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“A Substância” (2024) pelas lentes da Semiótica

A Substância (2024), de Coralie Fargeat

É, parece que temos mais um ótimo candidato a filme do ano. Eu não sei em qual momento você está lendo esse texto ou como chegou até aqui, mas este ano de 2024 já me entregou meu filme favorito até agora: A Substância, de Coralie Fargeat. Puts, que filme bom! A obra faz parte de um subgênero do terror que conhecemos como body horror, que são filmes que exploram o medo e a repulsa que surgem ao ver o corpo humano alterado de formas grotescas ou perturbadoras, muitas vezes misturando elementos de nojo, dor e transformação.

Esse medo explorado no body horror também está profundamente ligado à fragilidade do corpo, à perda de controle sobre ele e à ruptura dos limites entre o que é humano e o que é monstruoso. É bem isso o que A Substância nos entrega.

Sabe, na superfície, esse filme é como se apresenta mesmo: uma narrativa muito bem montada que critica a obsessão da indústria do entretenimento com a juventude e a beleza. Acompanhamos Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma celebridade em declínio que foi pega de surpresa ao ser demitida de seu programa fitness na televisão. Desesperada por um novo começo e sentindo a pressão da idade, ela decide experimentar uma droga do mercado clandestino que promete replicar suas células, criando temporariamente uma versão mais jovem e “mais bela” de si mesma.

Você já sonhou com uma versão melhor de si mesmo? Mais jovem, mais bonita, mais perfeita. Uma única injeção desbloqueia seu DNA, iniciando uma nova divisão celular, que liberará outra versão de si mesmo. Esta é a Substância. Você é a matriz. Tudo vem de você. Tudo é você. Esta é simplesmente uma versão melhor de si mesmo. Você só precisa compartilhar. Uma semana para um e uma semana para o outro. Um equilíbrio perfeito de sete dias cada. A única coisa a não esquecer: Você. É. Um. Você não pode escapar de si mesmo.

No entanto, a atriz passa a se ver dividida entre suas duas versões, sendo sua segunda parte, Sue, vivida por Margaret Qualley. Ambas devem coexistir em meio aos desafios da fama e da identidade mas Sue aparenta querer cada vez mais e mais independência de Elisabeth.

Demi Moore (esquerda) | Margareth Qualley (direita)

Uma coisa interessante de se perceber nas críticas desse filme é que todas têm basicamente a mesma interpretação. E não tem nada de errado nisso, A Substância é um filme que deixa muito claro o que quer discutir já logo no começo e faz isso muito bem, pois possui um domínio de linguagem extremamente assertivo.

Existe um conceito bem interessante e que se relaciona bastante com essa linguagem: a semiótica. Acredito que, por suas lentes, podemos entender melhor por que instantaneamente assimilamos o filme às críticas sobre os padrões de beleza feminina na sociedade. É o que vamos explorar nesse texto.

O estudo da semiótica se dá através das teorias de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce, que funcionam como estruturas valiosas para esse filme, já que elas oferecem alguns insights sobre como signos e símbolos são empregados em sua narrativa.

🚨 Ah! Um alerta: Daqui para frente haverá muito spoiler de A Substância!

A semiótica saussuriana: significante e significado

A teoria semiótica de Ferdinand de Saussure é uma parte fundamental do campo da linguística estrutural e da semiologia (ou semiótica), que é o estudo dos signos e de seus sistemas. Saussure é frequentemente considerado um dos fundadores da linguística moderna, e suas ideias sobre a linguagem como um sistema de signos revolucionaram a forma como pensamos sobre a comunicação e a produção de significado. Ele divide seu conceito em dois componentes: o significante, que é a forma que o signo assume, como, por exemplo, a palavra árvore e o significado, o conceito que ele representa e que é evocado na mente das pessoas; no caso do nosso exemplo, seria a imagem real de uma árvore, com suas folhas, galhos, etc.

Quando olhamos para um filme seguindo essa perspectiva, cada elemento pode ser visto como um signo. Assim como Saussure via a linguagem como um sistema de signos, o cinema também pode ser visto como um sistema de signos visuais e auditivos que comunicam significado. Essa abordagem amplia as interpretações de suas narrativas. Seja uma ação de um personagem, uma mudança na iluminação ou um efeito sonoro específico, esses elementos funcionam como signos que contribuem para o significado geral do filme.

Por exemplo, se analisássemos o Um Anel na trilogia de filmes O Senhor dos Anéis (2001-2003) usando a abordagem de Saussure, veríamos que o anel significa mais para o enredo do que simplesmente ser um item mágico. O anel (o significante) representa a ideia da natureza corruptora e tentadora do poder (o significado). Além disso, ao identificar o significado mais profundo do anel na trama, podemos aplicar as mensagens do filme sobre a tentação do poder às nossas sociedades atuais: mesmo as pessoas mais inocentes podem sucumbir a essa tentação.

Em O Senhor dos Anéis, Frodo foi tentado pelo Um Anel durante toda a sua jornada.

É importante ressaltar que a relação entre significante e significado é arbitrária e convencional. Isso significa que não há uma ligação natural entre a palavra “árvore” e o conceito de uma árvore. A conexão entre os dois é estabelecida pelo uso comum dentro de uma comunidade linguística, ou seja, nós “inventamos” a imagem acústica da árvore, sua sequência de sons e letras para representá-la.

Em A Substância, podemos ver essa dualidade na personagem Elisabeth Sparkle. A aparência de Elisabeth — sua maquiagem, figurinos e transformações físicas — serve como significante, enquanto o conceito subjacente de pressão social para manter a juventude e a beleza representa o significado. Por exemplo, em uma das minhas cenas favoritas do filme, Elisabeth ajusta cuidadosamente e repetidamente sua aparência na frente de um espelho, apenas para no final expressar insatisfação e autoaversão, apesar de estar prestes a ir a um encontro com alguém que parece reconhecer seu glamour. Cada detalhe de seu corpo é cuidadosamente controlado, desde os cabelos até a maquiagem e as roupas. Mesmo assim, Elisabeth é incapaz de enxergar valor em sua própria imagem, expondo o conflito interno da personagem.

Nessa cena, o significante (sua aparência) não se alinha com o significado (sua percepção de autoestima e beleza). Essa desconexão destaca uma ideia de Saussure de que a linguagem e os signos não necessariamente refletem a realidade, mas a constroem ativamente. O filme sugere que a linguagem da sociedade em torno da beleza é uma construção que distorce a realidade, e isso faz com que Elisabeth se esforce por um padrão impossível e extremamente injusto consigo mesma.

É legal ver também a percepção da própria diretora sobre o tema:

“É apenas uma maneira de simbolizar o que eu acho que toda mulher, você sabe, tem que enfrentar em sua própria vida, e isso acontece em todos os lugares. E, você sabe, a Hollywood da nossa mente coletiva e consciente pareceu, para mim, o símbolo perfeito para contar essa história. E é também por isso que a Hollywood que eu mostro no filme não é muito realista, sabe? É realmente mais uma representação simbólica e mostra, tipo, a situação em que pode ser em qualquer lugar.”Coralie Fargeat

O Modelo Triádico de Pierce: Ícones, Índices e Símbolos

Charles Sanders Peirce, um filósofo e semiótico americano, desenvolveu um modelo triádico para explicar como os signos funcionam, complementando a visão de Saussure. Enquanto Saussure focava na relação de dualidade entre significante e significado, Peirce expandiu essa visão para considerar a relação entre o signo, seu objeto e o interpretante, sugerindo um relacionamento de três partes envolvendo ícones, índices e símbolos.

Cada uma dessas partes desempenha um papel distinto em A Substância, o que, de certa maneira, acaba moldando a maneira como interpretamos a crítica do filme à indústria da beleza.

  • Ícones: Um ícone é um signo que se assemelha diretamente ao objeto que representa. Sua relação com o objeto é baseada na similaridade, ou seja, a forma do ícone é parecida com a do que ele representa. Em A Substância, os ícones são usados para representar as versões idealizadas de juventude e beleza, e eles estão fortemente personificados na personagem Sue, interpretada por Margaret Qualley. Sue é estilizada para se assemelhar a uma modelo fitness extremamente estereotipada. Ela é jovem, linda, e suas roupas de ginástica em cores neon, em conjunto com sua maquiagem brilhante e um corpo incrível, representam iconicamente a imagem construída da perfeição pela indústria, tornando o comentário sobre os padrões de beleza instantaneamente reconhecível para quem assiste.
  • Índices: Um índice é um signo que está diretamente ligado ao seu objeto de uma forma causal ou física. Sua relação com o objeto é baseada em uma conexão real e existente, onde a presença do índice indica a presença do objeto, como a fumaça, que é um índice de fogo, já que a fumaça é causada pela combustão — uma relação praticamente automática em nossa mente. O uso de signos indexicais em A Substância conecta os personagens a questões sociais mais amplas. Por exemplo, as imagens recorrentes do corpo de Elisabeth em decomposição à medida que Sue fica cada vez mais obsessiva servem como um índice do processo de envelhecimento. Ele aponta para o declínio inevitável da beleza física e o desespero para atrasar esse processo, o que é basicamente a crítica central da narrativa. Ao contrário dos ícones, que têm uma semelhança clara, os índices em A Substância sugerem o medo e a inevitabilidade do envelhecimento por meio de dicas visuais que temos através de Elisabeth.
  • Símbolos: Um símbolo é um signo cuja relação com o objeto é baseada em convenções, regras ou costumes sociais. Não há uma conexão direta ou visual com o objeto que representa: o vínculo é arbitrário e precisa ser aprendido. Talvez o uso mais significativo da semiótica em A Substância seja por meio de seus elementos simbólicos, que transmitem mensagens sociais mais profundas sem uma conexão visual direta com o que representam. Veja, a droga milagrosa farmacêutica no filme serve como um símbolo poderoso da obsessão da sociedade com a juventude e até onde as pessoas vão para preservar sua aparência. É a representação de uma indústria multibilionária construída em torno de produtos antienvelhecimento, procedimentos plásticos e afins, enfatizando o acordo cultural de que valor e mérito são características de pessoas jovens. A droga em si, desprovida de valor intrínseco, ganha significado apenas por meio dessa crença social de que consumi-la leva à beleza e ao sucesso. A busca de Elisabeth pela juventude eterna por meio dessa droga também simboliza um desejo mais profundo de recuperar sua relevância perdida, não apenas na indústria, mas na estrutura mais ampla de uma sociedade que iguala envelhecimento à invisibilidade. A droga cria uma cópia mais jovem de si mesma cuja juventude e vitalidade são tudo o que Elisabeth teme ter perdido. Essa divisão entre Elisabeth e Sue é quase um paradoxo: quanto mais radiante e desejável Sue se torna, mais diminuída Elisabeth se sente em sua própria pele, trazendo à tona a triste verdade de que mesmo aqueles abençoados com fascínio físico raramente são poupados de inseguranças sobre seu próprio valor.

Construindo e Desconstruindo a Realidade

O que eu acho mais legal ao analisar A Substância por meio das teorias semióticas de Saussure e Peirce é que o filme pode ser visto como uma desconstrução de como a sociedade constrói a realidade por meio da linguagem e dos símbolos. Interessante isso, não é?

Saussure propõe que a linguagem não reflete a realidade, mas a constrói. Adoro esse conceito e isso é claro e evidente na maneira como o filme retrata a indústria da beleza como um sistema linguístico que molda nossas percepções e valores. As narrativas da indústria em torno da beleza, da juventude e do sucesso criam uma realidade na qual as pessoas, especialmente as mulheres, se esforçam para se encaixar, muitas vezes ao custo de suas verdadeiras identidades e bem-estar. É legal enxergar esse conceito da indústria personificado no personagem Harvey, interpretado de forma incrível por Dennis Quaid.

“Belas garotas devem SEMPRE sorrir”

O envelhecimento acelerado e distorcido de Elisabeth ressalta ainda mais esse ponto, pois ela envelhece de maneiras cada vez mais grotescas para refletir tanto seu desespero por continuar bela e desejada quanto o absurdo dos padrões de beleza impostos na sociedade moderna. Essa distorção funciona como uma forte crítica de como nossa cultura molda as mulheres para se encaixarem em seus ideais irrealistas, reforçando a ideia de Saussure sobre a natureza construída da realidade através de linguagens e narrativas.

Muitas chegam ao extremo em busca dessa falsa promessa, se deformando esteticamente e criando outros problemas de saúde para si, caindo exatamente onde elas mais temiam: a aversão social.

Portanto, A Substância não apenas expõe o absurdo da busca pela perfeição, mas também desafia o público a questionar as construções sociais que ditam nossas percepções de autoestima e beleza. Filmaço! Uma obra que vale a pena assistir.

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Material de Referência

1 – Ensaios e Notas, “Saussure e seus Signos

2 – Media Studies, “Charles Peirce’s Sign Categories

3 – IMDB, The Substance (2024) by Coralie Fargeaut

4 – Discourse Analyzer, Ferdinand de Saussure and discourse analysis