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Como Dungeons & Dragons Explica a Evolução Humana: Ficções Compartilhadas, Laços Sociais e Imaginação Coletiva

Voce já jogou Dungeons & Dragons? Carinhosamente conhecido como D&D, esse é um jogo de interpretação de papéis (RPG – Role Play Game) de mesa colaborativo, onde os jogadores criam personagens únicos, embarcam em aventuras e exploram um mundo de fantasia cheio de magia, monstros e mistérios. Um dos jogadores assume o papel de Mestre do Jogo (ou Dungeons Master, DM), atuando como narrador e árbitro, descrevendo o cenário e guiando a narrativa, enquanto os outros jogadores tomam decisões, resolvem problemas e enfrentam combates com seus personagens.

O jogo utiliza rolagens de dados e regras para determinar os resultados. Os jogadores enfrentam uma variedade de desafios, desde batalhas contra criaturas até exploração de masmorras e resolução de enigmas complexos. D&D valoriza criatividade, trabalho em equipe e imaginação, oferecendo uma combinação de narrativa, estratégia e sorte. A natureza aberta do jogo permite possibilidades infinitas e experiências únicas a cada sessão.

Yuval Harari

Em seu famoso (e polêmico) livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, o historiador Yuval Noah Harari argumenta que o domínio da espécie humana não se deve apenas às nossas capacidades físicas ou cognitivas, mas sim à nossa capacidade única de acreditar em ficções compartilhadas. Conceitos como religião, dinheiro e Estado (construções abstratas que existem apenas porque os humanos coletivamente acreditam nelas) são algumas das ferramentas mais poderosas de coesão social. Curiosamente, um paralelo moderno dessas ficções compartilhadas pode ser encontrado em Dungeons & Dragons.

D&D é mais que um jogo de mesa: é a materialização da capacidade única da humanidade de imaginar e compartilhar mundos fictícios. E se examinarmos como ele funciona, podemos melhorar nossa compreensão sobre o desenvolvimento da linguagem, hierarquias sociais, empatia e resolução coletiva de problemas, estes, elementos fundamentais na evolução humana. É o que vamos explorar aqui hoje: como um jogo de RPG pode lançar luz sobre as grandes questões do passado, presente e futuro da humanidade.

Realidades Imaginadas e Compartilhadas: A Base da Sociedade

No D&D, os jogadores se envolvem em um mundo de fantasia regido por regras e repleto de histórias, cooperando para contar uma história principal que existe apenas dentro de sua imaginação coletiva. De forma semelhante, os humanos, desde a pré-história, começaram a criar narrativas compartilhadas, sobre deuses, ancestrais ou até mesmo animais, que ajudaram a solidificar os laços de grupo. Essas histórias proporcionavam objetivos e significados comuns, ajudando a alinhar as ações dos indivíduos em torno de valores coletivos. Assim como os jogadores em D&D aceitam as regras fictícias de seu universo compartilhado, os primeiros humanos construíram estruturas sociais que trouxeram coerência para suas tribos e, posteriormente, para todas as civilizações do planeta.

No jogo, os jogadores atribuem frequentemente significados aos seus personagens e ao mundo, formando laços com conceitos abstratos como “honra”, “destino” e “amizade”. Esses conceitos, embora fictícios no contexto de D&D, possuem equivalentes na sociedade humana que ajudaram a definir as estruturas de confiança e cooperação necessárias para o funcionamento das comunidades. O conceito de dinheiro, por exemplo, como uma “peça de ouro” em D&D, só funciona porque todos concordam que aquilo tem valor dentro da narrativa. Esse é o mesmo princípio da afirmação de Harari de que mitos compartilhados moldam a realidade. O dinheiro na vida real não possui um valor natural, não se planta dinheiro. Seu valor, portanto, é dado a partir do momento em que a sociedade concorda em atribuir poder de compra a ele.

“O dinheiro é mais aberto do que a linguagem, leis estaduais, códigos culturais, crenças religiosas e hábitos sociais. O dinheiro é o único sistema de confiança criado por humanos que pode preencher quase qualquer lacuna cultural e que não discrimina com base em religião, gênero, raça, idade ou orientação sexual. Graças ao dinheiro, mesmo pessoas que não se conhecem podem, no entanto, cooperar efetivamente” – Yuval Harari

O Papel das Hierarquias e Funções Sociais e o poder do acaso

As sociedades humanas sempre se organizaram em torno de hierarquias sociais, que estabelecem papéis, responsabilidades e dinâmicas de poder. No D&D, os jogadores assumem papéis como “paladino”, “mago”, “guerreiro”, ou até mesmo “humano”, cada um com habilidades, limitações e responsabilidades distintas dentro do grupo e da sociedade. Isso reflete a necessidade evolutiva de que indivíduos adotem diferentes funções em suas comunidades, como caçadores, curandeiros ou líderes. Essa divisão de trabalho e especialização aumentava as chances de sobrevivência das primeiras sociedades humanas, assim como aumenta a probabilidade de sucesso de um grupo de D&D enfrentando um dragão, por exemplo.

A hierarquia e a divisão de papéis em D&D também são um paralelo ao impulso humano de estabelecer estruturas sociais. O Mestre de Jogo desempenha um papel especialmente importante, atuando como criador e aplicador das regras, similar à função de líderes religiosos ou chefes nas sociedades antigas. O papel do Mestre ajuda a manter a coerência e a previsibilidade no mundo do jogo, assim como os líderes mantêm normas sociais que orientam a ação coletiva.

Além disso, existe outro aspecto interessante de se observar dentro da dinâmica de Dungeons & Dragons: A rolagem de dados. No D&D, os dados servem como os árbitros finais do destino, introduzindo um elemento de aleatoriedade e sorte que reflete a natureza imprevisível da vida. Cada rolagem de dado, seja um acerto crítico ou uma tentativa falha, altera o curso do jogo, lembrando os jogadores de que nem tudo pode ser controlado ou previsto. Essa aleatoriedade é também um aspecto fundamental da existência humana: a incerteza do futuro e o papel que o acaso desempenha no nosso sucesso ou fracasso. Assim como no jogo, onde os jogadores precisam se adaptar a resultados inesperados, nós, seres humanos, sempre tivemos que nos virar em um mundo onde a sorte, os acidentes e as forças externas podem mudar drasticamente o rumo de nossas vidas. Os dados, nesse sentido, simbolizam os fatores imprevisíveis que moldam nossos destinos, seja em batalhas, relacionamentos ou empreendimentos pessoais, mas também destacam nossa resiliência e nossa capacidade de nos adaptarmos a desafios que estão além do nosso controle. Assim como uma rolagem falhada pode levar a oportunidades ou desafios inesperados em Dungeons & Dragons, as incertezas da vida nos empurram a crescer, a nos adaptar e a inovar diante do desconhecido.

Cooperação e Solução Coletiva de Problemas

A colaboração é essencial para qualquer grupo de D&D, assim como é para qualquer sociedade humana bem sucedida. Da mesma forma que os personagens do jogo precisam cooperar para superar obstáculos juntos, os primeiros humanos tiveram que aprender a colaborar para caçar, obter recursos e afastar predadores. Alguns pesquisadores entendem que a necessidade de cooperação pode ter impulsionado o desenvolvimento da linguagem e outras habilidades cognitivas únicas dos humanos.

A jogabilidade de D&D enfatiza essa colaboração através de encontros e desafios que exigem trabalho em equipe, estratégia e o aproveitamento das habilidades específicas de cada personagem, combinado, claro, com um pouquinho de sorte. Portanto, nem sempre o sucesso de uma aventura vai depender de um personagem individual, mas sim dos esforços combinados do grupo, refletindo como as comunidades humanas historicamente combinaram recursos e habilidades para enfrentar desafios complexos. É fácil ver essa dinâmica de cooperação como um eco dos esforços coletivos que impulsionaram o desenvolvimento humano, desde a organização de grupos de caça até a fundação de civilizações.

Empatia, Narrativa e a Expansão da Imaginação Humana

Acredita-se que a experiência com narrativas fictícias pode ter um impacto importante e profundo em como as pessoas se sentem e se comportam em suas vidas diárias. Um estudo publicado na National Library of Medicine, chamado “How Does Fiction Reading Influence Empathy? An Experimental Investigation on the Role of Emotional Transportation”, sugere que as narrativas ficcionais fornecem percepções pessoais e, portanto, são importantes para as pessoas aprenderem sobre si mesmas. Um dos questionamentos do estudo é se a experiência de ler ficção influencia a empatia do leitor. Foi sugerido que as pessoas que leem muita ficção se tornam mais empáticas, porque a ficção é uma simulação de experiências sociais, nas quais as pessoas praticam e aprimoram suas habilidades interpessoais.

Um dos aspectos mais profundos de D&D é seu incentivo à empatia por meio da narrativa. Os jogadores habitam personagens com diferentes origens, motivações e perspectivas, promovendo uma empatia imaginativa que espelha o desenvolvimento da empatia social nos humanos. Ao entender e experimentar o “outro”, as pessoas são capazes de construir laços sociais que transcendem os vínculos familiares. Uma característica essencial para o desenvolvimento de sociedades maiores, mais justas e mais complexas.

Essa empatia imaginativa é paralela ao papel que mitologias e narrativas religiosas desempenharam na história humana. Na Grécia antiga, por exemplo, a mitologia era central para a formação de identidades pessoais e coletivas. Os mitos gregos, particularmente aqueles envolvendo deuses e heróis como Odisseu, Aquiles e Hércules, ensinavam lições morais sobre coragem, sacrifício, honra e falhas pessoais. Esses contos forneciam às pessoas arquétipos morais e estruturas para comportamento ético, influenciando tudo, desde decisões pessoais até estruturas sociais. Eles ilustravam emoções e relacionamentos humanos complexos, ajudando os indivíduos a desenvolver empatia ao se conectar com as lutas e virtudes de figuras míticas.

Assim como nos mitos das culturas antigas, D&D também encoraja os jogadores a se projetarem nas histórias, a se colocarem no lugar de outros e a pensar de forma abstrata e moralmente complexa. Essa flexibilidade imaginativa é um marco da evolução cognitiva humana, pois permitiu que os humanos visualizassem realidades além das preocupações imediatas de sobrevivência, contribuindo para a criação de arte, filosofia e governança.

A Busca por Significado e Dungeons & Dragons como Modelo para o Futuro da Humanidade

Por fim, é justo dizer que D&D oferece aos jogadores um aspecto fundamental da experiência humana: a busca por significado. Cada campanha gira em torno de uma jornada com um objetivo ou propósito, assim como a eterna e filosófica busca da humanidade por sentido na vida. Isso também reflete um dos argumentos de Harari, de que os humanos constantemente procuram significado através de histórias que nos ajudam a entender nosso lugar no mundo.

Esse elemento da “missão” em D&D retrata a tendência humana de criar rituais, buscar propósito e estabelecer estruturas morais. Assim como no jogo você precisa se esforçar para alcançar seus objetivos, muitas vezes exigindo que façamos sacrifícios ou enfrentemos dilemas éticos, os seres humanos também constroem narrativas que os ajudam a confrontar as incertezas e complexidades morais da existência.

D&D é um jogo incrível! E é um espelho muito interessante para a nossa herança evolutiva. O jogo demonstra, de forma fluida e divertida, as mesmas ficções compartilhadas, os papéis sociais, as habilidades de cooperação e a busca por significado que permitiu a raça humana formar sociedades e estabelecer culturas. Se pensarmos no mundo atual, formado por realidades abstratas e digitais, D&D é também um meio interessante de vislumbrarmos o futuro. À medida que a tecnologia permite formas cada vez mais complexas de ficções compartilhadas, como realidade virtual ou inteligência artificial, as habilidades que o RPG de mesa promove em narrativa colaborativa, empatia e imaginação são mais valiosas do que nunca.

Nas palavras de Harari, os humanos são “animais contadores de histórias”. Dungeons & Dragons é um modelo dessa narrativa. Seu universo único e especial de elfos, dragões e magia pode parecer ‘bobo’, mas é um espaço onde os jogadores experimentam uma simulação em pequena escala da própria evolução humana, através de ficções compartilhadas, formando laços sociais e imaginando novas possibilidades. D&D, visto por esse ângulo, não é apenas um jogo: é um retrato do que significa ser humano.

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Material de Referência

  1. National Library of Medicine, “How Does Fiction Reading Influence Empathy? An Experimental Investigation on the Role of Emotional Transportation”
  2. Jewish Women of Words, “Are We The Stories We Tell About Ourselves?”
  3. Psychology Today, “In Harari’s Sapiens, Meaning of Life Is Just a Delusion”
  4. Open the Magazine, “Yuval Noah Harari: Humanity’s Storyteller”
  5. Smithsonian Magazine, “What Makes Humans Different? Fiction and Cooperation”
  6. LitCharts, “Fiction, Cooperation, and Culture”
  7. History Rise, “The Role of Myths in Ancient Greece: Multifaceted, Serving!”
  8. Civilization Chronicles, “The Importance of Myth in Identity: Shaping Our Cultural Narratives”
  9. Yuval Noah Harari, “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”

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