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Fahrenheit 451: O ato revolucionário de ler

Sabe, blogs podem ainda ser algo moderno, mas, vendo o rumo que as coisas estão tomando hoje em dia, ler já não é algo tão moderno mais. Que fim terão os blogs então? De repente, essa pergunta se tornou bem pertinente para mim porque, bem, eu tenho um blog e gosto bastante dele. Digitalmente falando, não acho que vá existir de fato um “fim”, já que a internet vai sempre proporcionar alguma utilidade para seus sites, mas o ato de ler, este, sim, está tomando um rumo mais trágico. Apesar disso, existe um ruído, um desencontro, quase que como uma dissonância silenciosa em proclamar o “fim” da leitura nos dias atuais. A literatura, que ainda persiste como um recipiente de ideias e narrativas infinitas, tem cada vez mais se parecido a um anacronismo num mundo consumido por conteúdo digital rápido. O livro ainda é um item de sabedoria e admiração para muita gente, mas ler, com profundidade, entrega e solidão, tem se tornado algo cada vez mais estranho. Uma prática em extinção que transforma leitores em seres persistentes de um velho hábito que não se enquadra nas condições modernas das quais vivemos hoje.

Ler. Chega a ser romântica a forma como enxergamos a leitura hoje em dia, não acha? Existe um certo apelo para que a prática não morra, mas às vezes é como se ignorássemos o grande elefante na sala: vivemos em um mundo digital, ansioso e moldado por redes sociais. E essas redes não têm interesse em textos, mas sim em vídeos curtos com pequenas e constantes doses de dopamina. O mundo moderno está aos poucos matando o hábito de ler e a gente nem está se dando conta disso, pois este tem sido um processo extremamente eficaz. Mas vamos voltar um pouco no tempo.

Em maio de 1930, a União dos Estudantes Alemães organizou uma cerimônia pública de queima de livros na Alemanha nazista e na Áustria. Os livros visados ​​para queima eram aqueles vistos como subversivos ou como representantes de ideologias opostas ao nazismo. Isso incluía livros escritos por autores judeus, comunistas, socialistas, anarquistas, liberais, pacifistas, sexólogos, entre outros. Os livros iniciais queimados foram os de Karl Marx e Karl Kautsky, mas passaram a incluir muitos autores, incluindo Albert Einstein, Helen Keller, escritores franceses, ingleses e efetivamente qualquer livro incompatível com a ideologia nazista. Um genocídio cultural.

Não preciso nem lembrar que, mais tarde, o nazismo passou a queimar também seres humanos vivos.

Queima de livros em Berlim. 10 de maio de 1933.

Talvez eu tenha pegado pesado demais com a referência, mas ler, além de ser um ato educador, é e sempre será um ato político. E eu penso como muitos dos problemas modernos poderiam ser resolvidos se as pessoas simplesmente lessem mais, mas o desinteresse em leitura não é exclusivamente culpa nossa. Pode parecer clichê dizer isso, e talvez seja mesmo, mas a verdade é que vivemos em um sistema capitalista e o tipo de pessoas que este sistema quer são consumidores com um único e belo objetivo: ser feliz. Ser insuportavelmente feliz. Ser feliz o tempo todo. Portanto, ler é um grave problema a sistemas como esse, pois a leitura exige que o leitor pare e reflita. E geralmente, quando a gente para e reflete, as coisas começam a cheirar de forma bem esquisita.

Fahrenheit 451

Algum tempo depois da queima de livros organizada pelos nazistas, em 1953, Ray Bradbury publicou uma obra que sintetiza tudo o que foi dito até agora aqui. Fahrenheit 451 é um livro incrível que fala sobre uma sociedade onde os livros são proibidos e homens conhecidos como “bombeiros” queimam qualquer um que encontrem pela frente. Os livros são vistos como anti-felicidade pelas autoridades porque os livros “confundem” os humanos ao fornecer perspectivas diversas, indicando a existência de várias escolhas, um obstáculo visível quando o trabalho das autoridades é entregar essa tal “felicidade”.

No romance de Bradbury, as pessoas se divertem dia e noite olhando para telas gigantes que estão em todos os cômodos de suas casas. E elas interagem entre familiares e amigos por meio dessas telas, por meio de um tipo de “rádio-concha” conectado às paredes.

“Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra de milho do ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movedico, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia.”

Fahrenheit 451

E sim, eu sei o que você está pensando agora.

O protagonista dessa história, Guy Montag, começa como um bombeiro que segue seu dever sem questionar. No entanto, à medida que começa a ler, ele se torna ciente das ideias profundas e diversas contidas nos livros. Esse despertar o leva a questionar o propósito e a moralidade da postura anti-livro de sua sociedade e a dele mesmo. No contexto de Fahrenheit 451, ler se torna um ato de rebelião. O conhecimento e as ideias contidas nos livros ameaçam a uniformidade e a complacência que o governo se esforça para manter. E a transformação de Montag mostra de forma muito efetiva como a leitura promove o pensamento crítico, a autoconsciência e o desejo de mudança. É um poder subversivo que só a leitura tem, e a história escrita por Bradbury ilustra bem o medo que regimes autoritários têm do pensamento livre e o potencial que ele tem de incitar uma revolução. E isso não é só distopia.

Infelizmente, muitas distopias são um espelho de nossa própria história. Veja, até o século XVII, a leitura era limitada a alguns poucos textos, como a Bíblia, que eram frequentemente lidos repetidamente. Intelectuais da classe média começaram a adotar hábitos de leitura extensivos, influenciados pelos jornais, impulsionados pela educação e pela disponibilidade de livros. No século XVIII, livros pequenos e acessíveis estenderam a leitura às classes sociais mais baixas.

Uma mudança significativa ocorreu na publicação e nos hábitos de leitura no final do século XVIII. Tendências como ler ao ar livre surgiram, com as mulheres acessando a literatura por meio de semanais e almanaques, promovendo uma cultura de correspondência. Formatos de livros menores e móveis modernos para leitura tornaram-se populares.

A literatura especializada em religião, direito e medicina diminuiu, enquanto publicações em filosofia, pedagogia, ciências naturais e economia aumentaram devido ao comércio e à diversificação científica. Os romances tornaram-se os favoritos, com bibliotecas de empréstimo satisfazendo o novo público leitor, incluindo classes médias, trabalhadores e artesãos, apesar da proibição das bibliotecas na Áustria (1799-1811). Panfletos e jornais estavam disponíveis em cafés e tabernas.

Uma tradição literária independente desenvolveu-se na Monarquia dos Habsburgo, com uma divisão na alfabetização entre áreas urbanas e rurais. A educação era vista como meio de ascensão social, e ler por prazer tornou-se comum. Reformas democratizaram a educação, expandindo a administração estatal e transformando a educação universitária para formar servidores públicos.

Uma nova classe média educada, incluindo profissionais como advogados, engenheiros e professores, emergiu valorizando a educação e a leitura. Obras literárias eram discutidas em salões, e livros chegavam às áreas rurais através de vendedores ambulantes. A revolução da leitura tornou os livros amplamente acessíveis, inclusive para mulheres, levantando preocupações sobre seu impacto na segurança do Estado.

Jean François de Troy, A Reading of Molière, 1728 

Dentre tantas transformações que a humanidade possui ao longo de sua existência, acho que essa, através da leitura, é uma das mais belas. Durante essa era, a leitura não era apenas uma atividade pessoal, mas uma força coletiva que impulsionava a transformação social. Foi a possibilidade de acessar e se envolver com ideias diversas que empoderou as pessoas a questionar autoridades e defender uma mudança. Ler como ato democrático. Não acha isso bonito?

Bombeiros da Era Moderna

É triste perceber como muitas das coisas que lemos em Fahrenheit estão presentes nas nossas vidas atuais, mesmo que de forma sutil. Bradbury estava preocupado em como digerimos a leitura. Hoje, temos tweets. Ele temia que as pessoas lessem apenas manchetes. Hoje parece que metade das palavras online foram substituídas por emojis e todo jornal eletrônico possui um gigantesco muro chamado paywall. O resultado? Pois é, nós só lemos as manchetes. Quanto mais difícil e chato acessar a leitura, mais difícil e chato se torna o pensamento crítico e mais fácil fica nos controlar.

Bradbury temia a perda de memória. Hoje a gente tem o Instagram como o grande guardião de nossas memórias, emoções, sonhos e fatos. Pelo menos aquelas que queremos mostrar. Quem são os bombeiros da era moderna?

Arrisque fazer uma publicação em sua rede social preferida, com apenas conteúdo escrito, outra com uma imagem e outra com um vídeo. Depois disso, verifique a quantidade de visibilidade que cada uma obtém. Não é segredo nem surpresa nenhuma que o alcance será maior para o vídeo, seguido pela imagem e só depois o post com texto, muito atrás dos outros dois.

Você pode até pensar que isso ocorre porque é assim que consumimos informações e conteúdos, mas a verdade é que quem decide o que a gente vai consumir não somos nós mesmos. À medida que as empresas de mídia social decidem qual publicação sua será exibida com prioridade, elas começaram a empurrar um conteúdo escrito para as margens. Portanto, uma publicação que exige exclusivamente a leitura não vai morrendo porque as pessoas não gostam de ler. Existe um aceleramento nesse processo.

Uma das partes mais bonitas de Fahrenheit 451 ocorre quando Montag lê um poema e uma das amigas de sua esposa começa a chorar. E ela nem sequer sabe o porquê.

-“Ah, amor, sejamos fiéis
Um ao outro! pois o mundo, que parece
Estender-se diante de nós como uma terra de sonhos,
Tão vário, tão belo, tão novo,
Não tem realmente alegria, nem amor, nem luz, Nem certeza, nem paz, nem remédio para a dor
;
E estamos aqui como numa planície sombria
Varrida por alarmes confusos de luta e fuga, Onde cegos exércitos travam combate na noite.”

A sra. Phelps estava chorando.

As outras no meio do deserto observavam o choro da primeira tornar-se muito alto à medida que seu rosto se contorcia e deformava. Ficaram sentadas, sem tocá-la, confusas diante de sua manifestação. Ela chorava de modo incontrolável. O próprio Montag
estava atônito e abalado.

– Ora, ora — disse Mildred. – Já passou, Clara. Ora, vamos, Clara, recomponha-se! Clara, o que há de errado?
– Eu… eu — soluçou a sra. Phelps — não sei, não sei, eu só… não sei, ai, ah…

Fahrenheit 451

E ainda há quem se pergunte por que andamos tão ansiosos. Nesse sentido, ler vai além das palavras, é preciso aprender a ler para que possamos ler também o mundo ao nosso redor. Como Paulo Freire nos ensinou: A leitura do mundo precede a leitura da palavra.

No fundo, eu tento acreditar que Bradbury não achava realmente que o mundo se tornaría assim. Que seus bombeiros realmente existissem. Que o entretenimento substituísse a leitura e o pensamento. Que votaríamos em governos que nos mantém felizes ao invés de informados. Será que ele imaginou que abriríamos mão de nossa privacidade e liberdade para empresas de tecnologia? 

Vivemos em meio a um grande incêndio.

“Agora, vamos subir o rio — disse Granger. – E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros à mão, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando nos perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando.
É aí que, no longo prazo, acabaremos vencendo. E algum dia a lembrança será tão intensa que construiremos a maior escavadeira da história e cavaremos o maior túmulo de todos os tempos e nele jogaremos e enterraremos a guerra. Agora, em marcha. Primeiro, construiremos uma fábrica de espelhos, e durante o próximo ano não produziremos nada além de espelhos, e daremos uma longa olhada neles.”

Fahrenheit 451

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Obrigado por chegar até aqui! Espero que tenha gostado do papo e te convido a dar uma olhada nos outros textos do blog. O livro Fahrenheit 451 é uma obra que eu super indico e espero que o texto não tenha estragado tanto a sua experiência caso queira ler pela primeira vez algum dia. O link para o livro na Amazon é este aqui, e o preço por lá é bem justo.

Existe um filme também, lançado em 2018, o qual, para ser sincero, nunca assisti. De qualquer forma, pode talvez servir como um incentivo à leitura do livro 🙂

Um forte abraço!

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Material de Referência

1 – Fahrenheit 451, por Ray Bradbury (https://amzn.to/4ftQmRb)

2 – Nazi Book Burning, Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Nazi_book_burnings)

3 – “Book Burning”, Holocast Encyclopedia (https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/book-burning)

4 – “I want more! The revolution in reading in the eighteenth century”, The world of The Habsburgs (https://www.habsburger.net/en/chapter/i-want-more-revolution-reading-eighteenth-century)

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