
Feminismo em Splatter: A Visão de Coralie Fargeat em ‘A Substância’
Acho que dá para dizer com tranquilidade que o filme ‘A Substância’ (2024) representa um marco no cinema de horror contemporâneo, consolidando Coralie Fargeat como uma das vozes mais importantes do cinema feminista. O primeiro texto sobre o filme aqui na Olhe Novamente observou a obra por uma perspectiva semiótica, o que faz todo o sentido, mas dessa vez volto ao filme para analisar como a diretora utiliza elementos do body horror para criar uma poderosa crítica às pressões estéticas e sociais impostas às mulheres, especialmente em Hollywood, continuando o projeto estético iniciado com seu muito bom filme de estreia, Vingança.

A Herança do Horror Feminista de Coralie Fargeat
A emergência de Coralie Fargeat no cenário cinematográfico internacional começou com Vingança (2017), um thriller de vingança que redefiniu o subgênero ao incorporar uma perspectiva decididamente feminista. Diferentemente de suas contrapartes masculinas, Fargeat trouxe para o centro da narrativa não apenas a violência gráfica, mas uma profunda reflexão sobre o olhar masculino e a objetificação do corpo feminino.
Com A Substância, Fargeat expande significativamente seu vocabulário cinematográfico, utilizando o body horror como veículo para examinar as pressões sociais que impelem mulheres a transformações corporais extremas em busca de aceitação. A diretora se estabelece como uma auteur que utiliza a linguagem do horror para desconstruir expectativas patriarcais.

Fargeat se insere em uma importante onda de cineastas que está revolucionando o cinema de gênero com perspectivas feministas, ao lado de nomes como Julia Ducournau (Titane, Raw), Jennifer Kent (O Babadook) e Rose Glass (Saint Maud). Estas diretoras transformam o horror em um espaço privilegiado para explorar as ansiedades contemporâneas femininas, subvertendo convenções e criando uma nova linguagem estética.
Em Vingança, Coralie subverte o gênero rape-revenge ao apresentar uma protagonista que se recusa a ser vitimizada, transformando a violência estilizada em ferramenta de empoderamento. Já A Substância amplia essa discussão ao mergulhar no body horror como crítica ao etarismo e às exigências de juventude impostas às mulheres, explorando de forma visceral as consequências da transformação corporal.
A Premissa de A Substância: Body Horror como Crítica Feminista
Em A Substância, acompanhamos Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma estrela de TV de meia-idade que vê sua carreira desmoronar quando é demitida de seu programa de exercícios por ser considerada “velha demais”. Desesperada, ela recorre a uma misteriosa substância que permite criar Sue (Margaret Qualley), uma versão mais jovem e idealizada de si mesma. O que começa como uma alternância controlada entre as duas identidades logo se transforma em um pesadelo de mutilação corporal e horror psicológico.
A narrativa é intencionalmente minimalista em diálogos, privilegiando a expressão visual através de transformações corporais gráficas e simbolismo visual. Fargeat confia na linguagem cinematográfica para transmitir sua crítica feminista, em vez de expô-la através de explicações verbais.
O filme aborda a dualidade explorando a fragmentação da identidade feminina entre o eu autêntico e o eu socialmente aceitável, recurso narrativo visualizado pela presença de duas atrizes. Essa cisão se articula à transformação, em que a metamorfose física surge como metáfora para os sacrifícios extremos exigidos das mulheres na busca por relevância social e profissional. Ao mesmo tempo, a crítica social se manifesta por meio do horror corporal, que externaliza a violência sistêmica imposta ao corpo feminino por padrões inalcançáveis de beleza e juventude.
A premissa de A Substância permite que Fargeat explore não apenas o medo do envelhecimento, mas também a relação parasitária que se estabelece entre o ideal de beleza e o eu autêntico, em que um literalmente consome o outro para sobreviver.
Temas Feministas: Etarismo, Padrões de Beleza e o Olhar Masculino
A demissão de Elisabeth por “envelhecimento” funciona como uma poderosa alegoria para o etarismo sistêmico em Hollywood, onde atrizes frequentemente veem suas carreiras encurtadas por padrões de beleza impossíveis. A personagem de Moore é literalmente substituída por uma versão mais jovem de si mesma, um reflexo direto das práticas da indústria do entretenimento, onde mulheres são regularmente descartadas quando ultrapassam certa idade.
“O filme foi feito para expressar tudo o que eu sentia que precisava ser dito, sem nenhuma restrição, porque ele é fundamentalmente sobre a violência do controle, sobre como nos dizem para sermos delicadas. Pense no passado, quando as mulheres tinham que usar roupas que apertavam tudo. Eu realmente queria colocar isso para fora. Queria explodir e despedaçar tudo de uma forma violenta e intransigente, porque, para abalar isso, precisamos de um terremoto, de um tsunami.” – Coralie Fargeat
O filme funciona como uma poderosa crítica ao que Laura Mulvey teorizou como “o olhar masculino” no cinema. Fargeat inverte esse olhar objetificador ao mostrar, de forma visceral e grotesca, as consequências físicas e psicológicas de tentar se adequar a padrões de beleza impossíveis. As sequências de transformação entre Elisabeth e Sue expõem o processo doloroso e mutilador frequentemente escondido por trás da aparente “perfeição” exibida em revistas e telas. Os números falam por si só.
- Segundo análise do Washington Post, com base em dados do IMDB entre 1920 e 2011, atrizes com mais de 40 anos passaram a ter apenas 20 % dos papéis principais, enquanto atores do mesmo grupo etário receberam 80 % desses papéis.
- Estudo da International Federation of Actors indica que 63,8 % das mulheres na indústria de performance têm carreiras de 11 a 15 anos, contra 51,2 % dos homens – uma diferença de 12,6 p.p., indicando que mulheres têm carreiras mais curtas em média que os homens.
- Já outros estudos indicam que filmes com elencos predominantemente femininos recebem até 149 % mais críticas hostis e 44 % mais críticas benevolentes, sugerindo uma atenção acentuada à aparência ou estereótipos de gênero.
O filme estabelece conexões claras também com o movimento #MeToo e as lutas feministas contemporâneas, apontando como o sistema de entretenimento perpetua ciclos de abuso e exploração do corpo feminino. Fargeat usa o horror como veículo para uma crítica incisiva às estruturas de poder que permitem essa exploração.
Body Horror como Veículo Feminista
A originalidade de A Substância reside na forma como Fargeat se apropria do body horror, tradicionalmente associado a cineastas como David Cronenberg, e o reconfigura como uma linguagem explicitamente feminista. Se Cronenberg explorou ansiedades relacionadas à tecnologia e à sexualidade através de transformações corporais, Fargeat direciona essa estética para externalizar as violências específicas impostas ao corpo feminino.
As cenas de transformação entre Elisabeth e Sue são deliberadamente perturbadoras e viscerais: pele que se desprende, corpos que se fragmentam, sangue e fluidos corporais que escorrem em excesso. Essa abordagem splatter não é gratuita, ela materializa visualmente o trauma físico e psicológico de tentar habitar padrões impossíveis de beleza.

Quando escolhe mostrar a carne literalmente rasgada, órgãos expostos e corpos mutilados, Fargeat transforma o horror corporal em uma poderosa metáfora visual para a violência autoinfligida que muitas mulheres exercem sobre si mesmas na tentativa de corresponder às expectativas sociais. O corpo feminino se torna, simultaneamente, campo de batalha e arma de resistência.
O filme então aborda de forma alegórica as cirurgias estéticas como uma forma de automutilação socialmente aceita e até incentivada, explorando o horror do envelhecimento, no qual a transformação corporal simboliza o pânico cultural em relação ao envelhecimento visível das mulheres. Por meio da manipulação midiática, a mídia estabelece ideais femininos impossíveis que fragmentam a identidade e promovem alienação, enquanto a identidade dividida de Elisabeth e Sue ilustra a fragmentação da subjetividade feminina sob pressão social. Ao mesmo tempo, o filme denuncia a exploração comercial do corpo feminino como uma commodity, cujo valor é determinado pela conformidade a padrões masculinos.
“O body horror pode ser uma arma de expressão muito poderosa para diretoras. Desde jovem, eu era atraída por universos próprios. Sentia que não me encaixava. Sempre gostei de brincar com brinquedos de meninos e assistir aos filmes deles, em vez de brincar de boneca ou cozinhar, o que nunca foi minha praia. Isso moldou profundamente a minha compreensão de como eu poderia ocupar espaços públicos e me expressar.” – Coralie Fargeat.
Estilo Visual e Narrativo: Inovações Cinematográficas
Fargeat estabelece uma estética distintiva em A Substância que serve perfeitamente ao seu propósito temático. A diretora utiliza closes extremos, mudanças abruptas de cor e uma cinematografia que alterna entre o hiper-realismo e imagens quase alucinatórias para criar uma experiência imersiva e desorientadora.
Paleta de Cores: Uso estratégico de amarelo, vermelhos saturados e azuis neon que evocam simultaneamente glamour televisivo e horror visceral, criando um contraste entre superfície sedutora e realidade grotesca.
Cinematografia: Transições entre planos extremamente amplos (estúdios de TV vazios) e closes claustrofóbicos (detalhes corporais) que reforçam a tensão entre exposição pública e trauma íntimo.
Montagem: Ritmo que alterna entre contemplativo e frenético, com cenas de transformação que se alongam deliberadamente para maximizar o desconforto e confrontar o espectador.
“O amarelo parecia certo para ela. Queria que a colocasse em um espaço quase de super-heroína, representando Elisabeth Sparkle antes de sua transformação. Outras cores são escolhidas de forma mais consciente: eu sabia que queria que Sue tivesse a feminilidade vibrante do rosa, que é um dos símbolos mais antigos desse tipo de coisa.” – Coralie Fargeat.
A própria estrutura narrativa do filme é meticulosamente construída para reforçar o tema da dualidade. O roteiro de Fargeat cria um jogo de espelhos onde Elisabeth e Sue representam faces opostas da mesma moeda, inicialmente complementares, mas progressivamente antagônicas. A relação simbiótica que degenera em parasitismo funciona como metáfora para a forma como a obsessão por juventude consome e destrói a identidade autêntica.
Muito notável também é como Fargeat utiliza o som para amplificar o impacto visual. A trilha sonora alterna entre música eletrônica pulsante e longos momentos de silêncio desconfortável, enquanto os efeitos sonoros das transformações corporais são deliberadamente amplificados para maximizar o impacto visceral.
Performances e Dinâmicas entre Personagens
O desempenho de Demi Moore como Elisabeth Sparkle representa um dos pontos altos de sua carreira, oferecendo uma interpretação multifacetada que transcende o simples realismo para atingir dimensões quase míticas. Ao incorporar uma mulher lutando contra sua própria obsolescência social, Moore utiliza sua própria trajetória em Hollywood para trazer autenticidade à personagem, criando camadas de meta-comentário sobre a indústria cinematográfica.
Margaret Qualley, como Sue, emprega uma fisicalidade instintiva e inquietante que complementa perfeitamente a vulnerabilidade emocional de Moore. Sua performance oscila entre inocência e predação, evocando a forma como a juventude é simultaneamente idealizada e temida na cultura contemporânea.


Elisabeth e Sue vivem uma relação de dependência mútua, na qual Elisabeth precisa de Sue para manter sua relevância profissional, enquanto Sue depende do corpo de Elisabeth para existir. Essa dinâmica se insere em uma lógica de competição, já que ambas lutam pelo mesmo espaço social e profissional, refletindo a rivalidade intergeracional fomentada pelo patriarcado. Ao mesmo tempo, Sue funciona como um reflexo de tudo que Elisabeth foi condicionada a desejar ser novamente, atuando como um espelho distorcido de seu passado. O processo de transformação entre elas se torna cada vez mais parasitário, com uma identidade literalmente consumindo a outra.
A tensão entre Moore e Qualley na tela cria uma dinâmica fascinante que transcende o simples conflito. Elas personificam as dualidades fundamentais do filme: juventude/idade, aceitação/rejeição, autenticidade/performatividade. A química entre as duas atrizes consegue transmitir tanto a atração quanto a repulsa que caracteriza essa relação simbiótica, tornando tangível o complexo relacionamento entre mulheres e suas próprias imagens idealizadas.
“Foi ótimo que as duas mulheres tenham trabalhado tão bem juntas. Foi uma combinação inesperada, mas quando se encontraram, houve uma química instantânea. Margaret também é uma atriz muito instintiva e inteligente. Ela sabe como contar uma história com o corpo. Ela deu vida a essa criatura surreal.” – Coralie Fargeat.

‘A Substância’ no Contexto da Evolução do Horror Feminista
2017: Vingança
Fargeat estreia com thriller de vingança que subverte o male gaze e estabelece sua estética visual hipersaturada.
2018-2023: Desenvolvimento
Período de desenvolvimento de A Substância, coincidindo com movimento #MeToo e debates sobre representação feminina.
Maio 2024: Estreia em Cannes
A Substância estreia no Festival de Cannes, recebendo o prêmio de Melhor Roteiro e gerando controvérsia por suas cenas gráficas.
Setembro 2024: TIFF
Apresentação no Festival Internacional de Cinema de Toronto, consolidando sua posição como marco do cinema de horror feminista.
‘A Substância’ representa uma evolução significativa na estética feminista que Fargeat começou a desenvolver em Vingança. Se seu filme de estreia utilizava a estrutura da narrativa de vingança para subverter expectativas de gênero, A Substância amplia seu escopo incorporando elementos do body horror para criar uma crítica social mais abrangente e visceral.
O filme se insere em uma linhagem de horror feminista contemporâneo que inclui também outras obras como Titane e Raw de Julia Ducournau, Saint Maud de Rose Glass, e Prevenge de Alice Lowe. Estas obras compartilham uma abordagem que utiliza o corpo feminino como local de horror, resistência e transformação, recusando-se a tratar personagens femininas como meras vítimas passivas.

A contribuição de Coralie Fargeat para o gênero está em sua combinação de crítica social com imagens visceralmente impactantes, utilizando o excesso visual não como exploração, mas como ferramenta para tornar visíveis violências sistêmicas frequentemente invisibilizadas.
Desafios e Insights de Produção
A produção de ‘A Substância’ enfrentou diversos desafios significativos, entre eles a morte do ator Ray Liotta durante as filmagens. Inicialmente escalado para interpretar o executivo de TV que demite Elisabeth, seu papel foi posteriormente assumido por Dennis Quaid após sua trágica perda. Esta mudança forçada exemplifica a resiliência da equipe em face de circunstâncias imprevistas.
Os efeitos práticos de maquiagem e próteses em A Substância foram criados pela renomada equipe de efeitos especiais do Studio ADI, os mesmos responsáveis por filmes como Alien e The Thing. Fargeat optou por utilizar predominantemente efeitos práticos em vez de CGI para manter a tangibilidade física do horror corporal.
As complexas sequências de transformação corporal representaram um desafio técnico e logístico formidável. Segundo relatos da produção, algumas cenas de metamorfose exigiram até 12 horas de aplicação de próteses e maquiagem nas atrizes, com sessões de filmagem que frequentemente se estendiam por 18 horas. Tanto Moore quanto Qualley descreveram o processo como fisicamente exaustivo mas artisticamente gratificante.
Fargeat é conhecida por sua abordagem colaborativa à produção cinematográfica, trabalhando com um coletivo informal de cineastas chamado “La Squadra”. Este grupo, que inclui outros diretores franceses como Julia Ducournau e Yann Gonzalez, compartilha recursos, conhecimento e apoio mútuo, representando um modelo alternativo de produção cinematográfica que prioriza a visão artística sobre pressões comerciais.
Manifesto Feminista Radical no Horror
‘A Substância’ representa muito mais que um simples filme de horror, é um manifesto visual sobre a condição feminina contemporânea. Através de sua estética visceral e sua narrativa meticulosamente construída, Coralie Fargeat cria uma obra que funciona simultaneamente como entretenimento de gênero e como crítica social incisiva, desafiando espectadores a confrontarem as violências normalizadas que a sociedade impõe aos corpos femininos.
Fargeat promove uma verdadeira transformação do gênero, redefinindo as possibilidades do horror corporal ao infundi-lo com perspectivas feministas explícitas e expandindo o potencial político do estilo. O filme também gera um impacto cultural ao transcender seu status de obra de gênero, funcionando como catalisador de discussões sobre etarismo, padrões de beleza e exploração comercial do corpo feminino. Nesse sentido, A Substância consolida o legado cinematográfico de Fargeat, estabelecendo-a como uma voz essencial no cinema contemporâneo e consolidando uma estética distintamente feminista no horror que inspira novas gerações.

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