CinemaLiteratura

A honra perdida de Katharina Blum (ou: de como surge a violência e para onde ela pode levar)

“Palavras podem causar mais danos do que socos e pistolas.”

Heinrich Böll

Hoje em dia, dificilmente você vai encontrar alguém que não perceba o incrível poder dos meios de comunicação de massa. Ainda assim, muitas pessoas parecem não notar o enorme impacto disso sobre nós, sobre os nossos estilos de vida, nossas ações, aparência física e até mesmo nossa personalidade. Já escrevi aqui no blog sobre os algoritmos e as irreais expectativas que as redes sociais colocam nas pessoas, mas hoje quero me referir especialmente àqueles que parecem não pensar muito ao analisar as informações que recebem da TV, dos jornais e, principalmente, das redes sociais. Isso não é um julgamento, eu sei que é MUITO difícil fazer certas análises pois somos bombardeados a todo momento com todo tipo de notícia. E isso não é algo que ocorre de maneira natural: tem muito a ver com manipulação de mídia.

O poder dos meios de comunicação de massa evoluiu bastante quando os avanços tecnológicos tornaram possível difundir informações para massas maiores de pessoas. Com o tempo, ficou óbvio que esse poder vem sendo usado ​​não só para nos informar, mas também para nos manipular e nos fazer pensar de uma determinada maneira. O Brasil, por exemplo, vive esse dilema a anos e – agora uma sensação pessoal minha – vejo que isso está se agravando a cada dia que passa, esgotando qualquer possibilidade de raciocínio crítico que a sociedade pode (e deve) ter. É uma guerra de lados sustentada pela polarização. A manipulação de mídia é usada para reforçar crenças e preconceitos existentes, aprofundando as divisões ideológicas na sociedade. Ela cria câmaras de eco onde as pessoas consomem apenas informações que se alinham com as suas opiniões pré-existentes. Você provavelmente já ouviu em algum momento que “é preciso furar a bolha“.

“Polarização se tornou parte do dia a dia no Brasil”

Essa manipulação dos meios de comunicação assume muitas formas. São reportagens tendenciosas, desinformação, propaganda e apresentação seletiva de fatos reais (até onde dá para confiar em quem seleciona os fatos?). Escrevo esse texto em outubro de 2023 e estamos vivendo isso ao nível máximo diante da escalada no conflito entre Israel e Palestina, por exemplo. É importante notar que ambas as partes envolvidas neste conflito foram, em vários momentos, acusadas de manipular os meios de comunicação social para promover as suas próprias narrativas e agendas. O conflito na real é uma questão profundamente complexa e sensível, com uma longa história, e a manipulação dos meios de mídia tem desempenhado um papel importante em vários se seus lados. Por isso é essencial que nós, como consumidores de notícias, sejamos críticos e criteriosos ao acompanhar o desenvolvimento dessa história.

A guerra de narrativas tem um papel importante em diversos conflitos pelo mundo.

Em 1974, Heinrich Böll publicou o livro “A honra perdida de Katharina Blum“, que mais tarde, em 1975, ganhou uma adaptação em filme dirigida por Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta. A história trata do sensacionalismo das notícias dos tablóides e do clima político de pânico em relação ao terrorismo da Facção do Exército Vermelho na década de 1970 na República Federal da Alemanha. E a história de Katharina ensina muito sobre até onde a manipulação de mídia pode levar as pessoas.

A honra perdida de Katharina Blum é um livro de Heinrich Böll publicado originalmente em 1974.

O cancelamento de Katharina Blum

A Honra Perdida de Katharina Blum é a história bastante trágica de uma jovem e dos terríveis efeitos que a mídia de massa e o sensasionalismo jornalístico tiveram em sua vida. Katharina Blum trabalha como empregada doméstica e em uma festa de carnaval acaba conhecendo e se envolvendo com o belo e jovem Ludwig Gotten. Mas esse romance não durou muito tempo. Na manhã seguinte, Katharina descobre, de uma forma bem grotesca, que Ludwig é procurado pela polícia, pelo crime de ser terrorista. Nesse momento, sua vida calma e comum se transforma em um verdadeiro inferno.

Katharina Blum
Katharina e Ludwig Gotten

A história do suposto envolvimento de Katharina com um terrorista se torna um caso quente no jornal popular. Refém de um sensacionalismo, Katharina torna-se um alvo, com telefonemas e cartas anônimas, ameaças sexuais, dentre outras coisas terríveis que vão testando os limites da sua dignidade e sanidade. A mídia sensacionaliza o relacionamento de Katharina com Ludwig, distorcendo os fatos e os apresentando de uma forma que gera interesse público e indignação. Este sensacionalismo serve para aumentar as vendas e as classificações dos jornais, muitas vezes à custa da verdade e da reputação do indivíduo.

A vida de Katharina é totalmente exposta pela mídia, que publica detalhes íntimos sobre sua história, vida pessoal e até mesmo sua casa. Katharina é retratada como culpada por associação à um terrorista, apesar de nunca ter se envolvido em nenhuma atividade de fato criminosa. O retrato que a mídia faz dela como cúmplice de um criminoso destrói sua reputação, levando ao seu isolamento social, à perda do emprego e a danos graves em sua saúde mental. A revolta popular também é enorme, já que a grande mídia é quem ditava a narrativa, e essa não favorecia Katharina – quem quer que controle a informação, controla também a desinformação. Se trazermos para os dias hoje, podemos dizer que Katharina Blum foi cancelada.

Katharina Blum
A honra perdida de Katharina Blum, adaptado em 1975

A “cultura do cancelamento” pode ter um nome moderno mas ela não é de hoje. De acordo com o Dictionary.com, é definida como o fenômeno ou prática de rejeitar publicamente, boicotar ou acabar com o apoio a determinadas pessoas ou grupos devido às suas opiniões ou ações social ou moralmente inaceitáveis: A cultura do cancelamento pode arruinar carreiras, mas também pode fazer uma figura pública pensar duas vezes antes de postar comentários polêmicos.

Os defensores dessa cultura acreditam que a prática de “cancelar” um conteúdo ofensivo ou determinada pessoa é uma resposta apropriada. O que eu até concordo em um determinado nível. O lance é que acredita-se que, ao fazer isso, pode-se proteger a sociedade de “ideias ou pessoas perigosas” e responsabilizar os maus atores pelos seus erros. Lindo, mas apesar dessa louvável proposta, muitas vezes não é isso o que acontece. Os críticos da cultura do cancelamento muitas vezes a veem como indivíduos desinformados na Internet, querendo apenas exibir sua virtude. Isso ocorre porque a cultura do cancelamento geralmente deturpa informações sobre o assunto, de forma não intencional ou intencional.

Tudo é um alvo do cancelamento virtual.

Katharina foi vítima das consequências da reação popular à narrativa proposta pela mídia em relação à sua pessoa. É basicamente o que acontece hoje em dia, basta trocar o jornal impresso pelo twitter. Essas narrativas raramente contêm todas as informações. Mas, mesmo quando a informação é representada com precisão, poucas ações são tomadas pela comunidade para punir ou alterar a situação.

Bom, para não confundir o objetivo do filme, é bom ressaltar que “A honra perdida de Katharina Blum” é uma obra de ficção que foca bastante no sensacionalismo e manipulação da mídia, enquanto a “cultura do cancelamento” é um fenômeno mais complexo e com mais camadas na vida real, mas ambas trazem discussões sobre o poder e as consequências do julgamento público sobre determinado assunto e os danos potenciais que podem surgir de um julgamento precipitado ou do mal (intencionado) uso da divulgação de notícias.

Entre a verdade e o sensasionalismo

Um dos aspectos mais perturbadores desse filme é o retrato da cumplicidade entre o Estado e a imprensa de direita na demonização não só de suspeitos de terrorismo, mas também de qualquer pessoa que questione as políticas antiterroristas do governo. O Estado, representado pela polícia na pele do personagem Beizmenne, é retratado como vigilante, invadindo a privacidade de Katharina Blum. A polícia lê suas correspondências, examina seus hábitos de leitura e consumo, grava suas conversas telefônicas. Eles reinterpretam suas ações de maneira distorcida e criam fantasias de conspiração. Para a polícia, Katharina não poderia simplesmente conhecer um estranho e dormir com ele, ambos já se conheciam e ela participou de reuniões terroristas, com certeza.

A hipocrisia nisso tudo é que essas táticas são, por si só, uma forma de terrorismo. O mesmo se aplica aos meios de comunicação, no filme encarnados no irresponsável e ultra sensacionalista repórter Werner Toetges. Ele questiona os vizinhos de Katharina sobre sua vida sexual e entrevista inclusive seu ex-marido sobre a separação. Em seus artigos diários no jornal “The Paper“, Toetges acusa Blum de ser radical e anti-religiosa, e fabrica histórias responsabilizando a moça por crimes que ela não cometeu. Aponta o falecido pai de Katharina como comunista e chega ao absurdo de forçar declarações falsas da mãe de Blum, encamada e prestes a falecer, justificando a ação mais tarde como “Devemos ajudar as pessoas simples a se expressar”.

Apesar do simbolismo pesado, a acusação que o filme faz à mídia é o centro de sua narrativa. O jornal justifica as suas ações com a afirmação de que “o dever da imprensa é informar o público”. Fica claro como a motivação da mídia é tão corrupta quanto suas práticas: ela não está interessada na verdade, mas em criar histórias que vendem.

E o fato de termos uma mulher como alvo também é bastante relevante, aqui a brutalidade não vê limites. Ainda no início do filme, quando Katharina é temporariamente liberada porque a polícia não consegue encontrar provas para detê-la, ela se depara com uma série de jornalistas apontando câmeras para ela e fazendo várias perguntas. Katharina tenta desviar o olhar, mas o policial que a acompanha a agarra pelo cabelo e a força a olhar para as luzes piscando e os rostos curiosos. Apenas homens cumprindo seu trabalho, não é mesmo?

Katharina Blum

A honra perdida de Katharina Blum funciona principalmente pela atuação bastante inteligente de Angela Winkler como Katharina. Ela retrata uma mulher de convicções fortes, que valoriza o seu direito de tomar as suas próprias decisões, sobre a sua vida e, principalmente, sobre a sexualidade. Tudo sem perder o charme e a delicadeza que uma mulher possui: É muito difícil não se encantar por Katharina. No filme, é como se os homens com quem ela se depara, especialmente no meio policial ou jornalístico, enxergassem sua personalidade como um desafio à sua própria masculinidade. O apelo a sexualidade de Katharina é constante e evidenciado desde o início, quando o chefe de polícia Beizmenne a pergunta se Ludwig “a comeu”. O que parece unir todos esses homens, independentemente das classes e das linhas políticas, é a necessidade de manter as mulheres numa sub-posição. Aos olhos da lei, Katharina é culpada, antes de mais nada, do crime de ser mulher, e o fato de ela ser uma mulher que se recusa a permitir que o patriarcado determine seu valor só aumenta sua culpa.

Isso, claro, vem atrelado às consequências pessoais que ela enfrenta. Seu apartamento é saqueado, ela é maltratada e intimidada constantemente por desconhecidos. Uma experiência degradante. Sua foto aparece nas primeiras páginas dia após dia, junto com relatos sinistros (e imaginários) de sua vida sexual, sua política, sua moral. Katharina Blum era uma jovem reservada, quieta e simples, apelidada de ‘freira’, e agora ela é mulher conhecida e odiada por estranhos.

Katharina Blum

A soma de tudo isso junto a morte de sua mãe empurra Katharina ao limite, e ela se torna a criminosa violenta da qual foi acusada de ser. A manipulação de midia, o sensasionalismo e a péssima forma de lidar com a situação por parte da polícia, destroem e corrompem Katharina numa tragédia que ressoa ainda mais forte nos dias atuais, onde vemos abusos e irresponsabilidades nas redes todos os dias.

Katharina atira em Totges, que além de todas as barbaridades, ainda tentou abusar sexualmente dela. Totges nunca foi alguém com caráter, muito pelo contrário. Junto à polícia, ele destruiu a vida e o psicológico de Katharina através de seu jornal. Mas o mais trágico é ver que, ao fim da trama, em seu velório, temos um discurso que sintetiza tudo o que esse filme quis representar: “A liberdade de imprensa é tudo”.

Te lembra alguma coisa?

Katharina Blum

A importância de um olhar mais crítico

Esta tragédia é agravada pelo fato de Katharina Blum não ser de fato uma ameaça para ninguém. Todos as “provas” reunidas contra ela são completamente desproporcionais. Isso fica claro logo no início do filme, quando Blum, sozinha em seu apartamento, prepara o café da manhã enquanto uma enorme quantidade de homens armados até os dentes invadem seu apartamento. Além do claro contraste da inocência de Katharina com a autoridade do Estado, a cena possui até um certo humor bizarro, mas não deixa de ser desagradável.

Katharina Blum

A Honra Perdida de Katharina Blum é um belo estudo sobre o abuso de poder e de informação. E aqui tomo espaço para também reconhecer a direção de Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta, que desenvolvem muito bem a narrativa e conseguem ser polêmicos sem serem manipuladores.

Este é um filme que investiga profundamente as violações dos direitos humanos num país que deveria ser pacífico e democrático – e isso não serve só para a Alemanha, obviamente. O filme também diz muito sobre a natureza da imprensa sensasionalista e a tendência que eles têm para espalhar mentiras e distorcer os fatos. Ressaltando, é um filme de 1975 e hoje, em 2023, enfrentamos problemas semelhantes e até mais graves. É incrível o nosso esforço em simular distopias.

Para a mídia, não importa se Katharina Blum é inocente ou não. Ela é uma história, e esse é seu único propósito para eles. E o público consumidor é nada menos do que cúmplice de um crime de desinformação. Portanto essa é uma história que continua relevante no mundo de hoje, onde a informação se espalha rapidamente através dos meios digitais e das plataformas sociais. Continuamos a testemunhar casos de manipulação da mídia, invasão de privacidade e assassinato de caráter. Na busca por ‘likes’, cliques e vendas de jornais, alguns meios de comunicação muitas vezes priorizam o sensacionalismo em detrimento da própria integridade jornalística.

Este filme nos desafia a refletir sobre as responsabilidades éticas dos meios de comunicação social e também de nossa responsabilidade como consumidor. Exige uma abordagem responsável e ética ao jornalismo que respeite a dignidade e a privacidade dos indivíduos, independentemente da natureza da história. As consequências da manipulação de midia podem ser de grande alcance, afetando não só os indivíduos que aparecem nas manchetes, mas também a própria estrutura da nossa sociedade. É um lembrete claro de que a midia exerce um imenso poder na formação da percepção pública. À medida que consumimos notícias e informações, na velocidade em que consumimos hoje, é crucial permanecermos criteriosos, e exigirmos um jornalismo responsável e ético que defenda os princípios da verdade, da integridade e do respeito pelo ser humano como um todo.

“A honra perdida de Katharina Blum” é uma ficção, mas Heinrich Böll usou experiências pessoais com o jornal alemão Bild para escrever o livro e pode-se dizer que Katharina é seu alter-ego. Como descrito no livro e no título desse texto, essa história não tem só um título – tem também um subtítulo: “De como surge a violência e para onde ela pode levar“.

Nas palavras do próprio autor:

“Pouco se conhece sobre a violência gerada por manchetes e sabemos menos ainda para onde a violência de manchetes pode levar. Seria tarefa da criminologia fazer uma investigação sobre o que certos jornais conseguem aprontar, com toda a sua “inocência” bestial. Mas a narrativa não tem só título e subtítulo, tem também um slogan: “As personagens e o enredo desta narrativa são puro fruto da imaginação. Se, em descrições de certas práticas jornalísticas, surgirem semelhanças com as do jornal Bild, isso não se deu por acaso ou premeditação; foi, isso sim, inevitável”.”

Eu simplesmente adoro o sarcasmo de Böll nessa frase.

***********************

Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. Se curtir, considere também se inscrever no site para receber os textos sempre que eles forem publicados. 🙂

Um forte abraço!

Inscreva-se na Olhe Novamente!

***********************

Material de Referência

1 – The Lost Honor of Katharina Blum (1975) ‘Die verlorene Ehre der Katharina Blum’, dirigido por Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta (https://www.imdb.com/title/tt0073858/)

2 – Livro:A honra perdida de Katharina Blum” (1974), por Heinrich Böll (https://carambaia.com.br/a-honra-perdida-de-katharina-blum-heinrich-boll)

3 – EDUZAURUS – “A Theme Of Media Manipulation In The Film The Lost Honor” (https://eduzaurus.com/free-essay-samples/a-theme-of-media-manipulation-in-the-film-the-lost-honor/)

4 – DW Brasil – “Polarização se tornou parte do dia a dia no Brasil” (https://www.dw.com/pt-br/polariza%C3%A7%C3%A3o-se-tornou-parte-do-dia-a-dia-no-brasil-afirma-professor-austr%C3%ADaco/a-18647653)

5 – WikipediaThe Lost Honour of Katharina Blum (https://en.wikipedia.org/wiki/The_Lost_Honour_of_Katharina_Blum)

6 – G1 – “Explosão a hospital de Gaza: a guerra de versões dos dois lados” (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/10/18/explosao-a-hospital-de-gaza-a-guerra-de-versoes-dos-dois-lados.ghtml)

7 – Dictionary.com – “Cancel Culture” (https://www.dictionary.com/browse/cancel-culture)

Um comentário sobre “A honra perdida de Katharina Blum (ou: de como surge a violência e para onde ela pode levar)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *