
Frankenstein e o Gótico Feminino: A Mãe do Monstro
Em 1974, a crítica literária Ellen Moers revolucionou os estudos sobre Frankenstein ao propor uma leitura radicalmente diferente da obra-prima de Mary Shelley. Em seu ensaio seminal “Female Gothic: The Monster’s Mother“, Moers desafiou a narrativa estabelecida pela própria autora em sua introdução de 1831 e ofereceu uma interpretação que colocava as experiências viscerais de maternidade, perda e trauma feminino no centro da criação literária. Esta análise inaugurou uma nova tradição crítica que reconhece Frankenstein não apenas como um romance gótico ou uma alegoria científica, mas também como um texto profundamente marcado pelas ansiedades específicas da experiência feminina no início do século XIX.
A contribuição de Moers insere-se no contexto mais amplo da crítica feminista da segunda onda, movimento que buscava resgatar e reinterpretar obras de autoras mulheres através de lentes sensíveis às questões de gênero, corpo e experiência vivida. Ao propor o conceito de “gótico feminino”, Moers estabeleceu um paradigma crítico que influenciaria gerações subsequentes de estudiosos da literatura.
“O que quero dizer por Gótico Feminino é algo fácil de definir: o trabalho que escritoras têm produzido dentro do modo literário que, desde o século XVIII, chamamos de gótico. Mas o que eu quero dizer — ou qualquer outra pessoa quer dizer — por “gótico” não é tão simples de esclarecer, exceto pelo fato de que tem a ver com medo. Nos escritos góticos, a fantasia predomina sobre a realidade, o estranho sobre o comum e o sobrenatural sobre o natural, com uma intenção autoral bem definida: assustar.” – Ellen Moers
Perdas e Traumas de Mary Shelley
Mary Shelley experimentou múltiplas perdas devastadoras em curto período. Em 1815, aos dezesseis anos, deu à luz prematuramente a uma menina que viveu apenas duas semanas, uma perda que a atormentou profundamente, como registrado em seu diário: “Sonhei que minha pequena bebê voltou à vida”. Além disso, a própria Mary nasceu de um parto que custou a vida de sua mãe, Mary Wollstonecraft, pioneira feminista, uma perda inaugural que marcou sua identidade e alimentou suas ansiedades sobre maternidade e criação. Criada por uma madrasta que a rejeitava, Mary Shelley também conheceu intimamente os horrores do abandono parental e da privação de afeto materno, temas que ecoam poderosamente em Frankenstein.

Estes eventos biográficos, como argumenta Moers, não eram coincidências externas à obra, mas constituíam o próprio tecido emocional e temático do romance. A criatura de Frankenstein, rejeitada por seu criador, abandonada ao nascer e condenada ao ostracismo, torna-se assim uma projeção das ansiedades mais profundas de Shelley sobre criação, responsabilidade parental e os terrores do parto.
O Conceito de Gótico Feminino
O “gótico feminino” centra-se nos medos específicos relacionados ao corpo feminino, particularmente a gestação, o parto e as transformações físicas da maternidade, explorando também os horrores do abandono, da rejeição parental e da ruptura dos vínculos afetivos primários entre mãe e filho. Além disso, investiga as tensões entre autonomia individual e expectativas sociais sobre o papel materno, questionando os limites da agência feminina e os dilemas que definem a identidade feminina.
Ellen Moers cunhou o termo para designar uma tradição literária distinta, na qual escritoras mulheres mobilizam os tropos do romance gótico para articular ansiedades especificamente femininas. Diferentemente do gótico masculino, que frequentemente se concentra em temas de ambição, poder e transgressão intelectual, o gótico feminino volta-se para os terrores íntimos do corpo, da maternidade e das relações familiares.

Esta distinção não implica essencialismo biológico, mas reconhece que as experiências históricas e sociais das mulheres, particularmente em relação à reprodução, à mortalidade materna e às expectativas de gênero, geraram formas específicas de expressão literária. O gótico feminino transforma o corpo feminino de objeto de contemplação em sujeito de horror, explorando os medos viscerais associados à gestação, ao parto traumático e à responsabilidade avassaladora da maternidade.
Frankenstein como Metáfora do Parto
A cena central de Frankenstein, o momento em que Victor anima sua criatura, pode ser lida como uma alegoria distorcida do parto. Victor descreve sua criação com linguagem que evoca simultaneamente o parto e o horror: “Com uma ansiedade que beirava a agonia”, ele trabalha para dar vida ao ser inanimado. Quando a criatura finalmente abre os olhos, Victor não experimenta alegria ou realização, mas repulsa e terror absolutos. Sua reação imediata é o abandono: ele foge de sua criação, incapaz de suportar sua presença.
Moers argumenta que esta cena cristaliza os medos mais profundos sobre o parto: e se a criança nascesse monstruosa? E se o ato de criação resultasse não em amor instintivo, mas em repulsa? E se a mãe fosse incapaz de amar sua progênie? Estas questões, raramente articuladas no discurso público do século XIX, encontram expressão cifrada na narrativa gótica de Shelley. O horror de Victor diante de sua criatura reflete as ansiedades não reconhecidas sobre a maternidade a possibilidade de rejeição, a ausência de vínculo natural, o terror do fracasso maternal.
Quem poderia descrever o quadro de minhas emoções diante de tal catástrofe? Que pintor prodigioso poderia esboçar o retrato do ser que a duras penas e com tantos cuidados eu me esforçara por produzir? Seus membros, malgrado as dimensões incomuns, eram proporcionados e eu me esmerara em dotá-lo de belas feições. Belas?! Oh, surpresa aterradora! Oh, castigo divino! Sua pele amarela mal encobria os músculos e artérias da superfície inferior. Os cabelos eram de um negro luzidio e como que empastados. Seus dentes eram de um branco imaculado. E, em contraste com esses detalhes, completavam a expressão horrenda dois olhos aquosos, parecendo diluídos nas grandes órbitas em que se engastavam, a pele apergaminhada e os lábios retos e de um roxoenegrecido. – Victor Frankenstein
A linguagem de Victor – “catástrofe”, “miserável”, “castigo divino” – ecoa os discursos médicos sobre parto difícil e as ansiedades sobre mortalidade materna que assombravam as mulheres da época. O próprio ato de criação torna-se fonte de horror, não de realização.
Abandono Parental e Suas Consequências
Em Frankenstein, a criatura desperta para encontrar seu criador fugindo horrorizado, e esse abandono primordial estabelece o padrão de rejeição que definirá toda sua existência. Após meses de observação e autoeducação, ela busca conexão humana, apenas para ser violentamente expulsa da sociedade repetidas vezes. Em seguida, confronta Victor, exigindo que assuma responsabilidade por sua existência e solicitando uma companheira. Embora Victor inicialmente concorde, ele depois destrói sua segunda criação, desencadeando um ciclo de vingança e destruição.
O núcleo emocional de Frankenstein reside na dinâmica entre criador e criatura, uma relação que Moers identifica como fundamentalmente maternal. A tragédia do romance não é a ambição científica de Victor, mas sua incapacidade de amar e cuidar daquilo que ele mesmo criou. O abandono da criatura no momento de seu “nascimento” estabelece uma cadeia de consequências devastadoras que culminam na destruição de ambos.
Esta narrativa ressoa profundamente com as experiências de Shelley. Como uma jovem mãe que havia perdido uma criança prematura, ela conhecia intimamente os medos sobre inadequação maternal e as fantasias sobre o que aconteceria se uma mãe falhasse em amar seu filho. A criatura de Frankenstein torna-se assim uma projeção ampliada das ansiedades sobre abandono, tanto o abandono que Shelley temia infligir (como mãe) quanto o abandono que ela mesma havia sofrido (como filha órfã de mãe).
A Voz da Criatura
Um dos aspectos mais perturbadores de Frankenstein é a eloquência da criatura. Através de sua própria narrativa nos capítulos centrais do romance, descobrimos um ser de profunda sensibilidade, capaz de aprendizado, empatia e articulação sofisticada de suas experiências e sofrimentos.
A criatura aprende linguagem escutando a família De Lacey, educa-se lendo obras clássicas como Paraíso Perdido de Milton, e desenvolve uma consciência moral complexa. Esta humanidade intelectual e emocional torna sua rejeição ainda mais trágica, não é um monstro irracional que aterroriza a humanidade, mas um ser consciente e sensível que é sistematicamente negado reconhecimento e pertencimento.
Lembre-se de que é meu criador. Quanto a mim, em vez de um novo Adão, sou o anjo decaído que você priva do direito à alegria, sem que me caiba culpa. De todas as benesses de que tenho conhecimento, eu sou sempre irrevogavelmente excluído. No entanto, eu era bom e compreensivo. Foi a desgraça que me converteu em demônio.

A articulação da criatura de seu próprio sofrimento estabelece uma das ironias centrais do romance: quanto mais humana ela se torna em consciência e expressão, mais violentamente é rejeitada pela sociedade humana. Esta dinâmica, argumenta Moers, reflete as ansiedades sobre a maternidade de crianças que não correspondem às expectativas sociais, crianças que, por razões de aparência, saúde ou circunstância, são percebidas como “outras” e potencialmente rejeitadas ou abandonadas.
Ostracismo Social e o Corpo Feminino
No romance, a exclusão pela aparência revela-se como um julgamento baseado apenas na aparência física, refletindo anseios femininos sobre o corpo como objeto de escrutínio social constante, em que a monstruosidade visível se torna metáfora para corpos femininos considerados inadequados ou transgressores. Esse tema conecta-se à maternidade ilegítima, exemplificada pela própria experiência de Mary Shelley, que engravidou fora do casamento e sofreu condenação social, incorporando no romance o temor das mulheres diante de julgamentos morais implacáveis sobre sexualidade e reprodução. A impossibilidade de integração da criatura na sociedade humana, independentemente de suas ações ou virtudes, espelha a exclusão permanente enfrentada por mulheres que violam expectativas de gênero, evidenciando a violência e a marginalização resultantes dessas normas sociais.
O ostracismo social da criatura funciona como metáfora com múltiplas camadas para as formas de exclusão enfrentadas por mulheres no século XIX. Moers observa que a própria Mary Shelley experimentou formas de condenação social, como filha de pais radicais, como jovem que fugiu com um homem casado, como mãe solteira. Estas experiências de marginalização informam profundamente a representação da criatura como eternamente excluída, independentemente de seus esforços por aceitação.
Muito significativa também é a impossibilidade de redenção ou integração. Não importa quão eloquente, educada ou moralmente consciente a criatura se torne, sua aparência a condena ao exílio perpétuo. Esta dinâmica reflete as realidades das mulheres que transgrediam normas sociais: uma vez marcadas como “caídas” ou inadequadas, nenhuma quantidade de virtude subsequente poderia restaurar sua posição social. O romance assim articula o desespero de uma exclusão que é permanente e inalterável.
Crítica Feminista e a Reinterpretação de 1974
A intervenção crítica de Ellen Moers em 1974 ocorreu em um momento crucial para os estudos feministas e literários. A segunda onda do feminismo havia estabelecido a legitimidade de examinar literatura através de lentes de gênero, e críticas como Moers, Sandra Gilbert, Susan Gubar e Kate Millett estavam recuperando e reinterpretando obras de autoras mulheres que haviam sido marginalizadas ou mal compreendidas pelo cânone patriarcal.
O ensaio de Moers distinguiu-se por sua atenção às especificidades do corpo feminino e da experiência material da maternidade. Enquanto críticas anteriores haviam discutido Frankenstein em termos de ambição científica, transgressão prometeica ou ansiedade sobre progresso tecnológico (temas associados a preocupações masculinas), Moers redirecionou o foco para os terrores íntimos do parto, da perda gestacional e da responsabilidade maternal.
Na leitura tradicional, Frankenstein funciona como alegoria sobre ambição científica desmedida e os perigos de “brincar de Deus” enquanto que na leitura feminista, a obra serve como expressão de temores maternais.
Esta reinterpretação não apenas ofereceu uma nova compreensão de Frankenstein, mas também estabeleceu um precedente metodológico. Moers demonstrou que levar a sério as experiências corporais e emocionais de autoras mulheres poderia revelar dimensões inteiramente novas de significado em textos canônicos. Sua abordagem validou a experiência vivida das mulheres como fonte legítima de criação literária e análise crítica.
Legado Crítico e Desenvolvimentos Posteriores
O conceito de Moers inspirou estudos subsequentes sobre autoras góticas como Ann Radcliffe, Charlotte Brontë e Daphne du Maurier, revelando uma rica tradição de escrita feminina gótica. Críticas como Mary Jacobus e Barbara Johnson aprofundaram a análise das representações de maternidade em Frankenstein, explorando as contradições e ambivalências do papel maternal.
A atenção de Moers ao corpo feminino antecipou desenvolvimentos posteriores em teoria queer e estudos de embodiment, expandindo análises sobre corporeidade e identidade, e sua abordagem estimulou estudos biográficos mais sofisticados que conectam vida e obra sem reducionismo, reconhecendo a complexidade da criação artística.
O impacto do ensaio de Moers estendeu-se muito além dos estudos sobre Mary Shelley. Sua metodologia, que combinava atenção cuidadosa ao texto com sensibilidade às experiências biográficas e históricas de autoras mulheres, tornou-se modelo para gerações subsequentes de crítica feminista. O conceito de gótico feminino, em particular, provou-se extraordinariamente produtivo, gerando décadas de pesquisa sobre como mulheres escritoras mobilizam o gênero gótico para articular experiências e ansiedades especificamente femininas.
Críticas posteriores complexificaram e, em alguns casos, questionaram aspectos da análise de Moers. Algumas argumentaram que o foco na maternidade biológica corre o risco de essencialismo, reduzindo a experiência feminina à reprodução. Outras expandiram o conceito para incluir formas de “maternidade social” e relações de cuidado que transcendem vínculos biológicos.
F. Botting, “Frankenstein, Feminism, and Literary Theory”
- Neste ensaio, Botting discute a leitura de Moers (em Literary Women) e aponta que críticas britânicas (por exemplo, feministas Marxistas) acusaram Moers de essencialismo — entender “masculino” e “feminino” como categorias fixas em vez de socialmente condicionadas. Fordham Gothic
- Botting também mostra como, posteriormente, outras abordagens (pós-colonial, de gênero, estudos culturais) ampliaram o escopo da crítica, indo além da leitura psicanalítica / biográfica da maternidade. Cambridge University Press & Assessment+1
Youngquist, “The Mother, the Daughter, and the Monster”
- Este artigo dialoga diretamente com Moers e sugere que há mais ambivalência na figura materna do que Moers originalmente articulou, questionando a centralidade da “repulsa ao recém-nascido” como única lente de leitura. Knarf
D. Mitchell, “Mother as Monster in Mary Shelley’s Frankenstein”
- Mitchell explora a rejeição da criatura por Victor como problemática no plano da “maternidade”: embora Moers veja esse abandono como expressão da culpa de Shelley, Mitchell analisa essa dinâmica sob outra luz, como uma metáfora para relações sociais de cuidado (ou sua ausência) e para a “mãe social”. Kutztown University Research Commons
Kourie, “A Critical Analysis of ‘Otherness’ in Frankenstein”
- Aqui, a autora constata que, embora Moers enfatize a experiência biográfica materna de Shelley, reduzi-la a isso pode simplificar o texto: Kourie critica essa “psicoanálise feminista” por não abarcar toda a dimensão social da criação, sugerindo que a maternidade no romance pode ser entendida também de modo não essencialista (por exemplo, cuidado, rejeição, socialização). Diva Portal
Johansson, Space Pregnancies
- Este estudo mais recente problematiza a visão essencialista da maternidade nas leituras de Moers: critica a ideia de “mulher como útero” e aponta para leituras onde a maternidade é social, institucional ou simbólica, não apenas biológica. Lund University Publications
Não obstante estas revisões, a contribuição fundamental de Moers permanece: ela demonstrou conclusivamente que Frankenstein não pode ser plenamente compreendido sem atenção às experiências específicas de Mary Shelley como jovem mulher navegando os terrores da maternidade no início do século XIX.
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A Mãe do Monstro e o Monstro da Maternidade
A reinterpretação de Ellen Moers de Frankenstein como expressão de ansiedades maternas transformou permanentemente nossa compreensão desta obra seminal. Ao reconhecer que a “mãe do monstro”, tanto Mary Shelley quanto, metaforicamente, Victor Frankenstein, estava articulando terrores profundos sobre criação, abandono e as responsabilidades esmagadoras da maternidade, Moers revelou dimensões de significado que haviam permanecido invisíveis à crítica tradicional.
O conceito de gótico feminino ilumina não apenas Frankenstein, mas toda uma tradição literária na qual mulheres escritoras transformam o horror em veículo para expressar experiências que o discurso convencional silenciava. Os medos sobre parto traumático, perda gestacional, inadequação maternal e rejeição de progênie, temas raramente discutidos abertamente no século XIX, encontram expressão cifrada mas poderosa na narrativa de Shelley sobre um criador que abandona sua criatura.
Mais de quatro décadas após o ensaio pioneiro de Moers, Frankenstein permanece um texto central para os estudos feministas e de gênero. A obra de Shelley continua revelando novas camadas de significado conforme cada geração de leitores traz suas próprias preocupações e perspectivas. O que permanece constante é o reconhecimento, inaugurado por Moers, de que este romance gótico é também, talvez primordialmente, uma exploração profunda e perturbadora dos terrores e ambivalências da experiência maternal, escrita por uma jovem mulher que conhecia estes terrores intimamente. A criatura de Frankenstein continua assombrando nossa imaginação cultural precisamente porque articula ansiedades fundamentais sobre criação, responsabilidade e as consequências devastadoras do abandono parental: temas tão relevantes hoje quanto eram em 1818.
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