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A Religião e a Ciência em Fullmetal Alchemist

“Água: 35 litros, carbono: 20 kg, amônia: 4 litros, cal: 1,5 kg, fósforo: 800 g, sal: 250 g, salitre: 100 g, enxofre: 80 g, flúor: 7,5 g, ferro: 5,6 g, silício: 3 g e outros 15 elementos em pequenas quantidades… essa é a composição química total do corpo adulto médio. A ciência moderna sabe de tudo isso, mas nunca houve um único exemplo de transmutação humana bem-sucedida. É como se houvesse algum ingrediente faltando… Os cientistas tentam encontrá-lo há centenas de anos, despejando toneladas de dinheiro em pesquisas, e até hoje não têm uma teoria. Aliás, os elementos encontrados em um ser humano são todos lixo que você pode comprar em qualquer mercado com a mesada de uma criança. Os humanos são feitos de forma bem barata.”

Fullmetal Alchemist é uma obra que se destaca tanto em sua forma de mangá quanto em suas adaptações em anime – Fullmetal Alchemist ( 2003–2004) e Fullmetal Alchemist: Brotherhood (2009-2010). A obra é conhecida por se aprofundar em questões interessantes como moralidade, conhecimento e a busca pelo sentido da existência. A história é escrita por Hiromu Arakawa e, nela, acompanhamos a história de dois irmãos, Edward e Alphonse Elric, que utilizam a alquimia para tentar trazer sua falecida mãe de volta à vida. No entanto, sua tentativa falha de maneira desastrosa, levando Edward a perder um braço e uma perna, enquanto Alphonse perde seu corpo inteiro, sobrevivendo apenas como uma alma ligada a uma armadura.

Para restaurar seus corpos, eles saem em busca da Pedra Filosofal, um poderoso artefato que pode amplificar suas habilidades de alquimia. Ao longo dessa jornada, os irmãos descobrem segredos obscuros sobre a Pedra, governos corruptos e mais sobre a verdadeira natureza da alquimia em si. Fullmetal Alchemist utiliza a alquimia como uma metáfora para a ciência, e no centro de seu enredo existe uma tensão entre ciência e religião muito interessante de se observar, pois questiona as convicções de seus próprios personagens e força o público a refletir sobre os limites da ambição humana.

Mas como a obra utiliza esse conflito e a coexistência entre religião e ciência para tratar de dilemas humanos e dos limites do conhecimento e da moralidade? É o que vamos tentar desenhar aqui neste texto. Ah! E pegue um café, porque eu acho que esse será um assunto bem longo.

Alquimia como Ciência

O que é a alquimia? De acordo com a World History Encyclopedia, a alquimia é uma prática antiga que visa recriar substâncias preciosas usando receitas e materiais transformadores, como a Pedra Filosofal. Os alquimistas acreditavam que materiais como ouro, prata, gemas e corante roxo poderiam ser recriados se a combinação certa de ingredientes e métodos transformadores fosse encontrada.

A Pedra Filosofal, também conhecida como “elixir da vida” ou “tintura”, é uma substância lendária na alquimia que se acreditava ter o poder de transformar metais básicos em ouro e conceder imortalidade. Essa ideia fascina as pessoas há séculos, mas, obviamente, nunca foi provada como real. O artefato está enraizado em tradições alquímicas que remontam aos tempos antigos, particularmente na Grécia Antiga, Egito e, mais tarde, no mundo islâmico medieval e na Europa. Alquimistas como Paracelso e até mesmo Isaac Newton passaram anos estudando alquimia na esperança de descobrir essa tal substância milagrosa. No entanto, o que eles estavam realmente fazendo era lançar as bases para a química moderna, embora não tenham alcançado seus objetivos de transmutação ou vida eterna.

Ilustração representando um alquimista combinando a pedra filosofal com ouro para produzir ouro novo.

Hoje, entendemos que as alegações associadas à Pedra Filosofal violam as leis da física e da química como as conhecemos, como, por exemplo, a imortalidade. A ideia de uma substância que concede imortalidade ou juventude eterna é um conceito mais adequado à mitologia do que à ciência. A biologia moderna nos diz que o envelhecimento é um processo complexo que envolve genética, danos celulares e fatores ambientais que não podem ser simplesmente interrompidos ou revertidos com uma única substância.

Ainda assim, acho que é justo dizer que, embora a Pedra Filosofal em si não seja real, sua busca levou a muitas descobertas e avanços científicos. Além disso, o conceito da Pedra Filosofal também tem sido uma metáfora poderosa para a transformação pessoal, iluminação espiritual e busca por conhecimento.

Em Fullmetal Alchemist, a alquimia não é apenas uma ideia pseudocientífica, ela é apresentada como uma ciência complexa que segue leis precisas, focadas no princípio da Troca Equivalente, uma lei que diz que “para se obter algo, é necessário dar algo de valor igual em troca”. Podemos, então, enxergar esse princípio como uma filosofia de vida que reflete a busca constante da humanidade em equilibrar sacrifício e ganho. Diferente das leis estáticas da física ou da química, a Troca Equivalente questiona o quanto estamos dispostos a pagar para alcançar nossos objetivos, seja em conhecimento, poder ou até mesmo em sacrifícios pessoais. Essa abordagem é importante, pois é a partir dela que a série consegue estruturar seu universo, estabelecendo a alquimia como uma disciplina que busca entender e, essencialmente, manipular as leis naturais. Isso fatalmente esbarra em questões morais, e a série não tenta esconder o que pode surgir de pior quando a ciência se divorcia da ética.

É o que ocorre na tentativa desesperada de Ed e Alphonse de trazer sua mãe de volta à vida por meio da transmutação humana. Os irmãos acreditavam que poderiam contornar as leis da natureza usando uma combinação precisa de elementos químicos que compõem um corpo humano. No entanto, ao fazer isso, eles negligenciaram o aspecto metafísico da vida — a alma, a consciência e a essência misteriosa que torna alguém verdadeiramente vivo.

A história de Shou Tucker, o “Alquimista Costura-Vida”, também é um bom exemplo disso. A experimentação em humanos é geralmente considerada um problema ético ao longo do enredo. Até onde iremos para descobrir do que o corpo humano é realmente capaz? Shou ficou obcecado com o desenvolvimento de quimeras, seres humanoides que são a combinação de dois ou mais seres diferentes. Em seu desejo de obter aprovação como Alquimista do Estado, ele sacrificou sua esposa para criar a primeira quimera falante. Com uma série de falhas subsequentes e sua licença estadual perto do fim, Shou Tucker estava desesperado e doente o suficiente para fundir sua própria filha e seu cachorro na intenção de criar outra quimera e salvar seu status como Alquimista. Um resultado chocante que mostra onde a ambição desenfreada pode nos levar, além de ser uma reflexão interessante sobre esse desejo humano de “brincar de Deus”, nos levando a questionar até que ponto a ciência deve avançar sem considerações morais.

Religião em Fullmetal Alchemist

Religião é um conceito também muito presente em Fullmetal Alchemist. Refere-se a um sistema de crença praticado por um grupo de pessoas, geralmente envolvendo um objeto de adoração. No universo da série, o simbolismo religioso é rico e cheio de camadas, contrapondo-se à ciência em muitos pontos e permitindo esse embate de ciência vs. religião que mencionei no início do texto. Vamos pegar os Ishvalans como exemplo.

Os Ishvalans (ou Ishbalans, ou Ishvals…o termo varia dependendo da tradução) eram conhecidos por adorar uma única divindade criadora chamada Ishvala. A religião ishval era conhecida por proibir a alquimia e tinha sido passada de geração em geração, demonstrando sua enorme resistência. Ela também sugere uma vida após a morte, na qual as pessoas falecidas encontrariam o Deus Ishvala, crença que podemos observar na figura do personagem Scar, que frequentemente afirma que as pessoas que ele mata serão reunidas com Deus na morte. Aliás, Scar cai nas mesmas contradições frequentemente vistas em violências motivadas por religião ou no terrorismo. Ele faz uso da alquimia para realizar atos de vingança, apesar de denunciar a prática como algo não natural, o que o torna um completo hipócrita moral. Scar justifica suas ações por meio de seu sistema de crenças, mas quebra as próprias regras dessa mesma crença em sua busca por vingança.

Sua hipocrisia é um espelho do mesmo fenômeno do mundo real, onde muitos usam a religião como uma desculpa para ações que violam fundamentalmente seus ensinamentos. A maioria das religiões enfatiza a compaixão, o perdão e a santidade da vida, mas esses princípios são frequentemente distorcidos ou interpretados de maneira seletiva para justificar atos de violência. A ideologia pode ser manipulada para servir tanto a agendas pessoais quanto políticas, independentemente do dano que causa.

Por outro lado, Edward é incapaz de desacreditar totalmente a crítica de Scar em relação à ciência, o que coloca ainda mais camadas nesse embate moral. A alquimia, assim como a ciência, é uma ferramenta que pode ser usada tanto para a criação quanto para a destruição. Basta ver o que aconteceu com Hiroshima para entendermos que os avanços no conhecimento e na tecnologia costumam também vir com um enorme potencial destrutivo. A bomba atômica é um dos exemplos mais trágicos da ciência sendo usada como uma força de destruição, apesar do potencial do mesmo campo para melhorar a humanidade.

Essa perspectiva torna a crítica de Scar à alquimia uma força corruptora difícil para Edward negar, porque há certa verdade nela: a alquimia foi de fato transformada em arma para servir como uma ferramenta para genocídio, assim como a ciência e a tecnologia podem ser transformadas em armas em conflitos do mundo real. Edward, como um alquimista, tem que reconhecer que a alquimia causou danos e sofrimentos reais, mesmo que esse não fosse seu propósito pretendido. Ele entende que a alquimia foi usada por aqueles no poder para oprimir e destruir, em vez de curar ou melhorar vidas. Este reconhecimento enfraquece sua capacidade de refutar o argumento de Scar de que a alquimia (e, por extensão, a ciência) perverte a ordem natural e pode levar a consequências destrutivas.

Além disso, Edward também sabe das implicações mais amplas das queixas de Scar. Embora a alquimia e a ciência tenham o potencial de fazer um grande bem, elas também podem ser distorcidas em instrumentos de dano. O senso de moralidade de Edward e suas próprias experiências como alquimista o forçam a confrontar essa verdade desconfortável. Ele não pode descartar totalmente os argumentos de Scar, porque reconhece que o problema não está apenas no uso da religião por Scar, mas também em como os princípios da alquimia, nas mãos erradas, foram usados para justificar a crueldade e a destruição.

O Conflito em Ishval

O massacre de Ishval é um ponto-chave em Fullmetal Alchemist, onde religião e preconceito se cruzam em uma tragédia de grandes proporções, expondo o choque entre religião e ciência, especificamente através das lentes das crenças ishvalanas e da alquimia praticada pelo povo de Amestris

Para os ishvalanos, a alquimia representa uma forma perigosa de arrogância humana — uma tentativa de brincar de Deus ao adulterar a natureza e alterar o tecido da realidade. Essa visão os coloca em desacordo com a sociedade Amestriana, onde a alquimia não é apenas amplamente praticada, mas também tida em alta conta como uma ferramenta poderosa para o avanço do conhecimento e do progresso tecnológico.

Já em Amestris, a alquimia é considerada uma ciência sofisticada que combina princípios de química, física e misticismo antigo. É um método poderoso para manipular a matéria, seguindo a lei da Troca Equivalente: “Para obter algo, algo de igual valor deve ser perdido.” Os alquimistas em Amestris são reverenciados como intelectuais e são frequentemente empregados pelos militares como Alquimistas de Estado. Suas habilidades para remodelar, transmutar e manipular a matéria os tornam ativos valiosos em tempos de guerra e crise.

A Guerra Civil Ishvalana foi desencadeada por um incidente trágico em que um soldado Amestriano matou acidentalmente uma criança ishvalana. Esse ato desencadeou uma onda de raiva e ressentimento em Ishval, levando a uma rebelião em grande escala contra o governo Amestriano. O exército Amestriano então recebeu ordens de suprimir a revolta ishvalana por todos os meios necessários, levando a uma guerra brutal e massacres do povo ishvalano. A resposta do governo foi implacável, com soldados recebendo carta branca para matar qualquer um considerado uma ameaça. Os Alquimistas do Estado, conhecidos como “Armas Humanas”, desempenharam um papel significativo na guerra, com a manipulação da alquimia correndo solta, levando a um imenso sofrimento e à perda de vidas inocentes. Isso apoia a crença ishvalana de que a ciência, quando usada sem base moral, pode ser uma força perigosa.

Após o genocídio em Ishval, poucos praticantes desta religião permaneceram vivos. Além disso, muitos Alquimistas do Estado ficaram traumatizados por suas ações na guerra, pois foram forçados a seguir ordens que iam contra suas crenças morais. Isso levou a conflitos internos e crises de consciência que ajudaram no desenvolvimento desses personagens ao longo da série.

O massacre de Ishval é uma das representações mais cruéis do choque entre ciência (na forma de armas militares e alquimia) e religião. Neste contexto, a religião não é apenas um fator espiritual, mas também um símbolo de resistência contra a opressão e a desumanização. O genocídio perpetrado pelo Estado é uma crítica direta ao uso do poder científico e militar sem consideração ética, questionando até que ponto o progresso científico justifica a destruição de culturas e valores espirituais.

Entre a fé e a razão

Fullmetal Alchemist não se sustenta apenas de apresentar a ciência e a religião como forças opostas. Em vez disso, a série expõe as falhas inerentes a cada uma delas quando separadas. Edward Elric frequentemente demonstra um ceticismo que se recusa a aceitar qualquer coisa que não possa ser provada ou quantificada. Como um alquimista em sua essência, ele acredita firmemente no conceito de Troca Equivalente. Dessa forma, ele aborda o mundo cientificamente e tem dificuldades em reconhecer a existência de “milagres” ou “destino”. Dito isso, embora ele professe que não acredita em deuses, suas sensibilidades espirituais tendem mais para o deísmo do que para o ateísmo. Embora inicialmente Edward tenha a crença de que tudo pode ser explicado e resolvido por meio da alquimia, com o tempo ele relutantemente reconhece o fato de que há muitas coisas que existem na vida que ele não pode explicar.

Se pegarmos o comecinho de Fullmetal Alchemist, vamos ver que a série já se inicia justamente desafiando o papel da religião e da fé na sociedade. Edward e Alphonse chegam a uma cidade remota em busca da Pedra Filosofal, atraídos para essa cidade por rumores de um líder religioso chamado Cornello, que supostamente realiza milagres divinos, incluindo ressuscitar os mortos, usando o poder de um deus. Edward rapidamente suspeita que os milagres de Cornello são apenas alquimia disfarçada, alimentada por uma versão da Pedra Filosofal. Cornello está usando esses “milagres” para manipular os habitantes da cidade, cultivando seguidores religiosos que o reverenciam como um profeta. Conforme os eventos se desenrolam, fica claro para Edward e para o público que as intenções de Cornello estão longe de ser benevolentes.

Padre Cornello

Durante a busca, Edward encontra Rose, uma seguidora devota de Cornello, que acredita firmemente em sua promessa de trazer seu falecido amante de volta à vida. Edward descarta sua fé como ingênua, afirmando que Cornello é uma fraude e que suas crenças são equivocadas. Rose defende sua fé, explicando como a fé em Deus eleva o espírito ao fazer com que as pessoas vivam com esperança e gratidão. Edward, cuja visão de mundo é baseada na ciência — representada pela alquimia — responde com uma lição sobre a composição química de um ser humano. Com base em sua própria experiência dolorosa de tentar brincar de Deus, ele insiste que algumas leis não podem ser quebradas e que os chamados milagres de Cornello são meras manipulações da matéria por meio da alquimia.

Para Edward, Cornello e, por extensão, a religião organizada, representam um enorme engano voltado para os incultos e desinformados. Ele acredita que tudo o que existe pode ser explicado por meio de princípios científicos e pensamento racional. Esse confronto entre Edward e Rose é significativo porque não se trata apenas de uma discussão sobre fatos e evidências, mas também sobre esperança, desespero e a necessidade humana de acreditar em algo maior do que si mesmo. Para Rose, a crença em Cornello e na possibilidade de ressuscitar seu amado é uma âncora em sua vida difícil, algo que dá sentido ao seu sofrimento. A resposta de Edward, ao desdenhar sua fé e apresentar argumentos científicos, é lógica e racional, mas também cruel e insensível, pois ignora a importância emocional que a fé tem para Rose.

Essa dinâmica reflete um dilema filosófico clássico: o conflito entre racionalismo e fé. Edward acredita que tudo no mundo pode ser entendido através do conhecimento científico, enquanto Rose representa a visão de que existem forças e mistérios além da compreensão humana. Mas o ponto de vista dela desafia Edward ao sugerir que, mesmo com todo o seu conhecimento e habilidade, ele também está buscando algo que está além de sua compreensão: algo que possa superar os limites da ciência e da alquimia. Qual é a diferença entre Rose, que quer ressuscitar seu amado, e Edward, que literalmente destruiu o corpo do irmão e perdeu dois membros de seu corpo na tentativa de trazer sua mãe de volta? Fullmetal Alchemist mostra que a dependência exclusiva da ciência ou do racionalismo não é suficiente para entender e lidar com as complexidades da vida humana.

O Complexo de Deus

Um ponto crítico para se aprofundar ainda mais nessa relação entre ambição humana e “senso de divindade” está nos vilões da série, os Homúnculos. Essas criaturas são personificações dos maiores pecados da humanidade — Orgulho, Inveja, Ira, Preguiça, Ganância, Luxúria e Gula. Criados por “Pai”, cada um deles representa um fragmento de seu eu dividido e uma manifestação de seu desejo de ascender além das limitações da humanidade. Os homúnculos servem como extensões literais e simbólicas da vontade de Pai de dominar a ordem natural. Nascidos de processos alquímicos que desafiam as leis naturais, eles são a manipulação da vida e da existência em seu nível mais fundamental, motivada pelo desejo de imortalidade e poder divino.

Os Homúnculos

A ambição máxima de Pai é transcender sua própria existência e se tornar um deus. Seu impulso para alcançar isso é alimentado por uma rejeição arrogante de suas origens como o “Anão no Frasco“, uma mera criação buscando se tornar o criador. Seu uso da alquimia vai muito além de seus princípios científicos e chega ao território religioso. Pai acredita que, ao consumir as almas de milhões e aproveitar sua energia coletiva, ele pode contornar as leis da natureza e obter domínio completo sobre a vida e a morte.

Este complexo de Deus que o personagem incorpora tem suas raízes na crença de que a vida humana pode ser quantificada, manipulada e sacrificada em busca do que ele enxerga como perfeição. Pai se vê como o governante legítimo da humanidade e busca remover todas as imperfeições de si mesmo rejeitando as emoções e desejos humanos. Este desejo de autopurificação e elevação à divindade é sua traição máxima ao propósito original da alquimia, que é entender e trabalhar com o mundo natural em vez de dominá-lo.

Quando alquimistas como Pai ou mesmo Edward Elric ultrapassam certos limites éticos, eles enfrentam a tentação de usar seu conhecimento não para servir aos outros, mas para atingir seus próprios fins, muitas vezes ao custo de vidas inocentes.

Fullmetal usa a transmutação da vida humana, seja na criação de homúnculos ou na ressurreição fracassada de entes queridos, como uma metáfora para os perigos desse exagero científico. Assim como os cientistas em nosso mundo lutam com os limites éticos de tecnologias como engenharia genética ou inteligência artificial, os alquimistas na história lutam com as consequências de suas tentativas de brincar de Deus.

O Conceito de Verdade

O conceito de “Verdade” na série é uma representação ambígua, quase divina, que desafia tanto os alquimistas quanto os crentes religiosos a confrontarem suas limitações. Ela é descrita como uma entidade que ultrapassa os limites da compreensão humana, sendo simultaneamente Tudo e Um. Quando os personagens tentam realizar a transmutação humana, eles são forçados a encarar a “Verdade,” que revela a eles a magnitude de suas transgressões e a natureza de suas ambições. Essa entidade serve como um ponto de convergência entre o conhecimento científico e a compreensão espiritual, sugerindo que o verdadeiro conhecimento envolve tanto lógica quanto introspecção moral.

A Verdade se manifesta de uma forma que cada pessoa possa compreender, revelando-se como o preço inevitável da arrogância e como o conhecimento que emerge do desespero. Apesar de ser tudo e saber tudo, também é nada e não sabe nada.

“Eu sou o que você chama de mundo. Ou talvez o universo, ou talvez Deus, ou talvez verdade, ou talvez tudo, ou talvez um… E eu também sou você. Bem-vindo, tolo ignorante que não conhece o seu próprio lugar.”

Fullmetal Alchemist gira muito em torno do equilíbrio, a lei da Troca Equivalente é um retrato disso: você consegue algo ao retornar algo de igual valor, mantendo assim um certo balanço. Isso é adequado para que a série apresente uma perspectiva equilibrada sobre os pontos de vista contrastantes da ciência e da religião. Muitos acadêmicos observam que a ciência e a religião, apesar de suas diferenças, geralmente compartilham objetivos semelhantes — ambas buscam entender e explicar a existência. Enquanto a ciência depende da observação e da experimentação, a religião aborda essas questões por meio de rituais e fé. Em Fullmetal Alchemist, a alquimia é baseada em princípios científicos, mas também carrega uma camada de propriedades místicas. Cada vez que um ritual de alquimia é realizado, ele ativa um portal misterioso chamado O Portão da Verdade. Lá dentro, a pessoa tem acesso a toda a verdade sobre alquimia. É um conhecimento absoluto, mas que tem seu preço. É por isso que Ed perde seu braço, sua perna e seu irmão, Alphonse, perde todo o seu corpo.

É revelado que esse Portão existe dentro de cada humano e a Verdade o considera uma das coisas mais importantes que os humanos possuem. Prova disso é que Ed consegue trocar o seu conhecimento adquirido pelo corpo de seu irmão mais novo, Al.

Embora esse conceito seja complexo para a mente humana, quando um alquimista rompe as leis naturais e confronta a Verdade, ele se vê refletido nela, pois a Verdade é, ao mesmo tempo, o próprio alquimista. Dessa forma, ela transcende a lógica tridimensional, buscando preservar a ordem natural do cosmos, intervindo sempre que alguém tenta manipular almas por meio da Transmutação Humana.

O Portão da Verdade parece ser a fonte das habilidades de um alquimista, permitindo que eles manipulem e transformem a matéria. Mas, apesar de toda uma sociedade científica basear suas crenças em torno desse fenômeno, a verdadeira natureza da Verdade permanece um mistério. Isso reflete a ciência do mundo real, onde muitos princípios são compreendidos por meio da observação, mas algumas questões fundamentais permanecem sem resposta, como buracos negros ou buracos de minhoca na ciência moderna, por exemplo — fenômenos que podemos entender parcialmente, mas cuja natureza completa segue fora da nossa compreensão. No contexto da série, o significado da Verdade se inclina para interpretações espirituais em vez de puramente científicas.

Equilíbrio e Aceitação das Limitações Humanas

A jornada de Edward e Alphonse é marcada por um amadurecimento moral e emocional profundo. No começo da série, ambos são movidos pelo desejo intenso de restaurar seus corpos através da alquimia, sem aceitar as limitações do que é possível e ético. Ao longo da narrativa, os irmãos percebem que buscar a recuperação de seus corpos a qualquer custo leva a decisões moralmente questionáveis e perigosas, tanto para eles quanto para os outros. Edward e Alphonse começam a entender que a vida é algo que não deve ser tratado de forma leviana ou meramente como uma equação que pode ser resolvida com alquimia, chegando a uma compreensão mais equilibrada do mundo. Edward Elric, em particular, passa por uma grande transformação.

Após Alphonse morrer de forma trágica, Edward se vê diante do Portão da Verdade. Ele sabe que essa é sua última chance de trazer seu irmão de volta para o mundo real e então decide fazer um ato de troca equivalente — para obter algo, é preciso dar algo de valor igual em troca. Edward decide oferecer algo que tem um valor enorme para ele: sua habilidade de usar alquimia. Ele declara à Verdade que, em troca do retorno de Alphonse, está disposto a desistir para sempre da capacidade de realizar alquimia. Ed prioriza o valor da vida e das relações humanas, demonstrando que o verdadeiro poder não está apenas no domínio científico, mas muitas vezes na aceitação e no entendimento.

O sacrifício de sua habilidade de usar alquimia é também uma expressão de amor por Alphonse. Edward está disposto a renunciar ao que mais ama para garantir que seu irmão possa viver uma vida plena e saudável. Esse é o maior ato de altruísmo que ele poderia realizar. Ao abrir mão da alquimia, Edward está escolhendo um novo caminho para sua vida, que valoriza mais a experiência humana do que o controle sobre as leis naturais.

Legado

Fullmetal Alchemist deixa um lindo legado como uma obra que, além de entreter, provoca fortes reflexões sobre ciência e religião, algo que ressoa fortemente no mundo real. É legal ver como a série explora esses temas retratando-os não como mutuamente exclusivos, mas como diferentes abordagens para entender o mundo e nosso lugar nele.

Uma das coisas que tornam essa história tão atraente é que ela não reduz essas perspectivas a respostas simples ou diz que uma é superior à outra. Em vez disso, sugere que ambas são limitadas em suas próprias maneiras, cada uma oferecendo verdades parciais sobre a natureza da existência. Edward finalmente percebe que nenhum sistema tem todas as respostas e talvez essa seja a mais poderosa mensagem de sua jornada com Alphonse: não se trata de encontrar respostas definitivas, mas sobre a disposição de continuar buscando, questionando e aprendendo. Sob esta luz, ciência e religião são apresentadas não como caminhos rivais, mas como caminhos paralelos que, em última análise, guiam a humanidade em direção ao mesmo destino: a busca por conhecimento, propósito e autoconsciência. Esta jornada é contínua, e a evolução da humanidade é alimentada pela curiosidade e pela mente aberta para encarar o que há de racional e espiritual na existência.

Em outras palavras, Fullmetal Alchemist sugere que nem a ciência nem a religião detêm o monopólio da verdade. Elas são dois lados da mesma moeda — ferramentas para explorar a complexidade infinita do universo e, em última análise, nós mesmos. É uma história que nos incentiva a abraçar tanto a busca pelo conhecimento quanto a humildade que vem ao consegui-lo, de que sempre haverá mais para descobrir. Portanto, tanto a ciência quanto a fé têm seu lugar na busca pelo sentido da existência, mas a verdadeira sabedoria está em aceitar as limitações humanas, valorizando a vida em todas as suas formas.

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Material de Referência

1 – World History Encyclopedia, Alchemy

2 – Britannica, Philosopher’s Stone

3 – Forbes, Isaac Newton And The Philosopher’s Stone

4 – Inverse, The Hidden Philosophy in Anime: ‘Fullmetal Alchemist: Brotherhood’

5 – Fullmetal Alchemist Wiki Fadom, Ishvalan Religion

6 – Fullmetal Alchemist Wiki Fadom, Ishval Civil War

7 – Legiao dos Herois, A Verdade de Fullmetal Alchemist: Conheça o conceito por trás do misterioso personagem do anime e mangá

8 – Fullmetal Alchemist Brotherhood (Série de TV, 2009-2010)

9 – Fullmetal Alchemist (Mangá, 2001-2003)

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