento, o que seria um ato revolucionário para derrubar o governo da Inglaterra. No entanto, Fawkes foi preso, considerado culpado e, então, torturado. A máscara de V, portanto, simboliza uma resistência histórica da tentativa de Fawkes de explodir o Parlamento Britânico em 1605.

O Partido Norsefire representa o autoritarismo em sua mais pura forma — usando medo, vigilância e propaganda para manter controle total sobre seus cidadãos. O objetivo de V é destruir esse sistema e inspirar o povo a recuperar seu poder, partindo da crença de que liberdade e justiça não podem coexistir com as hierarquias rígidas de um regime autoritário. Ele critica não apenas os governantes fascistas, mas também a aceitação passiva da opressão pelas massas, propondo uma autocrítica importante por parte do povo, que tem sua parcela de culpa na hora de escolher quem os governa.

A famosa e tão repetida frase que V recita — “Lembre-se, lembre-se do 5 de novembro” — é uma referência à tentativa fracassada de Guy Fawkes de explodir o Parlamento inglês. Em contraste, V visa ter sucesso onde Fawkes não teve: derrubar o sistema corrupto para despertar um novo senso de autogoverno no povo.

Aos olhos de V, o governo Norsefire transformou seus cidadãos em prisioneiros, uma metáfora que ele usa para ilustrar sua falta de agência. A prisão, neste caso, representa um sistema de controle — um que dita como as pessoas vivem, pensam e temem. Anarquia, para V, é o único caminho para a liberdade, uma maneira de desmantelar essas prisões metafóricas. 

“Você nasceu em uma prisão. Você está em uma prisão há tanto tempo que não acredita mais que exista um mundo lá fora.”

Destruir para reconstruir

Acho que se pode dizer que o anarquismo de V é inerentemente revolucionário, mas fica claro que é também um modelo violento. V acredita que o sistema é tão corrupto que não pode ser reformado por dentro. Portanto, a destruição se torna um passo necessário para a renovação. Por exemplo, na HQ, quando V explode o Old Bailey, um símbolo do sistema de justiça britânico, ele não está apenas destruindo um prédio: ele está atacando o conceito de injustiça que o prédio representa.

O plano final de V, explodir o parlamento, serve ao mesmo propósito. O prédio é a representação máxima do poder e controle do estado, e sua destruição visa iniciar uma revolução. No entanto, V não pretende impor uma nova ordem própria, ele quer que o povo assuma o controle de seu próprio destino. Isso distingue o anarquismo de V da mera rebelião. Sua visão não é sobre substituir um regime por outro, mas sobre capacitar indivíduos a viver sem a necessidade de autoridade centralizada.

Então, por mais que as ações de V sejam violentas, somos levados a entender, a partir da perspectiva da narrativa, que elas refletem um aspecto importante da filosofia anarquista: a crença de que o monopólio do estado sobre a violência deve ser quebrado para que a verdadeira liberdade surja. O regime Norsefire usa a violência — por meio de polícia secreta, tortura e execuções — para manter o controle. V usa essa violência contra o regime, invertendo simbolicamente a dinâmica do poder. Portanto, sua vingança não é pessoal, mas sim uma declaração política: enquanto o estado exercer violência para reprimir seus cidadãos, os cidadãos devem responder da mesma forma para recuperar sua liberdade.

O papel do medo no controle e na rebelião

O medo possui uma influência poderosa no comportamento humano e, ao longo da história, ele foi manipulado por aqueles que estão no poder e detém o poder. Embora o medo seja um recurso útil do funcionamento humano, ele se torna prejudicial quando acionado desnecessariamente, especialmente por governantes para manter o controle. Historicamente, os governantes usaram o medo para unir e controlar populações, como os nazistas fizeram para sujar a imagem dos judeus, por exemplo. Na Alemanha nazista, as pessoas falharam em resistir ao regime porque não reconheceram a erosão gradual de suas liberdades até que fosse tarde demais. E essa prática continua nos tempos modernos, com governos opressivos invocando o medo para afirmar autoridade e manter o controle.

No Brasil de 2024, por exemplo, vivemos sob o medo constante da “ameaça comunista”. Pense sobre isso.

Duas estratégias principais para manipular o medo incluem operações de bandeira falsa, onde os líderes orquestram ou permitem ataques para ganhar a confiança do público, e propaganda por meio da repetição, onde mentiras repetidas são eventualmente aceitas como verdade. Quem já leu George Orwell sabe bem como a linguagem e a repetição podem disfarçar falsidades como fatos.

Um tema crítico tanto no pensamento anarquista quanto em V de Vingança é justamente o papel do medo na manutenção do controle social. Veja, o regime Norsefire prospera através dessa tática: medo do terrorismo, medo da dissidência, medo do desconhecido. O estado manipula esse medo para manter os cidadãos obedientes. Existe uma cena na adaptação da HQ para o cinema onde V discute exatamente sobre este ponto: 

“O medo levou a melhor sobre você. E em seu pânico, você se voltou para o agora Alto Chanceler Adam Sutler. Ele prometeu a você ordem e prometeu a você paz. E tudo o que ele exigiu em troca foi seu consentimento silencioso e obediente.”

O anarquismo de V busca reverter essa dinâmica instilando medo no próprio governo. Por meio de seus atos de sabotagem e terrorismo, V visa fazer o regime temer seu próprio povo. Nesse sentido, ele se torna a própria arma do estado contra ele. A dependência do governo no medo se torna seu calcanhar de Aquiles, pois V demonstra que o medo, uma vez superado, se torna uma ferramenta poderosa para a revolução.

Dito isso, vamos falar de Evey. A personagem, interpretada por Natalie Portman no filme, perdeu os pais ainda jovem. Sua mãe morreu após uma guerra nuclear, e seu pai foi executado pelo regime fascista Norsefire devido às suas crenças socialistas. Órfã, Evey lutou contra a pobreza, trabalhando em uma fábrica e tentando se prostituir antes de ser salva por V, que a leva para seu esconderijo subterrâneo, a Shadow Gallery, onde Evey passa a se aprofundar nos ideais e passado do protagonista.

Ao ver o medo de Evey, V entende que deve fazê-la passar pela mesma dor e horror que ele suportou uma vez para que, assim como ele, ela se torne inquebrável. Após sequestrar Evey e convencê-la de que ela foi levada pelo governo, V a aprisiona em um campo de concentração simulado que ele criou em sua casa. Durante meses, Evey é mantida em confinamento solitário e brutalmente torturada para testar sua lealdade a V. Após várias semanas enfrentando uma desumanização sem fim, Evey é informada de que será executada se não revelar o paradeiro de seu aliado. Ao responder que ela preferia morrer a trair V, o guarda a parabeniza e a liberta, é quando ela percebe que nunca saiu do esconderijo de V. É claro que essa é uma atitude extremamente polêmica e é claro que ela se enfurece com V por fazê-la passar pelo inferno que passou. Apesar de se sentir culpado por suas ações, V ainda mantém sua palavra de que tudo o que ele fez foi para eliminar seu medo e torná-la mais forte.

O interessante desse momento da história é que, a partir de uma atitude como essa que V toma, cria-se uma linha muito tênue entre idealismo e arrogância. V tenta curar o medo de Evey justamente através do…medo e tortura? Será que ele é realmente o anarquista que quer libertar todo mundo ou ele é apenas um lunático que usa a anarquia como desculpa para se vingar das pessoas que o injustiçaram? V fez lavagem cerebral em Evey ou ele estava realmente tentando libertá-la? Essas perguntas sustentam as características de anti-herói que V possui, mas também colocam em perspectiva se os preços que determinadas revoluções sugerem realmente valem a pena serem pagos. V de Vingança não é uma história simples e eu acho isso ótimo.

De qualquer forma, quando falamos de “superar o medo”, Evey serve quase que como um microcosmo dessa transformação. Inicialmente, ela era medrosa e submissa ao regime, mas passou por uma jornada pessoal do medo à liberdade, estimulada por suas interações com V. A transformação de Evey reflete exatamente o ideal anarquista que V propaga, o de que a libertação começa quando os indivíduos rejeitam o medo e reivindicam sua agência.

Ideias são a prova de balas

Histórias como V de Vingança mostram como o controle dos pensamentos e sentimentos leva as pessoas a viverem em um mundo sombrio, onde o pessimismo é dominante. E isso serve de crítica para qualquer sistema, seja socialista ou capitalista. V de Vingança não pertence apenas a um período, tempo ou lugar específico, mas sim a toda a história, ao futuro e a todos os regimes. É uma história que mostra como regimes opressivos afetam os indivíduos e a sociedade e é um sério alerta de que essa opressão crescente dos governos de hoje será mais poderosa no futuro, levando a uma visão depressiva e pessimista, em que a liberdade de pensamento e a vida dos indivíduos são muito limitadas. Assim, as pessoas destroem o conceito de igualdade e liberdade. 

Talvez o ponto chave de V de Vingança seja que, mesmo que a narrativa produza apreço e respeito pelo protagonista, no fim prevalece o fato de que a revolução não está vinculada a um único indivíduo ou líder, mas a uma ideia. Isso é simbolizado pela máscara de V, que obscurece ainda mais sua identidade e permite que ele se torne um símbolo em vez de uma pessoa.

“Há um rosto por baixo desta máscara, mas não sou eu. Eu sou mais do que esse rosto.” 

Seu anonimato permite que outros assumam a causa, e isso é confirmado quando Evey veste finalmente a máscara e completa a missão de V. Dessa forma, o anarquismo de V transcende sua vingança pessoal. Torna-se um movimento coletivo, sustentado não por um indivíduo, mas pela crença compartilhada na liberdade da tirania.

E aí temos aquele que considero o princípio fundamental da filosofia anarquista: a rejeição da liderança hierárquica, onde nenhuma pessoa exerce poder sobre os outros. V, apesar de seu papel como líder revolucionário, entende que sua missão não é se tornar uma nova autoridade, mas sim incendiar um movimento que continuará sem ele. V se torna uma ideia, algo que o autoritarismo jamais irá matar.

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