Lumon Vai Além da Memória: A Ruptura Não Só Divide, Mas Reescreve Quem Somos
Não sou um cara profundamente científico, embora, quando utilizo os mantras racionais gravados na minha mente – menos por escolaridade e mais por anos de consumo passivo de vídeos de no YouTube, livros de psicologia meio lidos e discussões filosóficas em boteco -, os princípios que mais ressoam em mim costumam ser os da clareza e da verdade. A teoria das cordas ou todos os enigmas lógicos que vemos por aí são empolgantes, mas não estão no centro do que eu costumo entender como “boa ciência”: entender o mundo, testar seus limites, buscar a verdade. Rigor empírico. Honestidade mental. A humildade de dizer “não sei”. Explico isso não para parecer pretensioso, mas para esclarecer o espírito com o qual agora considero Ruptura, essa jóia em forma de série que levanta uma pergunta tão elegante quanto aterrorizante: e se a separação, esse procedimento fictício que divide sua versão profissional e pessoal em seres (nem tão) completamente distintos, não apenas dividisse a memória, mas a inventasse?
Ruptura caiu como uma bomba. Que série boa! Ela ostenta sua ficção científica com orgulho, mas a maneja com delicadeza, como um bisturi, não com a brutalidade de uma marreta. É uma série sobre memória, trabalho, vigilância e a própria ideia de identidade. Certamente bebeu de muitas fontes – Orwell, Kubrick…- mas há algo mais profundamente perturbador aqui. À medida que a série avança, você começa a se perguntar se o trauma laboral vivido pelos “internos”, os eus de trabalho criados pelo procedimento da Lumon, é apenas a ponta de um iceberg muito mais sombrio. Se uma empresa pode isolar partes da sua vida, certamente também pode fabricá-las. Se a memória é apenas dado, quem pode dizer que não pode ser programada?

O brilho de Ruptura está em como ela nos seduz com sutileza para essa pergunta. Não começa com espetáculos de ficção científica ou pirotecnias digitais, mas com carpetes bege e festas de aniversário constrangedoras no escritório. Por mais séria que seja, às vezes determinada cena poderia muito bem ser uma cena de The Office. O terror é burocrático. A vilania, administrativa. E o heroísmo, hesitante e contido. Mark Scout, interpretado com uma precisão absurda por Adam Scott, não começa como um rebelde. É um homem de luto pela esposa, alguém disposto a ceder metade da própria vida em troca de um tipo de anestesia emocional. Mas, conforme as paredes de sua existência dupla começam a rachar, um pavor filosófico mais profundo emerge. E se ele não estiver apenas perdendo metade de si? E se a outra metade… não for ele?
A noção de memória implantada não é novidade na ficção especulativa, claro. Blade Runner construiu sua tese inteira em torno disso. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças perguntou se apagar uma memória poderia apagar o amor. E nem vamos falar de Matrix. Mas Ruptura faz algo mais insidioso, ela propõe uma corporação que não apenas colhe o que tem na mente, mas cultiva algo antinatural dentro dela. Pense nisso: uma versão de você mesmo, criada por outros, preenchida com memórias não conquistadas, mas atribuídas. Companheirismo no trabalho roteirizado. Traumas passados desenhados para garantir obediência. Uma história falsa, construída não para consolar, mas para controlar. Isso não é amnésia. É tirania autoral.

A série insinua essa possibilidade com um estilo perturbador. Pistas sobre os fundadores da Lumon, a reverência fanática/religiosa à doutrina corporativa, e os rituais totalmente surreais impostos aos funcionários sugerem que a empresa não está apenas escondendo algo, está construindo algo. Uma mitologia? Talvez um sistema de crença? A crença, aliás, como a história já nos mostrou, é a mais poderosa das memórias. Se um funcionário “separado” passa a acreditar que sempre trabalhou na Lumon, que sempre pertenceu à sua causa, que sempre foi um servo devoto de Kier, então, para que serve a verdade? Não é preciso vigiar quem já acredita na mentira.
O que Ruptura captura com muita precisão também é o quão semelhante isso é à nossa própria relação com o trabalho, com o capitalismo e com a identidade. Quantos de nós já remodelaram suas personalidades (ou seus valores) para se adequar à cultura de um emprego? Diz aí, quantos de nós encenam versões de si mesmos para sobreviver profissionalmente? “Todos nós usamos máscaras”, já diria Carl Jung. Se a Lumon pudesse aperfeiçoar essa performance — se pudesse plantar a ilusão de significado, de lealdade, de origem — então ela não estaria apenas controlando o trabalho. Estaria criando a realidade.
Helly, vivida por Britt Lower, talvez seja quem melhor encarna o custo dessa ficção. Sua “innie” começa a série gritando – literalmente – diante da jaula existencial em que desperta. Com o tempo, ela se transforma, não por causa da verdade, mas por causa de um mundo cuidadosamente orquestrado que tenta convencê-la de que ela escolheu essa vida. Seu arco vai além da rebelião. É uma rejeição à narrativa fabricada. E isso, de certa forma, a torna a figura mais heroica de todas: alguém disposto a enfrentar o desconhecido em vez de aceitar uma mentira confortável.

Eu diria que Ruptura é a série mais filosoficamente rica desde, sei lá, Black Mirror? E tão profética quanto. Em um mundo de personas cuidadosamente curadas nas redes sociais, ideologias moldadas por algoritmos e cultura corporativa disfarçada de espiritualidade, a ideia de memória como manufatura parece menos ficção científica e mais uma terça-feira comum. O procedimento de separação da Lumon, com sua simplicidade assustadora, está a apenas um passo das formas como já compartimentalizamos a nós mesmos. Todos nós nos separamos. Todos nós inventamos.
E é isso que torna o centro moral da série tão marcante. Ela não defende a reintegração do eu apenas por si mesma. Ela argumenta que a memória — a memória real — é a base da agência. Sem memória verdadeira, não podemos consentir. Não podemos nos rebelar. Não podemos crescer. Uma memória fabricada pode parecer real, pode evocar emoção, pode até levar a atos de compaixão ou lealdade, mas é um tipo de falsificação espiritual, uma cópia da alma em vez da alma.
Então, a Lumon poderia inventar memórias? A séria já respondeu isso faz tempo. Nas festas no escritório, nos vídeos de treinamento, nas citações de Eagan gravadas nas paredes da sala de descanso, tudo parte de uma paisagem interna projetada não apenas para prender, mas para fazer acreditar. Não se trata apenas do que você lembra. Trata-se de quem escreveu a memória, em primeiro lugar.
As distopias mais assustadoras não são construídas com força bruta ou caos, mas com a reescrita lenta e cuidadosa daquilo que acreditamos ser verdade.

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