Cinema

Anatomia de Uma Queda: Uma história que vai além do que se vê.

“Quando não entendemos como algo aconteceu, devemos tentar entender por que aconteceu.”

Uma das cenas mais clássicas da filmografia de Quantin Tarantino é quando, em Pulp Fiction, o Vincent atira, “por acidente”, na cara do jovem Marvin – “Oh man, I shot Marvin in the face“. Eu amo essa cena. Mas veja, quando digo “por acidente”, assim, entre aspas, é porque existem inúmeras teorias na internet sobre quem de fato era o Marvin. A mais famosa e, eu diria que a mais aceita, é a de que Marvin seria na, verdade, um informante e que Vincent teria atirado nele por vontade própria e não por acidente. É uma tese criada pelo próprio Samuel L Jackson, levantando a hipótese de que Vincent buscava vingança por Marvin não ter avisado sobre um atirador escondido na cena que acompanhamos no início do filme. Bom, isso não passa de teoria, já que o filme não nos mostra quem era Marvin e sua função hora nenhuma é citada. No entanto, essa é uma das melhores cenas do filme. Por que alguns filmes nos privam de determinadas informações? Eu gosto de me perguntar isso de vez em quando, mas a resposta do próprio Tarantino para essa pergunta é a que eu mais gosto de usar para esse tipo de situação:

“Bem, olhe, nos meus filmes, se eu quiser que você saiba, eu te conto. E se eu deixar em aberto, estou deixando em aberto para você. Então, eu poderia te dizer o que penso. Mas se eu contar o que eu penso, então essa é a verdade. Eu não tenho nenhum problema com a versão de Sam. E não tenho nenhum problema com ninguém que tenha essa versão. Mas não quero dizer a você o que pensar.

Sabe, depois de ler essa resposta, eu parei de me preocupar com as teorias e comecei a me perguntar sobre o que o diretor e seu filme querem que a gente pense e reflita quando algo não é explicitamente mostrado na tela. Essa reflexão me veio à cabeça novamente ao assistir ao interessante filme de Justine Triet, “Anatomia de Uma Queda“. Aliás, mais do que interessante, esse filme vai além e nos mostra o quão falhos somos em julgar algo que não vimos acontecer. Fazia tempo que não via algo assim e espero conseguir expressar o que senti nesse texto.

A Suspeita de um Crime, o Colapso de um Casal e o poder da Decisão

O enredo de Anatomia de Uma Queda é simples. Sandra (Sandra Hüller – aliás, quero ver mais filmes com essa mulher!), uma escritora alemã, seu marido francês Samuel, também escritor, e seu filho Daniel, um garoto cego de onze anos, moram em uma cidade remota nos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto abaixo do chalé, sem testemunhas e sob circunstâncias duvidosas, a polícia questiona se ele cometeu suicídio ou se, na verdade, foi morto. A morte de Samuel é tratada como um suposto assassinato, e Sandra se torna a principal suspeita.

Simples, no entanto, não é como o filme se desenvolve. Justine Triet escolhe não nos mostrar o que realmente aconteceu, de maneira que o que temos é apenas uma investigação policial, com reconstituição de fatos, depoimentos, analistas de sangue e teorias. Tudo isso somado ao depoimento de Sandra em sua dolorosa tentativa de se defender de uma acusação de assassinato. Cabe a nós, junto ao Júri, acreditar ou não no que Sandra nos diz. Quer dizer, “acreditar” seria até algo mais leve de se fazer. Não existem provas nem evidências claras que provem culpa ou inocência aqui, então o que o filme estimula é, na verdade, nosso julgamento. E olha, se tem uma coisa que os tempos modernos fizeram, foi nos deixar ótimos em julgar e dar vereditos.

Sandra Hüller, como Sandra, em Anatomia de Uma Queda.

Anatomia de Uma Queda é um jogo de linguagem. Justine Triet brinca com a leitura do público sobre o que é mostrado e nos força a questionar toda a objetividade daquilo tudo. É como se ela estivesse diretamente nos perguntando: “você acredita nessa história?”. O filme trabalha mais a nossa imaginação do que os fatos e, pior, ele não nos dá versões como “o que ele disse” e “o que ela disse“. O “ele” está morto. Só temos o “o que ela disse”. Não estamos julgando as ações de Samuel, ele já não está mais nesse mundo. Estamos julgando Sandra. O que importa aqui não são os fatos, mas sim a nossa interpretação do que nos é dito como fato.

Tanto a polícia quanto o Júri e o advogado de Sandra focam o tempo todo em como a morte de Samuel ocorreu. Existe algo de duvidoso no ar devido à forma como o corpo foi encontrado, já que os indícios não deixam claro se houve uma pancada intencional na cabeça de Samuel antes da queda ou se tudo ali foi resultado da própria queda. O advogado de Sandra trabalha com a hipótese de suicídio. Claro, em defesa da acusada. Os demais trabalham com a possibilidade de assassinato. Ambos os lados são bem criativos em demonstrar o porquê de sua hipótese ser a mais correta a ser seguida.

Sandra, por outro lado, muitas vezes se demonstra muito insegura quanto a toda a situação. O que, na moral? É completamente compreensível. Mas, claro, isso levanta mais e mais suspeitas em relação ao seu discurso, o qual ela vai mudando ao decorrer do filme à medida que novas evidências vão surgindo. O mesmo acontece com seu filho, Daniel, que se diz “confuso” em relação às suas memórias, também mudando seu discurso a cada questionamento. O garoto inicialmente diz que ouviu seus pais conversando fora de casa, mas através da reconstituição se descobre que isso não foi possível e ele muda seu depoimento. São coisas que dizem muito sobre pessoas lidando com pressões e acusações, mas que, para quem está de fora, soam como cumplicidade, falsidade e armação. E a pergunta continua martelando dentro de nossa cabeça – “você acredita nessa história?”

No entanto, quando Sandra é julgada pelo assassinato de Samuel, a história de seu relacionamento conturbado vem à tona. A gente vê que Samuel nunca se perdoou por seu papel no acidente de anos atrás, que deixou Daniel cego. Isso teve um impacto óbvio sobre o casal. As coisas não iam bem, Samuel não conseguia escrever e acusava Sandra de manipulação, possessividade e traição, ao passo que Sandra era firme ao jogar na cara de Samuel o quanto ele se afundava em seus próprios dilemas e o quanto ele a culpava por problemas que ele mesmo criou. Além disso, Samuel também era escritor, mas aparentemente menos talentoso do que Sandra, o que vemos que claramente o incomodava. Bom, não cabe a nós julgarmos os problemas de um casal e como eles lidam com isso, mas a privacidade e o lado de Sandra dentro da relação não parecem ser algo que o julgamento teve consideração. Isso fica claro quando surge uma gravação de áudio de uma briga entre Sandra e Samuel um dia antes de sua morte, que ouvimos no tribunal junto com a análise de um especialista sobre o que os sons ali representam. Vemos então um flashback, o único momento inteiro do filme que mostra de fato como estava a relação entre os dois. No entanto, somos novamente privados de informação, já que o final da gravação é justamente uma briga física entre os dois e só conseguimos ter acesso a sons que indicam tapas, socos e coisas arremessadas.

Samuel e Sandra

Eu não sei nada sobre o sistema jurídico francês, mas olha, Deus me livre de um dia ser julgado por qualquer coisa lá. O promotor que acusa Sandra, bastante agressivo inclusive, chega ao nível de explorar os próprios livros dela em busca de evidências, transformando por um momento um julgamento criminal em um debate literário. Achei ridículo. Até mesmo a própria sexualidade de Sandra é discutida de forma totalmente constrangedora por parte da acusação, o que na real revela muito sobre um sexismo cotidiano que atinge as mulheres, independentemente de sua riqueza ou posição social. Sandra é uma escritora consagrada, mas não escapa desse tipo de coisa.

Assistir essas cenas me lembrou muito de Katharina Blum. Mas não vou delongar sobre isso porque tenho um texto só sobre ela nesse blog o qual eu, humildemente, recomendo.

Com o desenrolar do julgamento, a relação entre Sandra e Samuel se torna maior que o próprio crime. Ainda estamos em um drama judicial, mas a acusação e o processo, à medida que avançamos no filme, passam a não ser mais a história principal e se tornam apenas dispositivos para a diretora nos contar uma história sobre o colapso de um casal, de uma forma convincente, mas questionável, com meias verdades e testemunhas não muito confiáveis. O resultado desse colapso não é algo que pode ser estudado em um tribunal, mas sim a consequência de escolhas passadas, tanto de Samuel quanto de Sandra. E certas consequências não podem ser consertadas, para certas coisas na vida, precisamos seguir em frente e decidir como seguir. Eu acho lindo que a decisão de seguir em frente tenha vindo do jovem Daniel.

Milo Machado-Graner, como Daniel.

Atirando no Escuro

Em um momento do filme, Daniel fica confinado com uma agente de justiça, Marge, a qual estava designada a acompanhar o garoto e sua mãe, para impedir qualquer ação ou manipulação que possam atrapalhar o julgamento, já que Daniel, como filho, é peça importante para a resolução do enigma da morte de seu pai. Numa conversa entre Daniel e Marge, ele a pergunta o que ela faria em seu lugar. Ela responde que, em situações como essa, onde não se sabe quem está certo e quem está errado, só nos resta decidir qual lado escolher. Ainda que não acertemos, precisamos decidir e não ficar em cima do muro.

Daniel decidiu. Durante o filme, somos informados por Sandra de que Samuel tentou suicídio no passado através do abuso de aspirina. Claro que, dado o contexto e a forma como Sandra deu essa informação, esse relato soou um tanto falso. Mesmo assim, Daniel “tirou isso a limpo” através de um teste, arriscando inclusive a vida do próprio cachorro, Snoop. Aliás, se me permite você que está lendo isso, eu não sei como foi que eles conseguiram que um cachorro atuasse de forma tão espetacular como foi nessa cena em questão. Sério. Deem um Oscar para esse animal IMEDIATAMENTE.

A estrela do filme!

De qualquer forma, Daniel juntou esse experimento e mais algumas informações referentes a uma conversa sua com seu pai para formar seu discurso final frente ao tribunal. Discurso decisivo para o desfecho dessa história.

Seu depoimento final livrou Sandra da condenação e convenceu o Júri de que o que houve foi, muito provavelmente, suicídio por parte de Samuel, que não aguentou conviver com seus próprios demônios. Essa decisão de Daniel, no entanto, não foi pela justiça, mas sim porque ele entendeu que a vida precisa seguir em frente, que ele precisa seguir em frente e que só lhe resta sua mãe. Seu pai está morto, essa é a única verdade que ele possui. Os três tomaram decisões – a mãe veio para as montanhas francesas, embora a sua vida e alma estivessem nas grandes cidades. Seu pai parou de tomar seus remédios e se entregou a todos os problemas de culpa e fraqueza que ele tentava suprimir. Não importa o que realmente aconteceu, já havia se passado um ano desde a morte de Samuel, os dois adultos levaram a isso com suas próprias escolhas. Daniel escolheu a redenção e um novo começo com a mãe viva, em vez do luto interminável do pai. Nunca saberemos se sua escolha foi correta, nunca saberemos se ele mentiu ou disse a verdade no tribunal, mas sabemos que ele tem esperança e quer seguir em frente, em paz.

Agora a frase de Tarantino volta à minha cabeça: “não quero te dizer o que pensar“. Sabe, acho que Justine Triet também não. Anatomia de Uma Queda não é um filme lógico. Agir logicamente no caso de Sandra seria totalmente desumano, e agir sem orgulho seria falso de nossa parte. Em qualquer interação humana, somos muito influenciados por nossas próprias percepções sobre nós mesmos e nosso próprio valor. Somos egoístas, somos julgadores. Muitas de nossas ações são, de certa forma, guiadas pela nossa incapacidade de ser totalmente objetivos. Talvez seja exatamente isso que Justine Triet quis trazer com esse filme: explorar essa natureza experimental e egoísta da humanidade por meio de um evento infeliz que, de maneira geral, foi tão inconsequente quanto a investigação em cima dele. Talvez seja só isso. Como diria Martin Scorsese sobre o cinema, “é uma questão do que está no enquadramento e do que está fora“. É como você percebe o que está na tela que comprova sua profundidade.

Mas e o que não está na tela? Você ainda se preocupa com isso?

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2 comentários sobre “Anatomia de Uma Queda: Uma história que vai além do que se vê.

  • Que texto bom. Como senti falta de ler uma análise tão completa sobre um filme. Irei acompanhar o site a partir de agora.

    Sobre o filme, acho que tudo já foi dito acima, mas reforço a parte do “Deem um Oscar ao cachorro”. Achei que realmente tinha um cachorro morto na cena.

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    • Olá, Bia! Que legal que gostou, muito obrigado pelo teu comentário, deixou minha semana mais feliz. Ainda aguardo o Oscar para o cachorro que, por sinal, se chama Messi. Vamos ver haverá justiça! hahaha

      Espero que goste dos outros textos e que fique por aqui. Um forte abraço!

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