Cinema

Jeanne Dielman: uma análise crítica da obra-prima de Chantal Akerman

A década de 1970 marcou uma era crucial para o cinema de arte europeu, caracterizada pela rejeição das convenções narrativas clássicas e pelo foco em temas sociopolíticos. Cineastas como Jean-Luc Godard e Rainer Werner Fassbinder desafiaram as sensibilidades do mainstream, abrindo caminho para obras mais experimentais e críticas.

Simultaneamente, a teoria feminista do cinema ganhou força significativa, ao examinar as representações tradicionais das mulheres no cinema e defender novas perspectivas. Teóricas como Laura Mulvey e Claire Johnston analisaram o “olhar masculino” e reivindicaram um cinema que priorizasse a subjetividade feminina. Jeanne Dielman surgiu diretamente desse terreno intelectual fértil, oferecendo uma ruptura radical com as representações convencionais das mulheres na tela.

O uso (revolucionário) do tempo e do espaço no cinema

Ritmo em Tempo Real

A decisão ousada de Akerman de apresentar as rotinas diárias de Jeanne em um tempo quase real força o público a um engajamento profundo com o mundano, elevando o ordinário ao extraordinário.

Câmera Estática

A câmera fixa e imóvel atua como uma observadora inabalável, enquadrando Jeanne meticulosamente dentro de seus limites domésticos e ressaltando seu aprisionamento.

Espaços Confinados

Os motivos visuais repetitivos dos cômodos do apartamento tornam-se ao mesmo tempo palco e prisão, ressaltando o caráter opressivo de sua existência.

Essa abordagem minimalista foi um ousado desafio à edição dinâmica e aos amplos movimentos de câmera de Hollywood, exigindo um outro tipo de espectatorialidade.

Domesticidade, performance e prisão

Jeanne Dielman oferece um retrato implacável de uma mulher cuja identidade é meticulosamente construída em torno de seus deveres domésticos. Cada ação, do ato de descascar batatas ao preparo do café, é executada com precisão ritualística, revelando uma vida ditada pela rotina em vez do desejo.

“O filme insiste que a esfera doméstica, muitas vezes descartada como trivial, é um campo de batalha de profunda importância psicológica e social.”

Essa representação hiper­detalhada da domesticidade a expõe não como um estado natural, mas como uma performance, um mecanismo de sobrevivência e, em última instância, uma gaiola dourada. As mudanças graduais, quase imperceptíveis, na rotina de Jeanne sugerem uma crise interna em formação, rompendo a superfície de seu mundo perfeitamente ordenado.

Encarando as estruturas patriarcais por meio de rituais cotidianos

Trabalho Invisível

O filme coloca em destaque o trabalho invisível e não remunerado tradicionalmente atribuído às mulheres, forçando o reconhecimento de sua natureza exaustiva e frequentemente ingrata.

Papéis Femininos

Ao focar na adesão de Jeanne às expectativas sociais de uma “boa mulher”, Akerman disseca os papéis restritivos impostos às mulheres em sociedades patriarcais.

Rebelião Silenciosa

O ato final de Jeanne é uma profunda rejeição dessas estruturas, um rompimento da fachada doméstica que diz muito sem precisar de diálogo.

Akerman constrói meticulosamente uma narrativa que, através de sua própria banalidade, critica a opressão sistêmica inerente aos papéis de gênero convencionais. O poder do filme reside em sua capacidade de transformar o pessoal em político.

A Influência de Jeanne Dielman no cinema lento contemporâneo

O trabalho pioneiro de Chantal Akerman em Jeanne Dielman estabeleceu as bases para o surgimento do “cinema lento” – um movimento caracterizado por longos planos, diálogo mínimo e ênfase na atmosfera e na duração. Sua influência pode ser observada em diversos filmes internacionais:

FilmeDiretorObservações
Dau. NatashaIlya KhrzhanovskyExploração da rotina, confinamento e experiência feminina em um ambiente opressivo.
Manchester à Beira-MarKenneth LonerganUso de planos longos para transmitir estados psicológicos e o peso da vida cotidiana.
RomaAlfonso CuarónFoco no trabalho doméstico e nas vidas muitas vezes invisíveis das mulheres dentro de um lar.
AftersunCharlotte WellsNarrativa sutil, profundidade emocional transmitida por meio de observação silenciosa e atenção aos detalhes.
Roma (2018)

Esses filmes, assim como Jeanne Dielman, desafiam o público a reconsiderar sua relação com o tempo cinematográfico, promovendo uma experiência de visualização mais profunda e meditativa.

Da obscuridade crítica ao filme mais importante de todos os tempos segundo o BFI

Inicialmente recebida com reações mistas, a reputação de Jeanne Dielman cresceu de forma constante, culminando em seu reconhecimento histórico como o maior filme de todos os tempos na enquete de críticos de 2022 da Sight and Sound. Essa reavaliação representa uma mudança crucial no discurso cinematográfico, valorizando a inovação formal e as perspectivas feministas em detrimento das narrativas tradicionais. Seu legado duradouro é um testemunho de sua visão radical e do impacto profundo sobre gerações subsequentes de cineastas e estudiosos.

As dimensões políticas das escolhas estéticas de Akerman

Um Cinema de Observação

A estética de Akerman não é apenas uma escolha estilística; é uma postura política. Ao se recusar a manipular o público com edição convencional ou sinais emocionais, ela capacita os espectadores a observar, interpretar e se engajar ativamente na experiência de Jeanne.

Esse distanciamento cria um espaço para reflexão crítica, desafiando o consumo passivo da mídia e exigindo participação intelectual.

A austeridade visual do filme torna-se uma ferramenta poderosa, refletindo o estado emocional reprimido de Jeanne e a estrutura rígida de sua vida. Cada quadro é carregado de significado, transformando objetos e ações banais em símbolos de confinamento e silenciosa desesperança.

Violência, sexualidade e libertação

Violência Sutil

O filme retrata uma violência onipresente e insidiosa: a violência da rotina, a violência das expectativas e a violência de uma vida não vivida. Os atos diários de Jeanne são uma batalha constante e silenciosa contra essa opressão sistêmica.

Economia Sexual

A prostituição de Jeanne é apresentada como mais uma tarefa doméstica, desprovida de emoção, ressaltando a mercantilização dos corpos femininos dentro de estruturas patriarcais e as realidades econômicas enfrentadas pelas mulheres.

O Ato Libertador

O clímax chocante, porém catártico, é o ato singular de rebelião de Jeanne, uma fuga desesperada dos limites de sua existência. É seu único momento de verdadeira autonomia, uma explosão do eu reprimido.

Akerman entrelaça esses temas complexos com um olhar implacável, criando um filme tão desconfortável quanto revelador, profundamente ressonante em sua exploração da experiência feminina.

Relevância imortal no discurso cinematográfico contemporâneo

Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman, continua sendo uma realização monumental na história do cinema. Sua estética rigorosa, crítica feminista profunda e ousada exploração do tempo e do espaço continuam a desafiar, provocar e inspirar. Mais do que apenas um filme, é uma meditação sobre a identidade feminina, a domesticidade e a libertação, consolidando seu lugar como uma obra-prima atemporal.

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