Séries

Fleabag, BoJack e um mini estudo sobre autosabotagem

BoJack Horseman e Fleabag são duas de minhas séries favoritas e, quando as conecto de alguma forma dentro da minha cabeça, vejo que ambas tem suas similaridades. E se existe algo que Fleabag e BoJack Horseman têm em comum, além de serem obras-primas que todos deveriam dar uma chance, é justamente a capacidade de nos fazer rir, chorar mas, principalmente, nos enxergar em personagens que parecem determinados a cavar seus próprios buracos. Histórias assim me pegam muito. Phoebe Waller-Bridge e Raphael Bob-Waksberg, criadores dessas séries, constroem protagonistas com os quais muitos de nós nos identificamos: eles nos mostram o que acontece quando a autosabotagem vira um estilo de vida. Vamos ver se eu consigo explicar isso nesse texto.


Fleabag: o caos como assinatura

Em Fleabag, a protagonista sem nome (mas vamos chamá-la de Fleabag, como todo mundo faz) é uma mulher com seus trinta e poucos anos que vive em Londres, trabalha num café à beira da falência e toma decisões que parecem gritar: “Por favor, me vejam, mas não olhem muito de perto!”. Ela é SUPER carismática, hilária e, ao mesmo tempo, profundamente quebrada. Fleabag não apenas se sabota, ela faz disso uma arte. Dorme com homens que não deveria, afasta quem a ama, e usa o humor como um tipo de armadura para não ter que lidar com a culpa que carrega pela morte da melhor amiga.

O texto de Phoebe Waller-Bridge é cínico, cru, quase cirúrgico. Fleabag utiliza a famosa quebra da quarta parede, falando diretamente com o público, como se estivesse confessando seus pecados e, ao mesmo tempo, pedindo validação. Funciona muito bem para a dinâmica do show. Mas essa conexão com o espectador é também uma armadilha, já que ela nos torna cúmplices de suas escolhas ruins. Quando ela sabota um relacionamento promissor com o Padre bonitão (o famoso Hot Priest), percebemos que não é só por impulsividade, mas sim um padrão. Fleabag acredita, no fundo, que não merece ser amada. E é aí que a autosabotagem dela brilha: ela destrói o que poderia ser bom porque, para ela, o caos é mais familiar que a felicidade.

Créditos na imagem.


BoJack: o abismo disfarçado de cinismo

Agora vamos falar um pouco do meu cavalo favorito. Em BoJack Horseman, temos um personagem antropomórfico que, por fora, é uma ex-estrela de sitcom dos anos 90, mas, por dentro, é um poço de arrependimentos e autodestruição. BoJack é realmente O REI da autosabotagem. Imagine alguém que tem dinheiro, fama residual e oportunidades que muitos matariam para ter, mas escolhe, repetidamente, se afundar em álcool, drogas e decisões terríveis – esse é BoJack Hoserman. O cara que a todo momento magoa seus melhores amigos, trai suas parceiras e, em um dos momentos mais devastadores da série, quase cruza uma linha imperdoável com uma adolescente.

A genialidade dessa série, no entanto, está em como a animação usa o absurdo do mundo animal para falar sobre verdades humanas. BoJack não é só um cavalo depressivo, ele representa muito bem o que acontece quando você internaliza a ideia de que é uma causa perdida. Ele sabota suas chances de redenção, uma atrás da outra, tudo porque acredita que não merece ser salvo. Cada temporada nos mostra BoJack tentando melhorar, seja na terapia, em reabilitação ou novos projetos, só para no fim ele próprio jogar tudo fora. É desesperador. Um dos meus episódios favoritos, o monólogo de “Stupid Piece of Sh*t”, na sexta temporada, é um soco no estômago que sintetiza muito isso que estamos discutindo aqui: a voz na cabeça de BoJack, que o chama de lixo, é a mesma que ecoa na mente de tanta gente.


Autosabotagem: o fio que conecta essas séries

Talvez o que una Fleabag e BoJack seja na verdade mais do que seus comportamentos autodestrutivos: é a consciência dolorosa desses padrões. Ambos sabem que estão se sabotando, mas não conseguem, ou não querem, parar. A autosabotagem, afinal, não é só sobre fazer escolhas ruins, é sobre escolher o caminho que confirma suas piores crenças sobre si mesmo. Fleabag acha que é indigna de amor, então afasta quem se aproxima. BoJack acredita que é um monstro, então age como um. E fora das telas, muitos de nós agimos e vivemos da mesma forma.

Psicologicamente, a autosabotagem é um mecanismo de defesa torto. Segundo estudos como os de Joseph Ferrari, psicólogo que pesquisa procrastinação e comportamentos autodestrutivos, a autosabotagem muitas vezes vem de um medo de falhar ou, curiosamente, de ter sucesso. Para Fleabag, o sucesso (seja no amor ou no café) significa vulnerabilidade, algo que ela evita a todo custo. Para BoJack, o sucesso ameaça expor que ele não é tão profundo ou talentoso quanto gostaria de acreditar. Então, ambos criam o caos para manter o controle, mesmo que seja o controle de um desastre.


Por que isso pega tanto?

O fato é que Fleabag e BoJack Horseman não são apenas histórias sobre pessoas (ou cavalos) quebradas. São histórias sobre o que significa ser humano em um mundo que exige que você seja “inteiro”. Esses personagens nos mostram que a autosabotagem não é só um vilão externo, mas algo que carregamos dentro de nós. E, olha, é muito difícil lutar contra isso às vezes. Quem nunca tomou uma decisão sabendo que era a pior opção, só porque parecia mais segura que o desconhecido? Quem nunca se afastou de algo bom por medo de não merecer?

A diferença entre os dois está no tom. Fleabag termina com um fio de esperança: ela escolhe seguir em frente, mesmo que sozinha, acenando para nós enquanto deixa a câmera (e o público) para trás. BoJack, por outro lado, é mais ambíguo. Gosto disso também. A última temporada sugere que a mudança é possível, mas nunca fácil, e que BoJack pode na verdade nunca escapar completamente de si mesmo.

Reconhecer esses padrões é o primeiro passo para, quem sabe, fazer diferente. Talvez o maior presente dessas obras seja nos fazer rir do absurdo, chorar pelo que dói e, acima de tudo, nos dar coragem para olhar de novo para nós mesmos, para nossas escolhas e para o que ainda podemos mudar.

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