Dom Casmurro e as histórias que nos definem
Capitu traiu Bentinho?
A memória é uma coisa estranha, não acha? Às vezes ela parece sólida, como uma pedra, mas ela parece mudar cada vez mais à medida em que nos aprofundamos dentro dela. É como se, às vezes, quanto mais a gente tente descobrir a verdade, mais vaga e incerta ela se torna.
Dom Casmurro talvez seja o livro que eu mais queria escrever sobre. Não pelo que o livro revela, mas pelo que esconde. A narrativa de Dom Casmurro, assim como seu próprio protagonista, Bentinho, é confusa e pouco confiável.
Logo nas primeiras páginas do livro, Bentinho nos apresenta sua vida atual, bem solitária para falar a verdade. Apelidado de Dom Casmurro, ele mora na casa que construiu para replicar a casa de sua infância, na Rua de Matacavalos. É uma casa cheia de ecos, mas eles são fracos e distorcidos. Seus amigos se foram, e as poucas mulheres que o bajulam com sua companhia parecem mais interessadas na ideia de sua juventude do que em quem ele realmente é.
“Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas creem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.”
Para fugir dessa monotonia em seus dias, Bentinho decide escrever. É legal como seu primeiro impulso é abordar história ou filosofia, mas ele não tem tanta paciência para esse tipo de coisa. Em vez disso, ele se inspira nos bustos pintados em suas paredes, que parecem o provocar para recontar sua própria vida. Talvez, como ele mesmo pensa, ao recontar sua história, ele possa invocar o passado, trazendo suas sombras à vida.
No entanto, a história que Bentinho escolhe contar não é um relato objetivo. É uma narrativa cuidadosamente construída, montada tanto por suas inseguranças e dúvidas quanto pelos próprios eventos. Ele se apresenta como uma vítima de traição, denunciando que sua esposa, Capitu, foi infiel e que seu filho, Ezequiel, pode não ser seu.
Machado de Assis foi um autor genial. Bentinho narra sua história como se fosse um advogado muito bem conceituado apresentando um caso. Reúne “evidências”, constrói argumentos e joga dúvidas sobre cada movimento de Capitu. Aliás, quem realmente era Capitu? Uma mulher muito inteligente, ele dizia, muito calculista. Capitu tinha aqueles olhos, sabe? “Olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, uma mulher, ao mesmo tempo, atraente e traiçoeira. Bentinho vê traição em seus gestos, seus silêncios e até mesmo em sua gentileza. E ele quer que a gente veja isso também.
“[…]Tinham-me lembrado a definição que José Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim.”
O problema é que sua história é cheia de lacunas. Eu admiro a oratória de Bentinho, de verdade, mas o safado não oferece nenhuma prova definitiva de que Capitu foi infiel, apenas suas próprias suspeitas. Mesmo assim ele insiste em sua própria versão dos eventos, construindo uma história onde ele é tanto vítima quanto, de certa forma, um herói trágico.
Já Capitu continua sendo um enigma. Nós a vemos apenas através do olhar de Bentinho. Suas falas, seu jeito de ser e de viver, tudo isso anda de mãos dadas com as dúvidas e paranoias na cabeça do narrador. Capitu traiu Bentinho? Ou ela é simplesmente uma mulher que, por independência e inteligência, confundiu o ego extremamente frágil de seu marido? A verdade está em algum lugar no silêncio entre eles, naqueles momentos em que Bentinho se recusa a reconhecer ou não suporta lembrar.
“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição. Era também mais curiosa. As curiosidades de Capitu dão para um capítulo. Eram de vária espécie, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo.”
O que eu acho mais incrível nesse livro é como Machado de Assis nos deixa presos justamente nesse silêncio. No fundo, a gente não tem vontade de confirmar nem de negar as acusações de Bentinho. Capitu traiu Bentinho? A ambiguidade dessa pergunta é extremamente tentadora, mas talvez também seja o ponto de tudo isso: a história em que acreditamos diz mais sobre nós do que sobre os personagens.
Em Dom Casmurro, Bentinho escolhe sua história cuidadosamente, mesmo que isso lhe custe tudo – e custou. Ele se apega à sua narrativa porque ela justifica sua dor, sua solidão, justifica sua própria existência. Abandonar isso significaria encarar a possibilidade de que ele estava errado, não apenas sobre Capitu, mas sobre si próprio. Sua história é um relato minuciosamente elaborado, cheio de detalhes e com emoção. Mas também é uma prisão, construída tijolo por tijolo a partir das próprias inseguranças do narrador.
Acho que Dom Casmurro é um livro sobre as histórias que escolhemos contar e a maneira como usamos essas histórias para construir nossas identidades e proteger nossas vulnerabilidades – ou escondê-las. Sobre até onde vai nossa memória e os perigos da certeza. Hoje, onde todos temos tantas certezas, é super valido refletir sobre isso. O que torna Dom Casmurro um livro ainda mais atemporal – e ainda mais genial.
Enfim, assim como Bentinho, todos nós carregamos histórias que nos definem. Diferentemente dele, porém, podemos pelo menos nos perguntar se essas são as únicas histórias que valem a pena ser contadas.
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